O DUENDINHO

Contam que, em um lugar muito, muito longe daqui (e toda maldade também), existe um lugar muito lindo. Mais lindo do que a própria beleza.

É um bosque de árvores frondosas, que dão flores o tempo todo e que, de dia, os galhos dessas árvores deixam passar apenas fachos da luz do sol. E de noite deixam passar toda a luz da lua.

É um bosque onde os rios, riachos e regatos tem a água mais limpa que existe, com muitos peixes e muitos peixes coloridos e muitas flores em suas margens.

É um bosque onde, em seu chão, só tem grama macia, sem insetos e formigas; e que se pode andar descalço e sem medos, ouvindo lindas canções que o vento compõe a todo instante.

É nesse bosque que vive Patchiuk; um duende menino, de olhos azuis muito espertos e um sorriso iluminador.

Patchiuk é novinho ainda, mas já tem muitos anos (os duendes sempre tem mais de cem anos) e vive a brincar com seus amigos e parentes. E todos a brincar com as coisas da floresta. Dançavam e cantavam com pássaros e esquilos todos os dias as mais belas sinfonias.

Um dia, passeando sozinho pelos caminhos, Patchiuk pisou em algo ruim. Nunca havia sentido aquilo. Era uma planta pequena, feia, cheia de espinhos. Tinha espinho até nas folhas.

Olhando mais atentamente percebeu outra aqui, outra ali, e outras fora do caminho. Ficou muito assustado. Mais do que isso; ficou preocupado.

O que seria aquilo? Será que seu bosque estava mudando? Envelhecendo? Será que seu bosque estava doente? Será que ele teria que viver preocupado com o que iria aparecer agora? Onde pisar? Teria que viver preocupado e atento? Será que ele não poderia mais andar descalço? Haveria outras plantas feias e perigosas como aquelas em outros lugares do seu bosque?

Resolveu, então, procurar seu pai. Contou-lhe tudo e ficou um pouco surpreso ao perceber que ele já sabia. Mas da forma como Patchiuk lhe contara, com tanta preocupação, fez com que ele decidisse levar o assunto ao conselho dos anciãos que, alias, já sabia do problema.

O que Patchiuk ouviu do ancião mais velhos deixou-o bem mais preocupado.

–           Cada vez que um humano mortal perde a fé, sua alma se endurece. E no bosque das ilusões nasce uma erva daninha……

–           Oh.

–           Portanto, cada planta feia que você descobriu é mais um humano que não tem mais sonhos……

–           Mas, isso é impossível…… como é possível viver sem sonhos?

–           ….. é mais um humano que não acredita na fantasia…

–           …..como é possível viver sem fantasias, sem ilusões…..?

–           Pois é…..

–           E agora?

–           Por isso o conselho convocou essa reunião e vai tomar uma decisão protelada há muito tempo.

–           E qual é, ancião?

–           Vamos enviar um emissário ao mundo dos mortais…

–           Oh…..

–           Sim, vamos avaliar o estado de espírito das pessoas… e acredito que o emissário ideal é o próprio Patchiuk, que nos trouxe o problema de forma tão convincente.

–           Eu!!!?

–           Sim. Está decidido. Traga- nos noticias reais…

O ancião chefe começou a bater palmas, cadenciadamente, e todo conselho também começou a bater palmas….. e esse som levou Patchiuk, imediatamente, ao mundo dos humanos.

Ninguém o veria e assim poderia entrar nas casas das pessoas e observar o que faziam.

Mas a primeira imagem que teve não foi em uma casa, não; foi em uma praça, parecida com um bosque, com árvores, belos caminhos e pessoas caminhando. Havia também bancos e pessoa sentadas nos bancos. Não gostou. As pessoas sentadas não sorriam e as que caminhavam estavam apressadas demais. Indiferentes. Preocupadas. Resolveu seguir um casal de jovens e ouvi-los. Ali haveria sonhos e fantasias, certamente.

Enganara-se. A moça contestava os ciúmes do moço e reclamava por liberdade. O moço argumentava com juras de amor e frases feitas. Não havia amor ali. Nem alegria ou fantasia. Apenas desejos simples e uma tentativa de não se perder uma comodidade. Será que não se lembravam do primeiro olhar entre eles?

Voltando-se, cruzou com um homem velho. Resolveu segui-lo e ouvir seus pensamentos. Acabou caindo num caldeirão de mágoas e reclamações. O homem velho sentia-se abandonado e só. Cobrava companhia dos filhos, que custara tanto criar e agora só pensavam em suas vidas. Será que esse homem velho não se lembrava mais de quando os segurou no colo. O quanto se divertiu com aquelas crianças? Será que não se lembra de seus primeiros sorrisos, ainda no berço?

Viu perto dali uma casa e sons de crianças brincando. Resolveu observar a família, pois ali haveria sonhos e fantasias. Sorriu muito quando viu as crianças brincando e criando tantas fantasias que quase se esqueceu de sua missão e foi brincar também….  Mas parou quando a mãe das crianças veio gritando que já era hora de parar de brincar,  pois já era hora de disso ou daquilo. Quando uma das crianças demorou-se um pouco mais a mulher, nova ainda, quase lhe bateu. Será que essa mulher, nova ainda, não se apercebeu do quanto ela estava sendo injusta? Será que essa mulher não brincou quando era criança?

Em seguida o pai das crianças chegou do trabalho e parecia irritado. Nem cumprimentou a mulher e reclamou de algo de ontem; nem carinhou os filhos e quis impor respeito com um olhar de falso mau. Patchiuk foi pra outra casa; e pra outra e pra outra e em todas encontrou clima de discórdia entre homem e mulher, entre, entre pais e filhos e até entre irmãos. Viu a solidão de quem vive junto, a reclamação pelos maus resultados da própria incompetência, a intolerância de quem se julga mais, a indiferença dos cegos de espírito, a insegurança dos ignorantes ser transformada em agressividade e o medo de ser ultrapassado. Viu a mulher chorando pela amizade distante, viu o homem chorando pela saudade atuante. Viu a angústia fazendo morada no peito de quase todos os adultos. E pode visualizar a angústia também quando viu crianças no meio do mal e do crime.

 Era realmente um mundo de poucas e pálidas cores. Pachiuk, que, agora,  observava tudo sentado num galho de uma árvore, em uma rua cheia de carros velozes e barulhentos, teve uma sensação muito estranha. Era uma vontade de chorar que ele não conhecia,  até então. Será que os humanos não percebem que o tempo deles é muito rápido e não se pode desperdiçá-lo? Será que eles não entendem que qualquer  mágoa já nasce com raízes muito fortes?  Patchiuk, então, resolveu agir. Rapidamente entrou em um carro parado no sinal de transito e começou a falar no ouvido de uma mulher que estava ao volante. Mas, ela não o ouvia. Percebera, em seus pensamentos, que ela estava irritada com seus filhos, que insistiam em falar em Papai Noel e Coelhinho da Páscoa enquanto sua religião proibia toda e qualquer idolatria. Ficou indignado. Falou com tanto empenho que imaginou que ela pudesse ouvi-la. Falou sobre fadas lindas e bondosas, sobre bruxas malvadas mas nem tão malvadas assim, falou sobre elfos e gnomos. Falou sobre a flauta mágica e a beleza da princesa, falou sobre a caverna dos piratas e naves espaciais coloridas. Falou até de sua primeira boneca, que ela amava tanto. Mas, nada conseguiu! Ela permanecia angustiada e irritada.

Ela não o ouviu porque humanos adultos não escutam duendes. Mesmo assim quis insistir e pousou no ombro do homem sisudo, de terno e pasta executiva que passava apressado. Com a boca próxima a seu ouvido perguntou se ele não se lembrava de  sua última gargalhada dada  e porque não sorria em homenagem a ela. Mas o homem continuou sisudo; e apressado. Patchiuk subiu pelos ares e olhou a cidade de cima, bem do alto. Quantas casas. Quantas janelas. Quantos muros. Tantas pessoas passando, se cruzando e tantos desencontros. Pensou numa última tentativa e pousou ao lado de um homem sentado numa mesa de bar. Estava sozinho e olhava o nada. Mas, pensava muito e Patchiuk sentiu o desalento evidente naquele olhar. Era um cansaço só, um desânimo total. Patchiuk lembrou-se, então, de um conselho de seu pai para tentar conseguir contato com um humano mortal. Deveria imaginar e criar estrelinhas, muitas estrelinhas, as mais brilhantes que pudesse criar. E torcer para que o humano as notasse. Feito isso deveria dizer o que quisesse dizer. Quase chorando, com o peito repleto de esperanças, aproximou-se bem e começou a falar:

Homem, por favor, me escute!! Estás vivo, não lamentes nada!

 Saibas que tua vida apenas começa quando entenderes o valor dela.

Ela não há de ser apenas isso que fazes para sobreviver, mas principalmente, o que não fazes.

 Ela não há de ser apenas o que tocas, como o vidro desse copo, mas principalmente o que não tocas, como esta música que escutas agora.

Ela não há de ser apenas teus compromissos importantes, com pessoas importantes, mas principalmente aquele teu compromisso simples, contigo, que não consegues cumprir, sempre te provocando um sorriso amarelo, por não conseguires cumpri-lo.

Tua vida deve te provocar um sorriso em todas as cores.

Ela não há de ser apenas saudades, que são boas lembranças que entristecem, mas principalmente a saudade transformada em risada cada vez que for lembrada. Tua vida deve ser sempre lembrada com muitas risadas.

Cuida de tua vida e das pequenas coisas do teu dia, principalmente as que não consegues tocar, como a delicadeza, o afeto, o respeito e o sorriso.

Cuida do teu sonho antigo e o refaça, Compartilhe teu sonho, converse sobre ele, viva o encanto da possibilidade de talvez, e apenas talvez, realizá-lo.

 Imagine teu sonho realizado e talvez nem precise realizá-lo.

Use tua imaginação e permita, humildemente, que os outros imaginem também. E divirta-se com isso.

Permita-se falar sobre isso, ouse falar sobre sonhos com qualquer um e verás que o resultado é bem melhor que os  teus receios e medos tão  improváveis”

Não desfaleça em vida. Não desperdice o tempo com coisas menores como a inveja, a mágoa ou o ciúme.

Dê-se o direito de ouvir uma canção por inteiro, acorde por acorde. Chore se a vontade vier e sinta orgulho por ter sido tão forte

E principalmente, permita-se emocionar-se. Sinta-se criança ao assistir um filme de criança e sinta-se humano ao perceber o amor.

Patchiuk já não sabia mais o que dizer. O homem continuava como antes. Ao redor, todos continuavam como antes. Patchiuk sentiu-se derrotado e resolveu voltar ao bosque. Falaria ao ancião mais velho como era impotente para resolver tamanho problema e que se preparasse para ter mais e mais flores feias e espinhentas pelos caminhos. Percebera que não poderia nunca interferir na vida dos humanos e que nenhum outro ser da floresta encantada tinha poder para tanto. Só lhe restava essa tristeza agora. Fez isso, falou ao ancião, a seu pai e a todos. Foi então para casa e deitou-se no colo de sua mãe e pela primeira vez derramou uma lágrima. Sua mãe acariciou seus cabelos loiros e sorrindo disse que fosse brincar na floresta. Meio a contragosto pôs-se a caminhar e um sorriso enorme iluminou seu rosto quando viu que a primeira planta feia que encontrara estava começando a murchar.  

O SINAL VERDE

Esta é a estória de Maria de Fátima, sergipana bonita que ‘juntou- se’ com Gaúcho, um sulista alourado, de má vida, assim que pôs os pés em São Paulo. Daí, foi um filho por ano, dois meninos e duas meninas. O quinto e último filho ainda estava no ventre e ela pouco, ou quase nada, sabia daquele homem. Ele vivia nas mesas de bilhar e carteado e morava num barraco mal acabado, em uma invasão, às margens de uma lagoa da cidade. Por sete anos, Maria de Fátima conviveu com aquele homem até que mataram o Gaúcho por pendência de jogo. E, por essas pendências tomaram seu barraco. Foi para a casa de uma vizinha e quando a menina nasceu, sentindo que ia perder a ajuda que recebia de um programa do governo,  e que já era insuficiente para alimentar a todos, resolveu sair pedindo esmola com as cinco crianças pelas ruas. Mais de um ano esmolando, morando aqui e ali, conheceu uma outra moradora de rua que lhe mostrou o que ela considerava um bom trabalho; vender balas no sinaleiro. Ela tinha uma vantagem que não percebia, as crianças, que eram  bonitas e limpinhas, podiam ajudar.

Foi com ela a um cruzamento de duas grandes avenidas de São Paulo, e em princípio, começou a ajudá-la. Depois, a mulher foi ‘emprestando- lhe’ balas para que ela pudesse ter como começar. No fim da tarde tinha algumas moedas que logo se transformavam em alimentos. Estava acabada, sentindo-se um pano velho. Sabia que nenhum homem iria se  interessar por ela, tanto pelo seu estado físico, como pelo fato de ter tantas bocas para alimentar. E doar seus filhos soava- lhe como um pecado gravíssimo.

Dedicou-se a ajudar a nova amiga até que pode ser independente e comprar suas próprias balas. Estava já há pouco mais de um ano nesta vida, mas ainda morando numa comunidade sob um viaduto, fazendo dinheiro apenas para o alimento e pedindo roupas aos que passavam. Suas crianças eram muito unidas e muito bonitas, que até chamavam a atenção. O mais velho, Edilberto, quase 9 anos, depois Maria Camila, quase 8, Mario, quase 6, Maria Isabel, quase 5 e Maria Rosa, 2 anos. Foi numa manhã chuvosa de um 31 de dezembro, com as crianças sentindo um pouco de frio, apesar de ser verão, que uma bala perdida lhe acertou o coração. Maria Rosa estava em seu colo e a bala quase arrancou seu mamilo esquerdo, fazendo um corte bem fundo que até mostrava sua costelinha. Dois motoqueiros quiseram roubar um motorista, mas o passageiro sacou uma arma, começando um tiroteio. Carro e moto fugiram enquanto as crianças ficaram imóveis ao redor do corpo da mãe e da irmãzinha,  naquela poça de sangue. Só Mario deu um grito, após alguns instantes. Muitas pessoas chegaram, empurraram as crianças como se elas fossem apenas curiosas. Depois de alguns minutos a situação se acalmou e a policia levou as crianças para a promotoria da infância. Após conversar com Edilberto, o promotor pediu que um seu assistente fosse com a polícia buscar os documentos das crianças, mas após conversarem com alguns moradores de rua ficaram sabendo que o barraco de Maria de Fátima foi saqueado e levaram tudo, inclusive uma caixa de sapatos  onde estavam as bijuterias e também onde estavam as certidões de nascimento. Como sempre, ninguém sabia de nada. Os primeiros fogos do réveillon espoucavam quando as crianças chegaram a um abrigo de menores. Na primeira manhã do albergue, um  menino mais velho veio mostrar a eles um jornal com foto de sua mãe, no chão, com a manchete ‘Bala perdida mata moradora de rua e fere bebe no seu colo’. Edilberto pegou a folha do jornal, dobrou e guardou. Passaram por muitas situações difíceis, mas mantiveram-se unidos, até que foram adotados, um a um, menos Edilberto. Mario foi o que demorou mais, mas acabou indo. Os três, que foram para famílias diferentes, não se falaram, nem se viram por 15 longos anos. As famílias eram diferentes mesmo e não se conheciam. O juiz da adoção permitiu que as famílias dessem novos nomes a eles quando os novos documentos fossem feitos. Mario passou a ser Rodrigo, Camila passou a ser Karen e Maria Isabel passou a ser Elisa. Os sobrenomes eram de suas novas famílias. Edilberto sabia o seu nome, mas não tinha certeza de seu sobrenome. Como gostava muito de um monitor do albergue,  que queria ser tratado como ‘seo’ Pereira e não como ‘tio’, passou a chamar-se Edilberto Pereira. Foi assim que conseguiu uma nova certidão de nascimento, onde constatava como mãe; Maria de Fátima Pereira e pai; desconhecido. Ficou no abrigo ate a idade limite. Freqüentou normalmente a escola, conseguiu emprego e foi morar em uma pensão em Santana. Conseguiu equilíbrio emocional lembrando-se dos ensinamentos do seo Pereira. Lembrava- se de sua idade, ate mesmo de seu aniversário. Sabia que estava com 24 anos quando terminou seu curso superior de tecnologia elétrica, com especialização em mecatrônica. Era um bom caráter. Tinha dois amigos, Nacho e Ricardo, fieis, alegres e leais, que moravam com ele em um pequeno apartamento, no bairro de Santana,  que conseguiu comprar, na planta, mesmo com um longo financiamento. E ainda tinha como ‘parente’ o ‘seo’ Pereira, que continuava morando no abrigo e era muito ligado ao misticismo, astrologia, pensamento positivo e inteligência espiritual.

Edilberto era seu maior discípulo e se viam todos os dias, quando seu Pereira ainda lhe cobrava o que ensinara, como higiene e comportamento. Namorava Carolina, modelo fotográfico, tão linda quanto ciumenta. No esporte, Edilberto gostava mesmo era de basquete, o que Carolina apenas aturava. A sua luta pessoal era encontrar seus irmãos. Procurava pela internet e foi até a um programa de rádio contar sua estória, mas, passaram-se os anos e nada! A conselho de seu Pereira parou de usar esses recursos, lembrando que, talvez seus irmãos não quisessem lembrar que moravam nas ruas.

Talvez seus pais adotivos não lhes contaram nada. Ou talvez não se lembrassem mesmo. Edilberto conservava aquele jornal e até já tinha feito algumas cópias com medo que o original  se perdesse. E no dia anterior ao dia do jornal foi a data que sua mãe morrera… E todos os anos, naquele dia, véspera de ano novo, pensava em ir aquele cruzamento, mas nunca tivera coragem para tanto. Mas quando saiu do abrigo, definitivamente, foi até o local, passou mal e nunca mais foi. Sentia muitas saudades e sabia que nunca seria feliz sem que pelo menos soubesse o que acontecera com Camila, Bel, Mario e Rosinha. Procurou os hospitais para saber em qual deles Rosinha tinha sido atendida e não conseguiu informação nenhuma. Nem a policia tinha registrado o fato policial do bebê. Só da mãe, que foi enterrada como indigente e nem tumulo tinha mais, pois depois de alguns anos retiraram os ossos e os levaram para um lugar qualquer. Agora a família de Edilberto resumia- se a dois amigos fabulosos, alegres brincalhões, uma namorada linda e ciumenta e um pai de estimação. E Maria Camila passou a ter uma  família de verdade. Os pais; dois médicos, não podiam ter filhos e ela passou a ser filha única.

Com o nome de Karen passou tranquilamente pelo resto da infância e da adolescência. Seus pais, com os pais descendentes de italianos ainda vivos, e a mãe, filha de fazendeiros do interior de São Paulo, também vivendo próximos deles. Então o que Karen tinha eram dois pais, quatro avos, quatro tios, cinco primos que sempre se reuniam, ou na casa de um avô, ou na casa da outra avó,  sempre com muita festa. Mas, a tristeza de Karen era evidente; nunca conseguira superar aquela cena. Acordava a noite, suada, com o pesadelo daquela tragédia.  Sentia- se protegida pelos novos pais, mas sempre sentia que devia procurar seus irmãos. Poderia ser que tivesse cruzado várias vezes com algum deles e não o reconhecesse. Isso a incomodava muito. Estava terminando a faculdade de direito e, apesar de linda, estava sozinha. Não conseguia fixar-se em nenhum namorado apesar de vários pretendentes, ate mesmo entre seus primos. As vezes corria alguma dúvida sobre suas preferências sexuais. Mas ela era muito feminina nos seus 23 anos e sua meiguice destoava no ambiente em que vivia. Mas todos gostavam muito dela. Maria Isabel, por sua vez, foi para uma família onde o pai era um empresário argentino e a mãe uma empresaria brasileira. Passou a ser Elisa Cunha Robles e viajou muito para a Argentina e outros países até os seus  17 anos. E não viajou mais por causa da faculdade. Tinha dois irmãos, sendo um irmão, do pai, que era divorciado e uma irmã, vinda da mãe que era mãe solteira. A mãe tinha uma grife de modas onde ela também ajudava na loja. O pai tinha uma pequena industria de artigos de lã de carneiro e vicunha em Rosário, na Argentina. O irmão era gay e a irmã, uma revoltada com o mundo. Embora na época tivesse quase 6 anos apenas, Elisa também se lembrava muito de seus irmãos e pensava em procurá-lo. Um dia, aos doze anos, ao passar de carro pela esquina onde acontecera a tragédia com a sua mãe, sentiu-se mal, teve uma crise de choro e não quis explicar porque. Morava nos jardins, região nobre de São Paulo. Cresceu e ficou com o mesmo corpo da mãe, pequena estatura e franzina. Mario, que ficou seis anos no abrigo, foi com mais de onze anos para sua família que se mostrou desajustada. O pai era um ex PM que tinha duas filhas com uma mulher que não podia ter mais filhos. Ele, que era o sargento da PM que atendera a ocorrência da moradora de rua morta pela bala perdida, querendo ter um filho para acompanhá-lo, foi até o abrigo e escolheu Mario, sabedor da origem. Mas, era um homem violento. Espancava a mulher por ciúmes infundados e impedia as filhas de uma vida social normal. A mãe era uma mulher fraca, dependente, submissa. Mario passou a ser Rodrigo e, antes mesmo dos doze anos largou os estudos, não conseguindo completar o ensino médio. Aos 15 anos tentou estuprar uma de suas irmãs de criação e aos 16 passou a fumar maconha.Agora, aos 21 vive nas baladas, atrás de senhoras solitárias que possam lhe dar roupas de grife e algum dinheiro. O pai teve um derrame e ficava numa cadeira de rodas, o tempo todo olhando para o vazio, dando broncas e vivendo da boa pensão que recebe da policia. Mario, ou Rodrigo, lembra-se sempre das brincadeiras com os irmãos, tanto no cruzamento das avenidas como embaixo do viaduto.

Lembra-se claramente de tudo e cada vez que lembra, enraivece-se e vai atrás do traficante comprar maconha. Ficou moreno, estatura mediana, com os olhos amendoados da mãe, diferente de Edilberto, que conservou os traços do pai. Uma noite, após um jogo de basquete em uma universidade, Edilberto foi para um shopping próximo tomar um lanche. Estava com Carolina e um dos amigos, quando notou na mesa do lado, uma moça que parecia conhecer. Não reconheceu Camila, mas olhou tanto que Carolina armou uma grande confusão. Camila, sem entender nada, quieta que era, apressou- se em deixar o local, não sem antes dar uma olhada firme para Edilberto.

Passado um tempo, Edilberto volta sozinho aquele shopping e procura a moça sem ter sucesso. Faz isso várias vezes; mas nunca a noite e nem naquele horário, já que estava quase sempre com Carolina.

Só tinha folga dela quando a mesma tinha algum trabalho em estúdio. Numa dessas noites de folga foi ate lá e ficou sabendo que o prédio ali perto era uma  faculdade de direito, onde tinha o ginásio de esportes, o mesmo onde tinha ido assistir aquele jogo de basquete. Ficou sabendo que após as aulas alguns alunos freqüentavam aquela lanchonete. Esperou, então. Estava numa mesa, sozinho, quando Camila chegou. Ela nem se sentou. Ficou olhando para ele que olhava para ela  enquanto levantava lentamente. Nem trocaram uma palavra. Olharam-se muito. E muito. E se abraçaram e choraram. Quando se acalmaram, falaram muito, quase ao mesmo tempo, e os amigos dela ficaram ali, mudos, alguns também chorando, conforme foram conhecendo a estória. A partir daí se encontraram  muito, e se falavam muito, por telefone, pela internet, Edilberto não conseguia chama-lá por Karen e ela não se importou muito. Combinaram a procura pelos outros irmãos. Passaram a ter Carolina como aliada, alem de seus amigos Nacho e Ricardo, o primeiro mecânico de carro e o outro, um motoboy, ambos rappers. Começaram a sair muito e freqüentar o centro da cidade, locais de eventos, olhando a todos, imaginando como estariam Mario e Maria Isabel alias, cruzaram com os dois sem reconhecê-los, em várias oportunidades. Chegaram até a ver Mario levar um tapa de uma mulher em um bar durante uma discussão, mas saíram rapidamente do local.

Cruzaram com Maria Isabel durante um desfile onde Carolina participou, onde chegaram a ficar a um metro de distancia, mas de costas. Camila finalmente convencera Edilberto a ir conhecer sua nova família. Edilberto foi com Carolina para ter segurança, mas todo o seu medo e sua insegurança transformaram- se em tranqüilidade quando viu aquela família muito alegre. Era um domingo e era um almoço a italiana, com muita massa e vinho. No final do almoço contaram sobre sua busca pelos seus três irmãos. Sabiam que Maria Isabel saiu do abrigo com 7 anos e Mario saiu com 11 anos, mas Edilberto lembrava apenas vagamente das pessoas que os haviam adotado. Assim como estava lembrando,  agora, dos atuais pais de Camila. Esses pais, ali, a sua frente mudaram pouco nesses quinze anos, mas as crianças devem ter mudado muito, como Camila. Todos pareciam doentes quando crianças, e mesmo tomando banho, as vezes pareciam sempre sujos. Agora era diferente. Como estariam? E sobre Rosinha não sabiam nada mesmo. Qualquer registro sobre ela, simplesmente não existia. O foco, mesmo,  era  em Bel e Mario. Todos da família se propuseram a ajudar, mas a única referencia  que tinham era um recorte de jornal e o nome das crianças. A partir daí, Karen, que não gostava muito de sair de finais de semana, começou a ir a bares, baladas ou simplesmente andar com seus primos. Pela idade Bel teria 22 e Mario, 21 anos, a idade de sair. Cruzou com Mario em um bar seduzindo uma mulher mais velha, cruzou outra vez com Mario dirigindo um conversível vermelho, sozinho. Cruzou  pela terceira vez com Mario simplesmente correndo pela rua e sumindo na primeira esquina. Mas só foi reconhecer Mario quando estava com Edilberto numa loja da Barão de Itapetininga, comprando um presente para Carolina. Mario também estava comprando algo. Ela comentou que aquele rapaz que estava ali era o mesmo que tinha levado tapa daquela mulher naquele bar. Comentou também que o havia visto outra vez, num carro conversível. Edilberto olhou e comentou que ele lembrava alguém. Ficaram ansiosos. Passaram a olhar com mais atenção, procurando traços familiares. Mario, quando percebeu que estava sendo observado, reagiu agressivamente com gestos. Os dois não quiseram insistir, pois ambos haviam se enganado outras vezes e resolveram desculpar- se e dar as costas. Mas, Mario é quem deixou a loja rapidamente. Passadas algumas semanas, Karen estava voltando em seu carro da faculdade, a noite, com duas amigas quando viu Mario, sozinho, sentado na calçada, encostado em um poste de iluminação, sob uma chuva fraca e fina, fumando um baseado. Parou o carro, deu ré e parou do outro lado da rua e ficou observando. Mario, jaqueta de motoqueiro, com os olhos vermelhos, molhado por causa da chuva, lábios embranquecidos por causa do frio, olhou também para Karen e gritou, voz tremula, perguntando se ela era sua irmã Camila. Karen ficou assustada. Sentiu um arrepio. Ele voltou a gritar perguntando se ela era sua irma  Camila. Karen teve uma forte crise de chora, ali mesmo no carro, segurando o volante com a cabeça e com as duas mãos. Quando conseguiu se acalmar e olhar para a calçada não viu mais ninguém. Perguntou para suas amigas para onde ele tinha ido, mas responderam que tinham ficado tão preocupadas com ela que nem perceberam para onde ele pudesse ter ido. Karen imediatamente ligou para Edilberto e contou o que acontecera. Edilberto pediu que o esperasse, pois iria de moto e logo estaria ali. Teve o cuidado de perguntar se o local era perigoso ou não. Quinze minutos depois Edilberto chegou, acalmou Karen e deram uma volta pela região. Como já era muito tarde, passava de meia noite, resolveram voltar no dia seguinte. Mas foi quase um mês depois que Edilberto e Carolina encontraram Mario andando pela rua. Edilberto gritou seu nome, mas Mario não atendeu o chamado. Mas Edilberto parou na sua frente, insistiu, insistiu, mostrou a foto do jornal e finalmente viu Mario cair num choro descontrolado. Foi a vez de Edilberto ligar para Karen e os três irmãos foram a um parque caminhar e contar sobre  suas vidas. Edilberto e Karen perceberam rapidamente o quanto o irmão precisava de ajuda. Nas semanas seguintes alteraram em muito suas rotinas envolvendo todas as famílias, que participavam das buscas de um jeito ou de outro. O primeiro almoço dos três foi na casa de Karen e o ambiente festivo ajudou Mario a se descontrair e em alguns momentos voltar a ser o menino carente e dependente dos irmãos. Depois disso, Edilberto e Karen tiveram muitos problemas por causa do comportamento de Mario e os conflitos eram inevitáveis. Mas, ninguém desistia, nem mesmo Mario. Edilberto passou a usar os ensinamentos teo- filosóficos do seu Pereira, com algum resultado positivo. O envolvimento dos avós de Karen criava um ambiente de segurança que agradava e atraia Mario, que procurava cada vez mais mudar seu comportamento. Passado algum tempo, cada um levando sua vida, com Mario melhorando um pouco, Carolina trouxe uma noticia para Edilberto. Disse que estava fazendo um trabalho fotográfico para uma loja de grife própria, nos Jardins, e que lá conhecera uma moça parecida com Mario, os mesmos olhos e a mesma altura, a mesma cor de cabelos e, até, o mesmo jeito introspectivo. Deu um jeito de perguntar e ficou sabendo que ela era adotada, o que aliás, era evidente. Sua mãe era claríssima e ela, morena com traços nordestinos. Chamava-se Elisa.

Edilberto, é claro, correu para lá. Conversou com a mãe da moça, que negou a estória verdadeira. Disse que havia feito a adoção num hospital com Elisa ainda recém nascida. Edilberto sabia que essa moça não era Rosinha, porque esta havia herdado os olhos castanhos esverdeados do pai, fato esse sempre salientado pela sua mãe. Aliás, era a única com olhos esverdeados e por isso sua mãe sempre comentava isso. Mas como ela, a moça, se parecia muito com sua mãe, embora Edilberto se lembrasse de sua mãe como quase uma mendiga. O pior é que Elisa acreditava mesmo na estória da mãe adotiva e afirmava que Edilberto estava completamente enganado. Edilberto saiu, a contragosto. Depois,  conversou com Karen e Mario, e vez ou outra, tentava conversar com Elisa, sem sucesso. Isso durou mais de seis meses, passando inclusive pelas festas de fim de ano, ocasião que os três passaram juntos na casa de Karen. Mas os três estavam cada vez mais convencidos de que Elisa era mesmo Maria Isabel. Porque ela se recusava a aceitar? Mario lembrou que demorou um pouco para aceitar por pura vergonha de seu vicio. Mas, e Elisa? Seria por vergonha do passado? Será que tinha esquecido mesmo? Enquanto a vida continuava, os problemas de um passaram a ser os problemas de todos. Assim, Karen e seus primos envolviam-se nos problemas que Edilberto tinha no trabalho com um companheiro de trabalho, seu inimigo declarado que o vivia perseguindo e boicotando seus projetos técnicos. Por seu lado, Karen tinha dois primos, muito divertidos, ambos com 21 anos, que viviam disputando seu amor, ambos deslealmente. A cada tentativa de um se aproximar, o outro, boicotava. Mario tinha sérios problemas com o pai adotivo e era apaixonado pela irmã que tentou estuprar e que agora o odiava muito. Mas, Mario vivia protegendo a mãe e as irmãs das grosserias do pai, que mesmo da cadeira de rodas ainda dominava a todas. Mario aprendera a tocar guitarra, mas encantara-se com a viola caipira do avô fazendeiro de Karen e queria aprender tudo sobre ela. Um dia os três foram a um desfile de modas a convite de Carolina e encontraram Elisa. Os três ficaram observando de longe, comentando sobre seus traços e alguns gestos que lembravam a mãe. Edilberto, que na época da adoção de Maria Isabel tinha mais de 8 anos, lembrava- se de algumas coisas que Maria Isabel fazia e que estavam bem presentes em sua memória. Principalmente coisas que ela mais gostava. Chegaram perto dela, calmamente, e sem mesmo cumprimentá-la, Edilberto começou a contar fatos da infância, tanto os ocorridos embaixo do viaduto, como na esquina das duas avenidas em que vendiam balas.

Elisa foi ouvindo, ouvindo e desmaiou. Elisa, por viver no mundo da moda queria ser magérrima e se alimentava pouco; e mal. Foi levada a um hospital onde se constatou uma anemia profunda. Enquanto todos aguardavam, a mãe de Elisa chegou a destratar Edilberto, mas quando o pai de Elisa chegou e ficou sabendo por que os três estavam ali, achou que era hora da filha ficar sabendo sobre seu passado, que aliás, não tinha nada de errado. Uma enfermeira veio dizendo que ela precisava de transfusão de sangue e perguntou quem era da família e poderia doar. Os três se apresentaram, doaram sangue e foram embora. Dois dias depois Edilberto recebeu uma ligação da mãe de Elisa, desculpando-se e dizendo que a sua irmã queria vê-lo. Os três foram e se encontraram com Elisa em seu quarto, ainda de cama.

Passada a emoção e depois de muita conversa, conheceram Emerson e Kelli, quando ficou evidente a empatia entre Mario e Kelli, já que ambos tinham problemas de comportamentos ou comportamentos parecidos Kelli  tinha, inclusive, os piercings e as tatuagens que Mario queria ter feito e não o fez por causa de seu pai. Edilberto, que já se acostumara a chamar Camila de Karen, começou a chamar Maria Isabel por Elisa e assim ficou. O que não acontecia com Mario, que não conseguia chamar de Rodrigo de jeito nenhum. A partir daí os quatro começam a interagir e as famílias passam a se freqüentar,  porque os quatros fizeram valer suas personalidades, apesar da aparente fragilidade de Karen e principalmente de Elisa. Mas, apenas aparência, porque a força espiritual de Edilberto os contaminava. As situações familiares se desdobravam; as trapalhadas de Rogério e Romário para a conquista de Karen divertiam muito os quatro irmãos, a competição entre os avôs de Karen, um falando do norte da Itália, outro falando do interior de São Paulo sempre resultavam embates hilariantes. As avós entravam no clima e competiam sobre a melhor comida do domingo, a italiana ou a caipira. Os quatros começaram a freqüentar esses almoços por pedido de Karen, que era prontamente atendido pelos seus pais. Ate os pais de Elisa compareciam e só os pais de Mario é que não iam, por razões óbvias. Os pais de Karen tinham irmãos, seus tios, e entre eles, Renatinho Perez, tio por parte de pai, um grande sonhador, com soluções para tudo. Renatinho tinha três filhas, todas saindo da adolescência, com hormônios descontrolados, que logo acabavam se envolvendo na vida dos quatros irmãos, que acabaram formando um grupo facilmente identificável. A união entre os quatros chegava a emocionar quem convivia com eles. Por isso, não se esqueciam de Rosinha e o seu indefinido paradeiro era um assunto constante. Outro problema era visitar o local onde a mãe fora morta, mas sempre havia impedimentos, e o maior deles era o emocional. Apenas Edilberto tinha ido uma vez lá, no dia em que a morte da mãe completara 10 anos e ele tinha sido obrigado a deixar o abrigo pelo limite de idade. Chorara muito e decidira nunca mais voltar lá, pois alem da perda da mãe, sentia saudades dos irmãos. Agora que os encontrara, poderia ir. Os outros achavam que tinham que ir, mas a imagem da mãe na foto do jornal os bloqueava. Diziam que, se Edilberto não tivesse guardado o jornal, talvez tivessem esquecido e agora seria mais fácil voltar ao local. Finalmente, decidiram ir, mas apenas embaixo do viaduto, onde moraram algum tempo. No dia marcado, os quatro estavam lá, mais alguns amigos e primos.

Algumas crianças brincavam com um cachorro e uma bola, como eles faziam. Uma senhora, bem idosa foi se aproximando lentamente, olhando bem Karen, Edilberto e principalmente Elisa. E olhando nos olhos de Elisa disse alguma coisa sobre Gaucho e Fafá. Edilberto pensava estar vendo aquela mulher que ajudava sua mãe no começo da vida nas ruas. Um garoto chegou perto e disse que não ligassem para aquela mulher, pois ela era maluca. Edilberto pegou suas mãos e disse que voltaria logo e que lhe traria comida, roupas, remédios, o que precisasse. A mulher disse baixinho que não precisava e que eles deviam trazer o bebê. Karen começou a ficar nervosa e abraçou- se a Elisa. Perceberam que ela falava de Rosinha e que precisavam mesmo saber o que tinham acontecido. Talvez Rosinha não tivesse resistido ao ferimento. A mulher insistiu que precisavam ver o bebê e disse que eles tinham que ir ao sinal verde. Não entenderam de imediato. Só quando se encontraram no final de semana seguinte, os quatro, na lanchonete onde Edilberto viu Karen pela primeira vez é que se lembraram da frase de sua mãe que dizia ‘olha o sinal verde’. Enquanto todos gritavam ‘sinal vermelho’, que os carros, paravam e era hora de vender, ela gritava ‘sinal verde’ que era ora de proteger, pois carros, e principalmente motos saiam perigosamente. Depois de um silêncio, a pergunta voltou; como encontrar Rosinha? E se ela ainda estivesse viva? A partir dessa noite todos se envolveram, colocaram a estória na internet, criaram uma comunidade virtual, foram atrás de pistas falsas, foram a programas de radio e TV, e nada! Enquanto a vida continuava, Mario e Kelli estavam mais unidos que nunca. Kelli gostava de Mario, mas Mario gostava mesmo era de Marcela, mas esta era irredutível; a atitude de Mario era imperdoável. Marcela era mesmo muito agradável, cativante, um pouco briguenta principalmente quando se tratava de Mario. Cada vez que Kelli ia a sua casa, ela, Kelli, brigava com Marcelino, o pai de Mario, que implicava com ela por causa de seus piercings e tatuagens. Uma vez discutiram tanto que ele teve que ser internado numa clinica com suspeita de um novo derrame. A outra irmã de Mario, Cintia era a imagem da mãe, com a mesma submissão e desinteresse pela vida. Mario até tentou fazer com que freqüentassem a casa de Karen, mas foram num domingo para um almoço e não voltaram mais porque não se sentiram a vontade. Passado algumas semanas os quatros praticamente desistiram da busca por Rosinha e decidiram que no próximo aniversário de morte da mãe, véspera do ano novo, iriam ao cruzamento das duas avenidas, onde vendiam balas. Faltavam quase dois meses ainda, falavam muito sobre o assunto e pediram que alguns familiares os acompanhassem, mas ninguém quis ir. Argumentavam que o momento era só deles.

Apenas Carolina serviria de motorista e quando o dia chegou, chovia. Como o acidente com a mãe foi por volta de meio dia, resolveram passar antes pelos barracos sob o viaduto, a pouco mais de mil metros do local, e fazer o percurso até o cruzamento das duas avenidas, a pé, como faziam quando crianças. Coincidentemente o dia do mês era o mesmo dia da semana de 18 anos atrás; uma segunda feira, embora véspera de feriado. E também coincidentemente, chovia, as vezes fraco, as vezes torrencialmente. Quando chegaram embaixo do viaduto ficaram sabendo que aquela mulher falecera no sábado, dois dias atrás. Pediram, então, que Carolina os seguisse de carro, pois iriam caminhando, mesmo sob a chuva forte. No começo, conversavam. Depois, um silêncio chato começou a instalar-se entre eles, incomodando, e aí caminhavam mais forte, agora já chorando, com as lágrimas misturando-se com a água da chuva. Quando finalmente chegaram ao cruzamento, a chuva havia diminuído, mas ainda chovia. Não havia ninguém pedindo, ninguém vendendo nada. Karen estava abraçada a Elisa e Edilberto e Mario estavam bem próximos um do outro, quase encostados. Poucas pessoas, escondidas sob seus guarda chuva, passavam rápidas. Visualizaram o local onde sua mãe havia caído, usando a foto do jornal, evidentemente protegida por um plástico, como referência. Fizeram um circulo para fazer uma oração e ficaram olhando para o chão quando uma voz trêmula pediu para participar. Olharam e viram Marcela, parada, chorando, com a sombrinha quebrada por causa do vento. Mario se assustou, achando que ela tinha vindo dar alguma noticia ruim sobre seu pai, que ainda estava internado. Ela entrou no círculo e levantou a blusa, mostrando uma enorme cicatriz sob o seu seio esquerdo. Edilberto entendeu logo e a abraçou fortemente. A imagem do bebê ferido voltou na memória de todos e foram entendendo quem era ela, e se abraçaram, enquanto ela chorando foi contando o que sua mãe adotiva lhe revelara. A mãe disse que ela deveria ir ao encontro, levantar a blusa e mostrar a cicatriz, porque ela era a irmã que eles estavam procurando Contou que seu marido, um sargento da PM na época, simplesmente a levou para casa depois de tirá-la do hospital onde ficara por quase dois meses se recuperando do tiro. Ao invés de levá-la para a delegacia, omitiu todos os fatos, rasgou as fichas, levou para sua casa e a registrou como sua, como tendo nascido numa cidade do nordeste, usando seus parentes que também eram policiais militares por lá. Sua mulher não podia ter mais filhos e ele não queria uma filha só. Era de família numerosa e por isso foi buscar Mario alguns anos depois. Mario, rindo e chorando, só pode dizer que era por isso ele gostava tanto dela

O CARRO RESTAURANTE DO TREM

Carlo d,Amantino não era siciliano,mas comportava-se como um. Carlo não era um imigrante, seu pai é que fora um; mas trabalhava como se tivesse que enviar uma parte do dinheiro ganho para os que ficarem, a cada mês, como fazem os imigrantes. Ele era o responsável pelo restaurante dos trens que faziam a rota Bauru Corumbá. Carlo era  baixo, gordinho, todo sardento e, ainda novo, usava pesados óculos de quase dois graus. Era final da década de 60 e o calor úmido e insuportável de Corumbá dava-lhe uma constante vontade de mergulhar no rio Paraguai, lá em baixo, junto ao cais do porto. Na verdade, Carlo não era tão baixinho assim; beirava um metro e setenta.A vivacidade de seus olhos pequenos escondidos atrás da grossa armação preta de seus óculos lhe garantiam observar o movimento ritmado e eficiente de seus garçons, no carro restaurante do trem da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Essa ferrovia liga Bauru,SP a Corumbá, Mato Grosso, próxima a Puerto Quijarro, na Bolivia.

Carlo não tinha sotaque. ás vezes forçava um; ou o sotaque corumbaense ou o ítalo-paulistano, ou um misto dos dois. Tinha os braços fortes e peludos e garantia que, com eles, já havia derrubado muitos valentes do pantanal.

Era bom de conversa; bom no carteado e muito bom nos negócios. Mal saíra dos trinta anos e já conseguira a concessão dos carros restaurantes de uma das mais longas linhas férreas do pais. tanto no trecho Bauru-Corumbá como no ramal Campo Grande-Ponta Porá; o direito de explorar todo o comercio dentro dos trens era seu.

Esse comércio incluía a venda de bebidas, revistas e todo tipo de doces e salgados envelhecidos, pelos corredores dos vagões de passageiros. A roupa dos vendedores, que trabalhavam nos trens, era puxada ao militar, com galões nos ombros e quepes com abas envernizadas. Normalmente eram senhores de idade, ferroviários antigos, aposentados, ou simplesmente, biscateiros.

Transformavam-se em figuras caricatas e marcantes da viagem, quer pelo rítmo dos bordões de venda como pelo caminhar seguro e equilibrado com o que quer que vendessem. Carlo tinha um respeito muito grande por esses ‘companheiros’; como costumava dizer.

Era a primeira concessão que Carlo conseguira em sua vida e mantê-la era seu principal desafio.

Muitas pessoas e empresas ansiavam consegui-la e, se preciso, fariam muitas bobagens para tê-la.

Ser concessionário dos carros restaurantes da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, num trecho de mais de mil e quinhentos quilômetros era bastante rentável. Alem disso, era uma época em que o trem significava muito em termos sociais; e a grande maioria das cidades de São Paulo e Mato Grosso se desenvolveram as margens de seus trilhos. Era muito importante para Carlo a renovação da concessão e era para a mesma ser quase automática, não fosse o grande interesse demonstrado abertamente por Hassba Hassan, um libanês radicado em Corumbá, dono de uma churrascaria já tradicional na cidade. Hassba até que era simpático; Carlo reconhecia isso. Era do tipo alto e forte, mas barrigudo, com um vozeirão de tenor amador, nariz saliente, bigode farto, cabelo castanho e rareado, mas não calvo.Tinha as mãos enormes, com os braços e os dedos peludos onde ostentava um imenso anel com uma pedra vermelha que ele garantia ser um rubi. Era muito popular em Corumbá e sua churrascaria ‘Cedro do Libano’ era freqüentada  pelos vendedores viajantes que, aliás, eram muito bem tratados por ele e por seus dois filhos. Era comentado entre os viajantes que Hassba possuía duas lindas filhas, que apenas raramente saiam de casa, mas que já estavam prometidas para casamento desde que nasceram.

Uma das filhas estudava medicina na França. Uma de suas empregadas domésticas, corumbaense, andou espalhando que as moças estavam se rebelando contra essa tradição e que andaram procurando ‘noivos’ ás escondidas, por ali mesmo.

O certo é que já era uma empregada despedida. Hassba, por seu próprio estilo conversador, já andara aliciando aqui e ali, políticos influentes que freqüentavam sua churrascaria, visando brigar pela concessão. Para isso, por várias vezes, fechara sua churrascaria para almoços exclusivos, com garotas bolivianas e conjuntos típicos. Ele não fazia questão nenhuma de esconder seu interesse e isso realmente preocupava muito a Carlo e seu pessoal; principalmente Rodolfo, seu braço direito. Rodolfo, moço ainda, vinte e poucos anos (achava-se parecido com Elvis Presley) era muito grato a Carlo. Por duas vezes sua mãe fora internada para cirurgia e nas duas vezes Carlo bancou toda a despesa. E também por duas vezes seu pai fora preso por desordem e nas duas vezes Carlo bancou a soltura do valentão. Alem disso, Rodolfo não gostava muito de estudar não, e  portanto um bom emprego ia ficar um pouco difícil.

Empregou-se como carregador de caixas de bebidas na estação de trens de Bauru e conseguiu cair nas graças de Carlo ao demonstrar muita disposição e um pouco de humildade quando atendia os carros restaurantes. Na estação de Bauru chegavam, não só os trens da Noroeste, mas também os trens da Companhia Paulista, que ia de São Paulo até Panorama, as margens do rio Paraná, como também os trens da Estrada de Ferro Sorocabana, que iam até o Porto de Santos.

Eram muitos horários e Rodolfo ficava o dia todo na estação; não só o dia como noite adentro também. Como era novo, muito disposto e tinha uma boa aparência, Carlo o convidou para ser seu garçom. Rodolfo foi demonstrado ser honesto e confiável, até que se tornou gerente de um carro.

Daí a ser gerente geral foi um pulo. O cargo nem existia, mas Carlo achou que já era hora de se criar um e que Rodolfo era o homem certo para ocupá-lo. Numa concessão de 5 anos, Rodolfo já estava com Carlo em 4 anos. Rodolfo era brincalhão a maior parte do tempo, mas muito serio no serviço. Como viajava muito, não se casara ainda e nem pensava nisso. Nada serio ainda acontecera em sua vida quanto ás coisas do coração. No momento sua única preocupação era trabalhar para renovar a concessão. E ela deveria acontecer naturalmente, já que os repasses foram feitos normalmente e nada, absolutamente nada, acontecera que desabonasse a empresa de Carlo D,Amantino. Pelo menos, até agora, faltando 4 meses para a renovação. A grande preocupação era realmente o falatório de Hassba que, sempre que podia, fazia chegar um recado aos garçons de Carlo através dos viajantes vendedores. E todos os recados falavam, de alguma forma,que ele, Hassba, iria ser o novo concessionário dos carros restaurantes e que iria servir churrasco a viagem inteira. Claro que todos riam disso, mas Carlo se  preocupava muito. Rodolfo também. Os dois chegaram a ir na churrascaria duas vezes para jantar e tentar uma conversa; mas nas duas vezes, Hassba desapareceu do salão. O trem saía por volta das 9 horas da noite e numa dessas ‘visitas’ Carlo e Rodolfo chegaram a perder o trem e tiveram que ir no dia seguinte. Aproveitaram para pescar, o passatempo preferido de Carlo. Aliás, Corumbá sempre foi um paraíso para os pescadores de todo o Brasil. Caravanas de Santa Catarina, Paraná e São Paulo, principalmente, alugam hotéis especializados e todo o seu equipamento para alguns dias de pescaria. No cais do Porto, onde atracavam as chalanas, grandes barcaças de carga e passageiros, existem esses hotéis especialmente dedicados a pescadores, embora qualquer turistas tenha acesso para um simples pernoite.

Só que vai encontrar quartos com dois ou três beliches e nenhum conforto.

Normalmente, em época de temporada (fora da piracema),vivem lotados. São construções antigas, de 100 a 150 anos com a fachada rente a rua e os fundos rente ao morro,com o forro bem alto em virtude do enorme calor que castiga Corumbá a maior parte do ano. Todo quarto ou apartamento, obrigatoriamente tem que ter ventiladores de teto ou ar condicionado. Mesmo ligados, o calor chega a ser insuportável. Corumbá é conhecida como a Cidade Branca por causa de seu solo argiloso e a areia, que é muito branca.

A proximidade com a Bolívia e a ligação com o Paraguai, pelo rio, transformou Corumbá em um núcleo militar importante, possuindo inclusive, uma base naval, no visinho município de Ladário, bem próximo. A colonização portuguesa, o som boliviano e a presença de marinheiros cariocas foram dando aos corumbaenses um sotaque próprio, cantado e muito gostoso de ser ouvido.

Corumbá não possuía ligação rodoviária completa; era preciso usar balsas, aviões ou trem. Carlo adorava aquilo. Gostava de ver aqueles senhores bem morenos, de ternos brancos e chapéu de palhinha, muito elegantes, naquelas tardes ensolaradas. Haviam muitos estrangeiros, que viajavam muito, apenas para conhecer o pantanal matogrossense. Era comum dinamarqueses, alemães, franceses e americanos encontram-se no ‘El Pacu’, restaurante de um ex soldado nazista casado com uma negra  enorme que lhe ensinou todos os segredo do preparo de um pintado que podia ser pescado ali na frente mesmo. O El Pacu ficava no começo do cais do porto e no final da tarde, Carlo ia ali tomar cerveja, comer costela de pacu e invejar os que chegavam de barco voltando de suas pescarias. Ficava ali conversando até bem próximo do horário do trem partir, quando Rodolfo vinha buscá-lo de taxi. Todas as vezes que podia, Carlo fazia isso. E, muitas vezes, exagerava na cerveja e Rodolfo praticamente o obrigava a dormir um pouco antes de circular pelo carro restaurante. Essa cumplicidade fazia bem aos dois já que havia uma constante necessidade de proteção e segurança naquela fronteira. Por varias vezes tiveram contato nada amistoso com traficantes de drogas e ladrões de carros nas mesas do carro restaurante. Carlo sabia que muita droga, principalmente cocaína, trafegava  pelos corredores e bagageiros daqueles trens. Sabia também quem transportava e quem mandava, mas conseguia manter uma eqüidistância segura e, quando possível, até mesmo cordial com os chefões do tal negocio. Conhecia pessoalmente os dois mais importantes ‘negociantes’ do local, um boliviano de Santa Cruz de la Sierra e um militar, tenente da marinha que, em dois  anos de Corumbá, já conseguira mais respeito e mais  fortuna do que muitos fazendeiros do pantanal. Os dois nunca entraram no trem, muito menos no carro restaurante, mas conheciam muito bem a estrutura ferroviária. Apesar de usarem aeronaves, principalmente dentro do pantanal e possuírem pistas particulares próximas as fronteiras, ambos sabiam que havia um risco muito grande na ‘desova’, principalmente quando a carga era deles. Por isso os ‘aviões’ ou mulas (pessoas contratadas para o transporte de droga) usavam o trem, fazendo um trabalho de ‘formiga’. Carlo orientava seu pessoal o mais que podia. Pedia que nem sequer olhassem muito quando percebessem um ‘avião’ circulando pelo trem ou freqüentando excessivamente as mesas do carro restaurante. Outro riscos que Carlo corria era quando um ‘avião’ procurava se empregar na sua equipe para facilitar seu próprio ‘trabalho’. Era quando Rodolfo entrava em cena, investigando a vida do empregado. Principalmente quando o mesmo era de boa família, bem apresentável e, aparentemente sem necessidade de trabalhar naquelas condições. O problema é que, se pelo menos uma vez, uma viagem o ‘avião’ conseguisse fazer e a federal o pegasse, comprometeria todo o prestigio de Carlo D,Amantino. O cuidado deveria se estender a toda equipe pois qualquer garçom, cozinheiro ou vendedor poderia ser aliciado  pelos narcotraficantes para uma ‘viagem só’,como prometiam.

A tensão era muito grande em alguns trechos da viagem, quando sabiam que poderia haver uma batida policial em alguma estação. Ou mesmo quando percebiam agentes disfarçados, mas que já eram conhecidos de Carlo e Rodolfo. Sempre achavam que estariam de olho em sua equipe, que algum estava aprontando alguma. Havia um outro gerente de carro que também era muito confiável e muito competente mas que não era tão ligado a Carlo. Chamava-se Cirineu e era um ruivo gordo e sardento. Muito ruivo e muito sardento e, ainda usava óculos de grau e nunca tirava o quepe, que Carlo pedia para os gerentes não usarem. Apesar de muito gordo Cirineu era muito ágil e, principalmente, muito eficiente na gerencia de seu carro. Tinha uma voz fina que contrastava muito com o seu biótipo, mas era suave no comando e muito respeitado pelos membros de sua equipe.

Mas Carlo viajava pouco com ele. E Carlo não era muito ligado a ele porque se achava um pouco parecido com o mesmo. E talvez porque Carlo não se imaginasse tão gordo assim, no futuro. Cirineu tinha quase cincoenta anos e os maldosos estranhavam o fato dele ser solteiro ainda e nunca ter tido uma namorada (nem namorado,diziam).

Mas era um excelente cozinheiro; talvez o melhor que Carlo já tivera. Agora,na função de gerente, Cirineu preparava apenas sua própria refeição. E não dividia com ninguém,a penas com Carlo, quando viajavam juntos. E nessa hora conversavam muito e riam muito também.Carlo mantinha sob contrato 9 gerentes de carros restaurantes já que eram 6 trens rodando e havia necessidade de 3 folgas; e entre os nove não havia um que não merecesse sua confiança.Na verdade, havia pelo menos um  ano e meio que a maior parte dos contatos com os gerentes era feito pelo Rodolfo, embora Carlo soubesse de tudo o que se passava em seu negocio, mesmo a distancia. A verdade é que Carlo podia contar com todos os seus gerentes, profissionalmente. Pessoalmente, só com Rodolfo e Cirineu e talvez, Vicente, o negão do almoxarifado. Vicente Pedra, quase 1.90, mais de 100 quilos e um sorriso de orelha a orelha. Havia sido lutador de luta livre marmelo como ele mesmo dizia e por conta de um mal jeito na coluna desistiu de aparecer na TV. Começou a trabalhar  com Carlo no começo da concessão, mas já se conheciam desde o tempo em que se defendiam vendendo carros usados. Vicente  casou-se com uma fã, que o acompanhava em todas as suas lutas e que havia brigado com a família por causa disso. Era loira, muito bonita e alta como ele.

Dessa união nasceram duas lindas meninas que eram a paixão de Vicente. Por causa disso ele não viajava e apenas cuidava das compras e do almoxarifado em Bauru. Mas quando se encontrava com Carlo sempre havia um tempo para um churrasco, um carteado e muita conversa sobre pescaria. Era também sua diversão preferida. Carlo, apesar dos pesares gostava da churrascaria de Hassba e prometera a Vicente que o levaria para pescar em Corumbá e comer um ‘espeto corrido’ no Cedro de Hassba. Vicente vivia cobrando isso e se dependesse de Carlo iria demorar um pouco. Alem da tensão pela proximidade da renovação da concessão, Carlo estava muito preocupado com os rumores de uma briga entre os dois chefões do tráfico  por causa de um ‘pedido’ que deveria ser entregue a um estrangeiro em Bauru. Falavam de grande quantidade de pó e que o tenente queria entregar de todo o jeito. Dizia que seria sua ultima viagem. O boliviano de Santa Cruz tinha um ‘laranja’ em Corumbá, conhecido como fazendeiro, baixo, quase careca e com espesso bigode que quase lhe cobria a boca. Seus olhos pequenos transmitiam maldade e arrogância. Não era nada simpático, mas era bem aceito por todos por causas de suas constantes doações, sempre generosas as instituições da cidade. Era conhecido  como Coronel Barbosa; embora nunca fora militar e nem se chamava Barbosa. Na verdade, seu nome era Adamastor Viga e era um apontador do jogo do bicho no Rio de Janeiro, de onde teve que sair corrido por causa de um crime de morte. Por outro lado o tenente Nael era de Santos, mas também viera de uma base naval do Rio de Janeiro e nunca em sua, antes monótona, vida havia sequer visto um grama de cocaína antes de chegar a Corumbá.

Mas, conheceu uma ‘crucenha’ e ela o apresentou ao ‘mundo do brilho’, como dizia, e a partir daí usou sua inteligência para atender os amigos do Rio. A coisa foi crescendo, os amigos aumentando  e foi preciso montar um estrutura organizada para não ser surpreendido. Foi buscar um bom ‘fornecedor’ em Cochabanba, fez parceria com bons ‘aviões’ e a coisa estava feita.

No entanto, ele que se formara em bioquímica e viera prestar o serviço militar no laboratório do hospital naval de Ladário, estava prestes a dar baixa. Seus dois anos de serviço estavam se acabando e ele achava bom não ficar na Marinha.

Gostava muito dela para servir-se dela, para acobertar seus negócios sujos. Negócios, aliás que pensava em largar o mais breve possível. Nael tinha até mesmo contratado marinheiros como segurança e isso o incomodava um pouco. Os outros seguranças eram enviados pelos ‘amigos’ do Rio de Janeiro e eram bastante experientes no ramo. Alias, era isso o que Carlo mais temia; um confronto entre o grupo de Nael e do Coronel Barbosa. Já conversara varias vezes com Nael em um clube de carteado em Puerto Suarez, sempre superficialmente sobres temas banais. Nael não era um viciado; ás vezes ficava muito tempo jogando. Fazia o tipo ‘quietão’ e quando havia mulher por perto gostava de fazer o tipo ‘carente’, já que era alto, por volta de 1.85cm, magro e com os olhos sempre baixos, dando a expressão de estar sofrendo de amor. Tinha os cabelos lisos, bem pretos e brilhantes e gostava de ficar com eles entre os dedos, massageando-os. Dizia que as mulheres gostavam disso. Embora não fosse cruel, como era o Coronel Barbosa, era muito duro em seus negócios e não hesitava nem eliminar quem lhe atrapalhasse ou quisesse enganá-lo. Não convinha a Carlo relacionar com eles, mas era impossível ignorá-los. Nunca fora procurado por eles para uma ‘parceria’ mas era o que mais temia a cada encontro com qualquer deles. Afinal, o carro restaurante sempre foi considerado o ‘centro’ do trem e com muitos lugares ideais para camuflar uma remessa. Carlo sabia disso e insinuações maldosas vinham de toda parte, embora nunca tivesse cometido qualquer deslize nesse sentido. A Policia Federal por várias vezes já havia aberto geladeiras e armários em busca de qualquer coisa ilegal. Faltando pouco mais de dois meses para o término de sua concessão, Carlo e Rodolfo já haviam preparado toda documentação necessária para a renovação. Não haveria nada que atrapalhasse, pensavam. E foi em uma dessas viagens que a presença de dois passageiros alterou essa rotina. Numa das mesa, sozinha, Rodolfo notou uma mulher tão linda quanto enigmática. Alta, magra, longos cabelos negros, como seus olhos a fitar o nada e classe, principalmente, muita classe em seus gestos. Era por volta de 23 horas e portanto já estavam rodando há pelo menos duas horas em direção a Bauru. Rodolfo tentava fitá-la mas não conseguia encontrar o seu olhar. Apenas, quando ela se retirou em direção aos carros dormitórios, meia hora depois é que seus olhares se cruzaram. Rodolfo pensou em segui-la pra ver em que cabine estava, mas não pode sair do seu posto. No dia seguinte a veria, certamente. Perguntou ao chefe do trem se sabia quem era, mas nada conseguiu. Carlo saiu de sua cabine e vinha conversar com Rodolfo quando teve um encontro inesperado. O tenente Nael estava no corredor, como se estivesse a sua espera.  E estava.

–           Vim pra ter uma reunião contigo…

–           Comigo? Pra que?

–           É conversa séria… bem séria… posso entrar na sua cabine?

–           Claro… por favor…

–           Agora sei que ninguém vai nos ver e nem nos atrapalhar… quero lhe propor um negocio

¬          Negócio?

–           Daqui há um mês tenho que fazer uma entrega da minha mercadoria em Bauru. Quinhentos quilos.

–           O que!? Quinhentos quilos? E o que eu tenho com isso? Puxa vida, meia tonelada…

–           Vamos usar teu carro restaurante

–           O que???

–           Vamos embutir onde puder, onde tiver um espaço…

–           Pelo amor de Deus,de jeito nenhum

–           Nos vamos usar como enchimento da geladeira, do fogão, dos pés das mesas, onde der…

–           Vocês não pode fazer isso…

–           Claro que podemos… alias já estamos fazendo…. estamos adaptando um carro há duas semanas e nos íamos engatá-lo mesmo sem a tua permissão.

–           Mas, como?

–           E já estabelecido…

–           Como vocês acham que podem fazer isso?

–           Estamos observando vocês já há algum tempo

–           Isso não é o suficiente…

–           Eu sei… por isso é que estou aqui…

–           Mas eu não posso colaborar com isso… é fria…

–           É fria, se não colaborar. Estamos sabendo que o coronel Barbosa também quer usar o trem, já que pelo ar  não vai dar.

–           Mas eu não posso entrar nessa. Não posso me sujar agora. Posso perder o trem…

–           Não vai perder…a coisa vai ser bem feita…

–           Como assim?

–           O pessoal que esta adaptando o vagão é da Ferrocarrilles… da Orientales .É gente entendida… E depois esse pessoal vai ficar detido até uma semana depois da entrega da encomenda

–           Detido?

–           É. Não podemos nos arriscar que alguém saia comentando por ai……. Por isso vocês ficarão sob a nossa mira a partir de agora…

–           O que??

–           Infelizmente, não podemos fazer diferente… vamos colocar gente nossa com vocês até a entrega…

–           Vocês não podem fazer isso…

–           Temos que fazer…e vocês não podem demonstrar nada…nem nervosismo… nem medo… por isso quanto menos gente souber, melhor…

–           E se eu não quiser participar?

–           Acho que você não entendeu. Preciso fazer essa entrega e vamos fazer o que for preciso. Entendeu agora?

–           Entendi…

–           Vai dar tudo certo, fique tranqüilo. E ainda vamos reservar uma grana pra você, assim que tudo terminar… e alem disso, vai ser só essa vez…

–           Será?

–           Garanto que sim. Agora, vamos dormir. Só entrei no trem pra essa conversa contigo. Vou descer na próxima estação e pegar o ‘noturno’ que vem de Campo Grande para voltar pra Corumbá.

O tenente Nael saiu da cabine e deixou Carlo abatido e completamente sem ação. Já passava de meia noite e pensou em ir para o restaurante conversar com Rodolfo. Mas, como contar? Deitou-se e o chocoalhar do trem ao passar por um entrocamento lhe fez lembrar que estava próximo de mais uma estação. Talvez fosse Miranda, onde o trem para alguns minutos. Daria tempo de descer e pensar no que faria naquele ambiente. Mas, lembrou-se que o tenente Nael  também iria descer e ficou por ali mesmo.

Não sabe quanto tempo ficou naquela posição e nem se dormiu ou se ficou acordado, ressonando, mas quando se levantou e foi ao restaurante não encontrou mais ninguém. Eram quatro horas da manha e aquilo era normal. Por volta de cinco horas retornou e encontrou Rodolfo preparando seu próprio café. O cozinheiro chegaria em seguida e quando encarou Rodolfo, só podia dizer uma frase.

–           Estamos com um grande problema…

Rodolfo, ainda sonolento, não entendeu direito e por isso nem respondeu. Carlo também não insistiu e ficou segurando uma xícara vazia e olhando pela paisagem escurecida.

–           O que você disse? Pode repetir?

–           Eu disse que estamos com um grande e enorme problema.

E relatou a conversa que teve com o tenente.

Rodolfo parou de tomar o seu café e também ficou olhando pela janela. Eles sabiam que alguma coisa desse tipo poderia acontecer um dia. Mas não imaginavam que seria daquele jeito e nem tão rápido, tão perto da renovação  da concessão…

–           Isso pode ‘ferrar’ a gente.

–           Não só profissionalmente…

–           Eles matam mesmo…

–           A gente pode ir em ‘cana’…

–           Não teve jeito de sair dessa?

–           Não. Ele Foi muito claro. Já estão até adaptando outro carro.

–           Ele falou que o coronel Barbosa também tem uma entrega em Bauru?

¬          Sim. Só não sei se é a mesma entrega, entendeu. Se quem chegar primeiro, recebe, sabe como é?

¬          Sei. E como vão fazer pra resgatar a droga?

–           Lá é com eles. Devem desengatar, levar pra um daqueles galpões e tirar a droga.

–           Que esquema, heim?

–           É eles tem gente deles em todo lugar

Portanto só restava ficar esperando o grande dia. E os dias foram se passando, as viagens se sucedendo, ate que uma semana depois, Rodolfo viu a mesma mulher, e agora saboreando um delicioso filé de frango. Ficou a observá–la ostensivamente. Tão ostensivo que ela parou de comer. Ao perceber o gesto de empurrar o prato, Rodolfo esboçou um sorriso de desculpas e abaixou a cabeça. Ainda deu pra perceber que ela tinha voltado a comer. Rodolfo chamou o garçom e disse que quando ela pedisse a conta que o chamasse. Queria atende-la pessoalmente.

–           Estava bom o almoço?

–           Sim. Quanto tenho que pagar?

–           Antes, posso me sentar um pouco?

–           Não é bom…

–           Porque?

–           Tenho um primo viajando comigo… está na ultima mesa, a esquerda

–           Ah!

–           Ele conta pro meu papai

–           Ah!

–           Posso pagar a conta?

–           Sim. Claro, me desculpe.

Rodolfo pegou o dinheiro e foi buscar o troco no caixa, embora tivesse dinheiro no bolso para aquilo. Propositadamente, demorou um pouco pra poder observá-la mais. Viu que ela já lhe olhava um pouco mais. Viu também que seu primo era árabe, claramente. E que já estava na terceira cerveja.

Seria ela, árabe, mesmo? Ou teria mesmo nascido no Brasil?

Naquela região do Mato grosso havia muitos imigrantes libaneses. Seria ela uma libanesa?.

Rodolfo fez uma nota fiscal, fato não muito comum, juntou o troco, foi ate a mesa e arriscou;

–           Você é uma linda libanesa

–           Ah; obrigada, mas nasci em Corumbá

–           Desculpe, mais uma vez

–           Mas meus pais são de Beiruth

–           Ah!

–           Agora vou pra minha poltrona… ler um pouco

–           Vai pra Bauru?

–           Não; vou ate Campo Grande;, estudar…

–           Estudar?

–           É. Faço um curso de aperfeiçoamento três vezes por semana, a noite. Agora tenho que ir.

–           Foi um grande prazer conhece-la. Meu nome é Rodolfo e você é muito linda. Qual é o teu nome?

–           Yasmin. Bom dia

E assim, os sonhos de Rodolfo ganharam uma nova personagem, com nome e tudo. Demorou ainda quatro dias ate que sua escala coincidisse com a viagem de Yasmin. Ele havia sentido que ela queria conversar mas que não podia. Parece que havia um medo de seu primo pudesse interferir a qualquer momento naquela viagem passada. Nesta agora, lá estava ela na mesma mesa aguardando para ser atendida pelo garçon. E na mesma mesa do fundo, o mesmo primo. Mesmo assim, saiu do caixa e apressou-se para atende-la.

–           Ola, como vai?

–           Bem… quero uma refeição

–           Sim. Com bife acebolado ou file de peito de frango?

–           Este… de frango… com alface…

–           Tudo bem com você? Você continua linda

Rodolfo anotava o pedido dela demoradamente,    falando mais baixo, postando-se no corredor, procurando ficar de costas para o primo dela. No carro restaurante, de um lado as mesas são para quatro pessoas e do outro são menores, para duas pessoas, uma de frente para a outra.  Sobre as mesas sempre havia um cinzeiro e um vaso de metal com uma flor de plástico.

–           E vou mandar colocar uma rosa de verdade neste vaso só pra você

E saiu para providenciar o pedido de Yasmin.

Voltando para o caixa, Rodolfo passou a fitá-la sempre que podia. Quando o trem parava numa estação e a plataforma de embarque era do lado em que Yasmin estava sentada, Rodolfo descia e ficava olhando e olhando para ela já tinha voltado para sua poltrona e sentiu uma enorme frustração. Só o primo continuava lá, tomando a sua cerveja. O trem avançava Pantanal adentro e cortou uma grande tempestade. Teve que ajudar a abaixar os vidros das janelas. Justamente a do primo estava difícil de descer.  Pediu que ele mudasse de mesa e sentiu que o moço o encarava de forma diferente, um pouco agressiva. Por isso, nem insistiu. Viu que era um sujeito forte, por volta de 30 anos, nariz saliente, barba serrada e já meio calvo,. Carregava uma bolsa preta de couro a tiracolo, com a alça cruzada ao peito. Viagem longa é assim. Dava pra observar muita coisa, inclusive o volume saliente na bolsa com o justo formato de uma arma de fogo.

Demorou dois dias ate que Rodolfo e Carlo voltassem a se falar e a comentar o problema que teriam que enfrentar. A rotina transcorria normalmente e nem parecia que o dia da renovação da concessão estava tão próximo; pouquinho mais de um mês. O tenente voltou ao trem mais duas vezes para conversar mas Carlo não parecia  preocupado e conduzia normalmente os seis carros restaurantes que corriam diariamente ao mesmo tempo; 2 no ramal Campo Grande Ponta Porá e quatro na linha Bauru Corumbá. Como a comunicação era muito precária, ruim mesmo, ele usava o telegrafo da estrada de ferra para se informar. Mesmo assim o conhecimento da situação demorava para se complementar. Carlo, que não parecia preocupado, mas que estava muito, mais muito, preocupado mesmo. Ficava imaginando mil coisas que poderiam acontecer naquela viagem. Um carro restaurante recheado literalmente de cocaína, com ele e toda sua equipe dentro era uma bomba que poderia explodi-lo. Carlo pensava que, se a comunicação para ele, que dispunha dos recursos da estrada de ferro já era ruim, imagine então para os traficantes. Uma ligação telefônica demorava horas para se completar. Talvez tivesse  ai uma possibilidade de solução, se algo desse errado.

Mas, o que poderia dar errado? O carro restaurante a ser adaptado estava num galpão na Bolivia, logo depois de Corumbá. Ninguém, além dos bolivianos que estavam ‘recheando’ o carro, o tenente Nael, Carlo e Rodolfo, sabia da operação. No dia da troca dos vagões, Carlo que tinha autonomia sobre o seu carro deveria deixá-lo num ramal no pátio de manobras de Corumbá. De madrugada, uma locomotiva da Ferrocarrilles levaria o carro até o galpão e imediatamente traria o outro adaptado de volta, a tempo de engatá-lo na composição, na frente dos carros dormitórios.
De manhã, a composição se completava e iria embora, cumprir seu horário. O tenente havia dito que até o abastecimento de gêneros alimentícios ele faria. Nesta viagem,  segundo o tenente, sua escolta ficaria se revezando no carro restaurante o tempo todo de Corumbá a Bauru. Carlo tinha outra preocupação. E se o coronel Barbosa descobrisse?. E se o coronel Barbosa quisesse tomar a carga durante a viagem? Para os dois chefões não interessava o menor barulho.

Como isso poderia ser feito, então? Carlo estava cheio de medos. Rodolfo, por sua vez tinha também outras preocupações. E uma delas tinha um nome; Yasmin. Sonhava muito com aqueles cabelos lisos e negros roçando todo seu rosto e aquele corpo magro e alto sendo acariciados por suas mãos. Rodolfo tinha voltado a conversar com ela várias vezes e tinha notado nela um bom  interesse dela por ele.

Mas, não conseguia, nunca, mais que alguns segundos de conversa. Os olhares já estavam carregados de cumplicidade. Numa manhã, ao desembarcar em Campo Grande, ela , ao passar por ele, pegou em sua mão forte e disfarçadamente. O resto da viagem, até Bauru, ele ficou com aquela sensação e aquela vontade de revê-la. Na viagem seguinte ele arriscou a colocar uma nota fiscal com uma mensagem sua escrita no verso. Dizia de seu sentimento, maior que todos os trens do mundo inteiro, um atrás do outro. De tarde, quando ela veio tomar um café, ela respondeu com outro bilhete, colocado no meio do dinheiro para pagamento da conta. O trem saia de Corumbá bem de manha e chegava a Campo Grande no começo da noite.

Yasmin ia direto para a faculdade, dormia em um hotel perto da estação e pegava o trem que vinha  de Bauru e passava por Campo Grande por volta das oito horas da manha. Ela passava então dois dias dentro do trem, duas vezes por semana. Isso queria dizer que durante quatro dias inteiros ela estaria ali.  Rodolfo pensou em mudar sua escala, já que podia fazer isso, só pra poder estar com ela. Mas fez mais, colocou outro gerente em seu lugar dizendo a Carlo que precisava ficar livre do serviço de caixa durante um certo tempo. Mas, que ficaria no trem. Livre da responsabilidade, Rodolfo passou a conversar com ela, sentando-se inclusive na poltrona ao lado, lá no vagão da primeira classe. O primo da moça, que alias se revezava com outro primo da moça, olhava sempre  de forma  agressiva. Rodolfo nem se importava mais e passou a saborear aqueles conversas. Contou tudo sobre a sua vida e ficou sabendo quase tudo sobre o futuro dela. Reservadamente, pouca coisa ela falou sobre o seu passado e nada sobre a sua família. Mesmo assim parecia haver nascido um sentimento forte entre os dois embora não tivessem trocado sequer um beijo. Já pareciam dois namorados. Numa viagem, chegando a Campo Grande ele perguntou se podia ir com ela ate a faculdade. Ela se assustou e disse que seria muito fácil, já que seu primo ia com ela e a esperava numa lanchonete próxima a faculdade até ela sair e ir para o hotel. Muito apaixonada, ele se arriscou e perguntou se não poderia esperá-la no hotel, Ela disse que seria mais difícil ainda, já que seu primo ficava no quarto ao lado. Era impossível. Rodolfo disse que não seria se ele alugasse o quarto do outro lado e assim que o primo dormisse ela passaria ao quarto dele. Ele não iria para o quarto dela porque o primo escutaria a conversa pela parede. E assim, argumentos contra e argumentos afora, estavam ao dois numa cama de hotel e na madrugada, cada um para o seu quarto.

Rodolfo não cabia em si de tanta felicidade. Nada de tão maravilhoso havia acontecido em sua vida. Claro que já tivera várias aventuras, inclusive, dentro do trem, em várias cabines dos carros dormitórios, mas naquela vez havia um sentimento diferente e uma pessoa para lá de especial. Ele queria mais e ela achava arriscado demais. Rodolfo a convenceu e repetiram por mais vezes. Ela estava também apaixonada. E bem apaixonada, tanto que numa dessas viagens, quase um mês depois da primeira noite, ela se desarmou de uma vez:

–           Preciso de contar uma coisa…

–           Coisa boa ou ruim?

–           Ruim.

Rodolfo sentiu seu coração galopar. O que a voz daqueles enormes olhos negros poderia lhe dizer de ruim?

–           Meu pai tem uma churrascaria em Corumbá.

¬          Chama- se Cedro do Libano.

Rodolfo sentiu agora seu coração sair do ritmo.

–           Ah; seu pai é o Hassba

–           Sim

–           Ah; isso é realmente muito ruim, mas não me importo, todo mundo tem um defeito, brincou.

–           Não é isso que é ruim.

–           Não

–           Não? O que é então?

–           É que ele sabe que vocês vão transportar uma grande quantidade de drogas ate Bauru para o Tenente Nael.

–           Come ele sabe disso?

–           Uma cozinheira boliviana que trabalha para papai há muitos anos tem um filho trabalhando na montagem do carro restaurante. E ela contou para meu papai e meu papai vai denunciar para a Policia Federal bem no dia da viagem, todos serão presos e ele vai ganhar a concessão que ele tanto quer. Estou te contando pra você não viajar este dia.

–           Rodolfo ficou pálido. Não sabia se agradecia ou se a xingava. Continuou a olhá-la sem saber o que fazer. E ela continuou.

–           Quando te vi pela primeira vez e meu coraçãozinho disparou eu não imaginei que você fosse tão importante dentro de tua empresa. Eu achei que você era um simples funcionário. Hoje você controla o meu coração e eu não consigo controlar meus sentimentos. Por isso te contei

–           Acho que você me enganou

–           Não, por favor,não, não pense assim, não é verdade

–           Está bem, não vou estar naquela viagem. Mas não conte a ninguém que você me avisou.

–           Porque?

–           Você pode ser muito prejudicada se teu pai souber. Ele vai deduzir que estamos nos encontrando alem do trem, não é?

¬          Sim. É verdade. Agora estou preocupada com você

–           Não, não… estou muito agradecido por você se preocupar comigo e ter confiado em mim. Agora tenho que trabalhar um pouco… volto logo… beijinho…

Rodolfo estava atordoado. Até se surpreendeu com tanto auto controle. Carlo não estava naquela viagem e na verdade ele nem sabia onde encontrá-lo naquele momento. Voltou algumas vezes perto de Yasmin e trouxe-lhe café, refrigerante sem se preocupar-se com o segurança. Queria lhe agradecer de alguma forma. Ao descer em Campo Grande ela deu-lhe um beliscão carinhoso nas costas. Ele sorriu e a viu sumir rapidamente no tumulto da plataforma. Dejair, o responsável pelo depósito da empresa de Carlo em Campo Grande, como sempre estava a sua espera e Rodolfo pediu que ele mandasse um telegrama para o escritório em Bauru.  Já passava das 19 horas em Campo Grande, portanto mais de 20 horas em Bauru. Estava torcendo para Vicentão ainda estar lá. No telegrama, pedia para Carlo ir de carro ate Araçatuba ou Andradina, encontrar-se com ele. O apelo era desesperador e Dejair ate se assustou. Mas Dejair daria um jeito dele mesmo passar o recado sem que o telegrafista soubesse.

Ele sempre conseguia isso. Quando pela manhã o trem parou em Andradina, lá estava Carlo, com a sua Kombi nova e seu aspecto cansado.

–           O que aconteceu?

–           Uma bomba vai explodir sobre a nossa cabeça

–           Conta logo…

E Rodolfo contou, em poucas palavras a novidade.

Sentados num banco da estação nem escutaram o primeiro apito do trem anunciando a partida. No segundo e ultimo apito,  Carlo pediu que Rodolfo subisse no trem, já em movimento que ele iria de carro e o esperaria em Araçatuba. De carro ele faria o trajeto em uma hora, mais ou menos, mas trem demoraria três ou quatro horas. Era o tempo que Carlo precisava pra pensar e arrumar alguém para assumir o lugar de Rodolfo para irem de carro ate Bauru. Em Araçatuba não morava nenhum gerente mas havia um garçom que Carlo confiava. Por sorte ele estava de folga e pediu que embarcasse pra substituir Rodolfo. Já com Rodolfo no carro e algumas idéias na cabeça, puseram-se na Rondon pra Bauru.

–           Vamos destrocar os vagões

–           Como assim?

–           Durante a viagem, em algum ponto, nos vamos destrocar os vagões…

–           Os carros restaurante, você esta falando? Trocar os carros restaurante?

–           É; vamos fazer a troca sem eles perceberem…

 –          Ficou maluco? Como fazer isso?

–           Não tem aquele galpão, lá em Três Lagoas, onde nos já deixamos um carro uma vez, lembra?

–           Lembro. Era pra que trocassem o freezer. Isso faz uns dois anos.

–           Sim; nos pegamos o carro reserva em Araçatuba e deixamos o quebrado em Três Lagoas. Você se lembra como foi uma manobra rápida?

–           É, me lembro. Lembro também que é um desvio pequinininho.

–           Isso, não da um quilometro de volta, já bifurca e já volta. Precisa só dois caras pra fazer isso.

–           Ta bem. O que você esta pensando?

–           Quantos dias nos temos?

–           10,12 dias talvez.

–           Você acha que em dois ou três dias nos não conseguimos ver o vagão que eles vão trazer?

–           De que jeito?

–           Ir lá na Bolivia, olhar o vagão pra gente preparar um igualzinho

–           Impossível!

–           Impossível é a gente perder a concessão para o libanês e ainda  ser preso por um monte de anos.

–           E ainda correr o risco de morrer na cadeia a mando do tenente.

–           Vai ter que ser possível. E como a gente vai fazer isso?

–           Não sei ainda mas temos que fazer; temos que ver o vagão por dentro e os detalhes que fazem a diferença e preparar um igual

–           Em dez dias…

–           Não é tão difícil. Os carros são praticamente  iguais. O que é que muda?

–           É verdade, muda só as toalhas os enfeites

–           Podemos procurar o tenente e dizer que queremos colaborar com a decoração, pra ninguém desconfiar

–           E você acha que ele vai acreditar?

–           Acho que sim. A gente fala que é o pescoço da gente que esta na corda, que a Federal pode desconfiar se perceber mudanças, etc, etc…

–           Entendi

–           E a gente pode falar que é a gente que quer que tudo de certo, pra gente ficar livre disso, logo…

–           E como a gente vai fazer isso, Carlo?

–           Não sei vamos pensar

–           E a troca do vagão? Como agente vai fazer?

¬          Eles vão estar viajando o tempo todo

–           Calma… pensar… pensar   

–           Isso é loucura, parece filme policial

–           Parece. Só que é de verdade, por isso pense, Rodolfo, pense.

–           Tá. Vamos recapitular. A gente já sabe que o Hassba vai ‘entregar’ a gente pra Federal bem no dia da entrega. Acho que ele não vai ‘dedar’ antes porque ele quer que o transporte aconteça.

¬          Alem disso, ele só vai saber o dia da entrega porque o filho da cozinheira vai lhe dizer. Vamos contar pro tenente então. Ele vai ‘abortar’ a operação.

–           Nem pensar. Ele vai achar que agente inventou essa estória só pra não fazer o transporte e ai a gente pode se ‘ferrar’ com ele. Desconfiado do jeito que ele é.

¬          Então a gente vai chegar em Bauru, a policia vai subir no carro restaurante, assim que o trem parar na plataforma, vão estourar uma parede qualquer, ver a droga e prender a gente. E não podemos dizer que não é nossa senão o pessoal do tenente mata a gente, mesmo na prisão.

–           Puxa Rodolfo, fala isso com jeito senão eu vou ter um’ troço’ e capotar a perua.

–           Muito bem; e eu fiquei Sabendo disso pela minha garota Yasmin que, desgraçadamente, é filha daquele cachorro…

–           Isso foi uma baita sorte…

–           Pois bem; Então a gente tem que subir com dois carros amanha e deixar um Três Lagoas.

¬          Podemos fazer isso ?

–           Claro, deixa comigo

–           Aí nos temos que dar um jeito de ver o vagão deles 

–           É

–           E temos que, a uma da manhã, que é o horário que o trem passa em Três Lagoas, Fazer a troca dos vagões. Muito fácil.

–           Você acha?

–           Claro  que não, Carlo. A gente vai estar sendo vigiados o tempo todo, lembra- se ?

–           Então temos que resolver esse probleminha.

–           Como?

–           Não sei ainda… aceito sugestões, Rodolfo

–           Que tal dar um ‘fogo’ neles?

–           Aqueles cães de guarda??. Nem pensar, você já viu eles com o tenente Nael?

–           É mesmo. Os caras parecem máquinas. Nunca falam nada. Sentam num canto e ficam lá. Não olham diretamente mas percebem tudo. E aquelas camisas largas escondem revolver, faca tudo o que der pra acertar alguém, sabia?

–           Claro. Rodolfo

–           E se a gente por um pózinho no café pra eles dormirem?

–           É, pode ser. Café eles tomam pra caramba… e onde a gente arruma isso?

–           Deixa comigo, Carlo. Conheço vários propagandistas de laboratórios farmacêuticos; quando viajam não saem do carro restaurante. Vou atrás deles amanha.

–           Amanha, não. Hoje mesmo. Eles não moram em Bauru?

–           Tá certo. Vou ver se acho alguém hoje mesmo. Se ele não tiver vai me indicar quem tem

–           E se isso não der certo Rodolfo?

–           Não der certo o que? Por os caras pra dormir?

–           Não. Essa coisa toda; Trocar o carro… com tantas armas apontado pra gente…

–           Calma Carlo; que mais a gente pode fazer?

–           Então, vamos pensar direitinho, Rodolfo. Vamos chegar em Bauru e ver com o que e com quem a gente vai poder contar. Vamos chamar o Cirineu e o Vicentão. Vamos mexer as peças.

E assim foi. Passaram a tarde toda ‘arredondando’ o esquema. Cirineu e Vicente Pedra, que não tinham a menor idéia do que estava acontecendo e por isso, sentiram–se levemente ‘traídos’. No entanto, após tomarem conhecimento do tamanho do problema elogiaram Carlo e Rodolfo por estarem agüentando tudo sozinhos, por tanto tempo. Com sugestões de todo lado, foram montando toda a operação.

Lembraram–se de Dejair, o responsável pelo almoxarifado de Campo Grande e também merecedor de toda confiança de todos. Aí, listaram outros amigos ferroviários que pudessem ajudar nas manobras, embora sem que soubessem a exata dimensão do problema. Simplesmente prestariam um favor, mas não poderiam dizer para ninguém, nem mesmo em casa. No dia seguinte a composição subiu com dois carros restaurantes e o vazio foi desengatado em Três Lagoas. A manobra foi cronometrada e demorou exatos 18 minutos. Carlo achou que era muito tempo. Vicente ficou em três Lagoas, Cirineu em Campo Grande e Rodolfo e Carlo seguiram ate Corumbá. Cada um tinha uma tarefa. Três Lagoas fica a pouco mais de 50 km do Estado de São Paulo e a ferrovia passa ao lado da hidrelétrica de Jupiá. O rio Paraná, represado, formou um imenso lago e junto com a hidrelétrica de Ilha Solteira, um pouco acima formou o Complexo de Urubupungá. Carlo havia pescado muito ali, também, mas preferia mesmo o Rio Paraguai. Três Lagoas também tinha algumas oficinas da estrada de ferro e ali havia ferramentas e homens disponíveis para ajudar, se preciso. Mas Vicente contava mesmo era com o seu pessoal que viria de Bauru,  só pra fazer as manobras. Além disso, Vicente tinha que preparar o ambiente para a troca e isso incluía um bom serviço de relações públicas com o pessoal da estação. Cirineu ficou em Campo Grande e junto com Dejair providenciaram o que fosse preciso. Rodolfo teria que obter todas as informações possíveis de Yasmin para conhecer os passos de Hassba. Carlo, por sua vez, teria que convencer o tenente Nael a deixá-lo ver o vagão. Surpreendentemente, Carlo não teve nenhuma dificuldade e foi levado com toda educação ate o galpão, na Bolivia. Viu que o carro era uma replica perfeita dos seus. E viu também um ex-funcionário seu servindo de ‘consultor’ para o pessoal do tenente. Ficou sabendo que o carro já estava pronto e que haviam feito as paredes pelo sistema de encaixe, embora parecessem soldadas e algumas até mesmo pareciam rebitadas.

Nas portas das geladeiras, metade era de lã de vidro e metade era de embalagens de cocaína. Até numa das laterais do balcão do caixa havia drogas e Carlo achou que havia ate mais que 500 quilos. E havia mesmo… Praticamente em toda a extensão das duas paredes laterais do vagão havia pó. Fazendo-se de pouco interessado com isso pediu para colocar os objetos mais comuns que era usados pela equipe.

Alguns objetos, como os comandas do restaurante e os panos de prato, ele traria outro dia. Procurou mostrar-se bem cooperativo ao mesmo tempo em que procurava fixar todos os detalhes do carro como marcas, cores e outros. Disse também que traria a relação de mantimentos já que não haveria tempo para o abastecimento em Corumbá e chegava por volta das 15 horas do dia seguinte em Bauru. O tenente Nael sabia que aquela ‘colaboração’ era bem vinda e naquelas 30 e poucas horas quanto menos problemas, melhor. Ao ser perguntado sobre o dia da grande viagem o tenente Nael disse apenas que seria logo. ‘nos próximos dias,’ completou.

Carlo foi levado de volta para o hotel em Corumbá e relatou a Rodolfo tudo o que viu. Colocaram no papel e repassaram varias vezes a operação. O trem passaria por Três Lagoas por volta da uma hora da manha. Pouco antes, os seguranças do tenente teriam que tomar um café com o sonífero. O próprio Rodolfo cuidaria de servi-los… Antes era preciso identificar esses seguranças; saber quantos eram e onde estavam. Carlo lembrou- se de Otoniel, um agente da Policia Civil de Corumbá que conhecia muito bem a bandidagem. Otoniel era seu companheiro de pescaria e não seria difícil convencê-lo a ajudar, já que bastaria dar a ele seu motor de popa que estava numa revisão em Campo Grande. Uma coisa que ele sempre cobiçava. Uma vez colocados os seguranças fora de ação era preciso chegar a Três Lagoas onde a parada normal era de cinco minutos e trocar o vagão em 18 minutos. Teriam então que inventar uma estória para o agente da estação de Três Lagoas e outra para o chefe do trem do dia. Mas que estória? Um trem parado sem motivo atrapalha o trafego de outras composições… Na linha já estavam trens de carga e trens de passageiros que precisavam ser monitorados e sincronizados. Decidiram que de Campo Grande mandariam um telegrama para Três Lagoas, dizendo que o freezer queimou, não dava conserto e que por sorte havia um igual em Três Lagoas. Era preciso fazer a troca. Dejair ficou encarregados dessa tarefa. Em Três Lagoas, Vicente cuidaria então que o pessoal do pátio de manobras estivesse a postos naquele momento, sem entrar em maiores detalhes. Tudo parecia caminhar bem e o dia já anunciado se aproximava. O problema era que quando chegasse a Bauru e não encontrasse a droga, como falar com o tenente Nael e seu pessoal. Diriam a verdade, é claro. Afinal estavam salvando a mercadoria e apontariam o Hassba como o grande vilão da estória. Num outro dia eles poderiam trazer o vagão com um risco muito menor. Era preciso mostrar para o tenente que havia uma armadilha na operação e torcer pra ele não matar o filho da cozinheira. Rodolfo parecia seguro e continuava dormindo em Campo Grande toda vez que Yasmin ia para a faculdade. Só que numa noite, bem perto da ‘grande viagem’, como ficou conhecida, Yasmin não foi acompanhada pelo seu primo, mas por seus dois irmãos e Rodolfo não percebeu isso, já que nem se preocupava em conversar com ela durante a viagem pois estaria com ela a noite inteira. Trocaram apenas alguns leves cumprimentos e ele não entendeu porque ela estava diferente. Angustiado com o seu problema, Rodolfo não percebeu o dela.

Quando, bem a noite, ele deu um aceno pra ela já na porta do hotel, sentiu apenas uma forte pancada no ouvido e foi jogado dentro de um carro que já estava com a porta aberta. Como era tarde, quase meia noite, não havia ninguém que pudesse ajudá-lo. Os  dois irmãos de Yasmin o levaram para fora da cidade e deram-lhe uma enorme surra e dois tiros.

Um pegou na barriga furando seu intestino e outro pegou na virilha. Queriam acertar ‘lá’. Achando que ele estava morto os dois voltaram para o hotel e Rodolfo só foi socorrido de manhã por um fazendeiro que passava de caminhonete. Levado ao hospital, inconsciente e precisando de transfusão. Por sorte não lhe tiraram os documentos e o hospital entrou em contato com a estrada de ferro. Só que Carlo ficou sabendo dois dias depois, às vésperas da ‘grande viagem’. Pelo menos Rodolfo estava vivo e a viagem seria no dia seguinte. Carlo chamou Cirineu pra fazer a parte de Rodolfo no trem. Cirineu seria o gerente e colocaria os seguranças fora de ação. Só que o tenente Nael surpreendeu Carlo dizendo que o pessoal do restaurante seria seu; o gerente, o cozinheiro e três garçons. Carlo chegou a entontecer. Faltava menos de 24horas para o seu fim como cidadão e empresário e ele andava pelas ruas de Corumbá como um robô. Ai lembrou dos vendedores, seu ‘companheiros’. Chamou Cirineu no hotel em que estavam e expôs suas idéias.

–           Não vai dar certo chefe. Os caras são velhos, lentos de cabeça.

A voz fina de Cirineu desta vez o irritou

–           Não fale assim. Tem o Paquito, que é gente finíssima, tem o Ranulfo e o Custodio também. Eles estão com a gente desde o começo. Onde eles estão agora?

–           Eu não sei de cabeça quem vai chegar nessa próxima composição. Sei que aqui em Corumbá esta o Ranulfo Dourado.

–           Aquele do dente de ouro?

–           Ele mesmo. Ele tem umas mulheres aqui.

–           Umas?

–           É. O cara é feroz.

–           Pega um táxi e vai buscá-lo pra mim. Eu te espero lá no El Pacu. E se tiver outros da equipe com ele, não traga. Quero só o Ranulfo. Ele me deve uns favores. E ele é bom.

Carlo desceu ate o cais do porto e foi recebido pelo Hermann, dono de El Pacu. O alemão ficou surpreso com Carlo tão cedo ali e percebeu que ele estava angustiado.

–           Um grande problema, amigo, mas não posso te contar

–           Está bem. Quer uma cerveja ou uma ‘purinha’.

–           Um café.

–           O que? Está bem…

Carlo olhava os barcos e o Rio Paraguai e isso o acalmava um pouco. Enquanto esperava imaginou-se ferrando um pintado enorme logo depois da primeira curva do rio. Lembrou-se de pescaria inesquecíveis que havia feito ali, começando mesmo por aquela primeira curva rio acima. Será que ficaria sem isso? Um arrepio fez com que ele lembrasse de Otoniel e que teria que conversar com ele pra acertar os últimos detalhes. Afinal a viagem seria no dia seguinte. Otoniel iria apenas ate Campo Grande, o suficiente para indicar os seguranças do tenente Nael. Em Campo Grande Dejair lhe entregaria o motor, ate com a nota fiscal da oficina de revisão. Assim que Cirineu chegou com Ranulfo, Carlo pediu que aproveitasse o mesmo taxi e fosse buscar Otoniel. Ranulfo sentou- se a frente de Carlo e ouviu toda a estória sem interromper com um gesto sequer. Quando Carlo terminou, quase uma hora depois, Ranulfo quase chorava

–           Nos vamos dar um jeito, chefe.

–           É o que eu estou procurando, Dourado, mas que jeito?

–           Se o problema é a falta de Rodolfo pra adormecer os ‘meninos’ deixa isso comigo. A gente é que vende café no trem, lembra?

–           É mesmo rapaz.

Ranulfo tinha 62 anos e o apelido de Dourado por causa de um dente de ouro que ostentava com orgulho. Fora lavrador e ganhava a vida em Bauru limpando terrenos com uma enxada velha. Um dia foi oferecer seus serviços pra limpar o matinho da calçada da casa de Carlo que acabou lhe oferecendo um emprego de vendedor no trem.

Registro em carteira e tudo. Ranulfo, que não tinha nem carteira profissional, lhe agradeceu muito Era um homem forte, de voz pausada e olhar agudo.

Muito honesto mas analfabeto sabia apenas fazer pequenas contas e rabiscar seu nome, Tudo ensinado por Carlo. Era viúvo, tinha dois filhos mas não morava com nenhum deles. Morava numa pensão em Bauru, mas sempre que podia ficava em Corumbá, por razões que só agora Carlo entendia.

–           Então. A gente não oferece café a toda hora, entende? A gente deixa eles com vontade. Eles fumam bastante. Conheço esses sujeitos. Na hora exata já entrego o copo certo.

–           É, pode funcionar. E os caras do restaurante?

–           Isso ainda não sei. São cinco não é mesmo?

–           Cinco. E um deles é ex funcionário nosso

–           Ah! Você o conhece? Sabe de alguma falha dele? É viciado?

–           O que eu sei é que ele é muito mulherengo

–           Tai; conheço umas chiquitas muito boas para isso.

–           Pra isso o        que?

–           Ué, chefe, tira-los de ação. Ou do carro restaurante na hora que for preciso

–           Entendi. Precisa reservar as cabines pra isso. E os outro quatro?

–           Isso eu também não sei ainda, chefe

–           Só precisamos distraí-los por meia hora, fora do carro restaurante

–           Mas, como?

–           Sim, como?

–           Preciso falar com meus companheiros.

–           Você acha que da pra confiar?           

–           Ah; claro. Sabe todos eles são muitos gratos a você e numa hora dessas ninguém vai ‘arrepiar carreira’

–           Acha? Saiba que se não der certo todos os que estiverem no trem vão em cana

–           Eu não acho, eu tenho certeza que todos vão colaborar

–           precisamos achar o Custodio e o Paquito. Se nos pudermos contar com eles não precisamos envolver mais ninguém

–           Eles devem estar subindo. Chegam hoje a noite.

–           E será que eles já descem pra Bauru amanha?

–           Claro. Não precisa nem pedir, é só contar pra eles toda a estória…

–           Ô Dourado, você ta me envolvendo a confiança

–           Que é isso, chefe. Olha o Cirineu, com um sujeito, chegando ali.

–           Ah; que bom. Vai um pouco com o Cirineu ali no muro do cais. Deixa eu falar sozinho com esse cara, ta bom?

–           Claro, Chefe.

Otoniel não sabia da operação. Carlo havia pedido apenas que identificassem todos os marginais que estivessem na composição, mesmo que não fossem da quadrilha de Nael. Era só isso que Carlo precisava. Otoniel era um bom companheiro de pescaria, divertido e bom contador de piadas, mas era também um policial de fronteira, difícil de confiar…  Queria naquela hora, saber se Otoniel iria atender o seu pedido e o mesmo respondeu que sim; principalmente se a doação do motor de popa estivesse valendo. Carlo confirmou que Dejair lhe entregaria o motor assim que descesse em Campo Grande. Acertado tudo, Otoniel usou o mesmo taxi pra ir embora. Carlo fez um sinal para Cirineu e Ranulfo se aproximarem. Cirineu continuou onde estava e fez um sinal com o dedo indicador, com a mão colocada ao peito. Indicava um carro com dois sujeitos dentro parecendo vigia- lo. Carlo não reconheceu nenhum mas levantou- se e foi ate eles.

–           Vocês estão me vigiando?

Ficaram em silencio

–           adelante; habla cabrón…

–           O tenente não vai ficar nada satisfeito quando agente contar que você estava falando com gente do coronel Barbosa

–           O que é que vocês estão falando? Desce do carro, hombre!

–           Yo no soy cabrón? Aquele policia que estava na tua mesa trabaja para el coronel.

–           Mas eu não sabia disso. A gente pesca junto

–           A gente sabe disso, mas ele é do coronel

–           Meu deus!

A decepção de Carlo era tão evidente que os capangas acreditaram

–           Cuidado hombre, cuidado

–           Ok; estou realmente surpreso.

Os dois homens ligaram o carro e foram-se. Cirineu e Ranulfo Dourado se aproximaram e quiseram saber o teor da conversa. Quando Carlo lhes contou, Cirineu não se conteve

–           Agora sim, ‘ferrou’

–           Talvez não, é só ele cumprir a parte dele

–           O que será que ele vai pensar quando ele encontrar no trem, só gente do tenente?

–           Não sei!

–           Eu sei, chefe. Ele vai deduzir que o trem esta levando uma carga preciosa pra Bauru. Vai ligar os pontos, descer em Campo Grande, ligar para o Coronel e armar uma emboscada para a gente…

–           Caramba!

–           E agora chefe?

–           Não vamos deixar ele descer em Campo Grande…

-………

–           Ele vai tomar uma dose reforçada do ‘café especial’…..certo Dourado?

–           Certo, chefe… assim que você me der a ordem, ponho ele pra dormir.

–           Combinado. E o que agente faz com o pessoal do restaurante. Um a gente põe nas mãos da guria; e os outros?

–           A gente pode por dois nas mãos das gurias; eles gostam desse tipo ‘de programa’.

–           Certo, Dourado; contrate duas gurias então.

¬          Vamos pensar nos outros três.

Enquanto conversavam, o tempo passava e já era hora de almoço. Pediram costelas de pacu com arroz e cervejas. Não havia muita coisa a fazer. Não havia como comunicar com Vicente em Três Lagoas, nem com Dejair em Campo Grande. Achavam que o telegrafo de Corumbá estava vigiado. Será que Vicente estava a postos? Quanta falta Rodolfo fazia, comentava Carlo, enquanto se lambuzava na gordura da costela de pacu, misturada com farinha de mandioca. Começo da tarde, os três pegaram um taxi e foram para a estação, que ficava do outro lado da cidade. A estação tinha raros horários e o Noturno que saia de Campo Grande era conhecido como litorina e era bem rápido e confortável. 

Chegava em Corumbá de manhãzinha. Em seguida saia o trem para Bauru e a noite por volta das 20 horas chegava o que saira de Bauru, por volta das 16 horas do dia anterior. Havia também um horário da Ferrocarrilles Boliviana que fazia o trajeto baldeando ate Santa Cruz de la Sierra. Fora isso, a estação era de uma calma total. Os três foram ate alguns vagões dormitórios que iam ser engatados na composição do dia seguinte e em silencio cada um ficava pensando como tirar, bem próximo a Três Lagoas o pessoal da cozinha do carro restaurante…

Tinha que ser o mínimo meia hora antes e começaram a lembrar de estórias, ‘causos’ filmes e nada se aplicava a realidade do momento

–           Vamos jogar eles do trem, chefe…

–           Calma, Dourado…

–           Vamos jogar um carteado, pra ‘matar o tempo’?

–           É pra já…

Estavam numa cabine dupla jogando pôquer, usando uma taboa entre as pernas como mesa, quando se assustaram com dois homens que surgiram silenciosamente do nada…

–           Que passa? Pergunta Carlo

–           Nada. Estamos passeando…

–           Passeando, é? Querem jogar?

–           Vale?

–           Por enquanto, não, é só pra passar o tempo…

–           Só se valer

–           Tá bem, mas pouca coisa…

E os cinco jogaram por mais ou menos duas horas.

Carlo perdeu um pouquinho, Cirineu perdeu mais um pouquinho e Ranulfo teve um pouquinho de sorte.

Um dos homens de Nael ganhou bem e o outro ganhou pouco. Ai Carlo se encheu.

–           Chega, já é quase 6 da tarde, vou tomar cerveja no El Pacu. Quem vai?

Cirineu e Ranulfo toparam e os dois capangas não podiam ir.

–           Vocês trabalham pro tenente há muito tempo?

–           Um tempo

–           Ah! Não querem ir mesmo?

–           Não. A gente tem que esperar aqui.

–           Está bem. Ate amanha então.

–           Até.

Chegaram no El Pacu e o sol ainda brilhava forte naquela terra branca e quente. Ranulfo tomou alguns copos e foi atrás das meninas para a viagem.

Carlo e Cirineu estavam tranqüilos porque o restaurante seria abastecido pelo tenente.  Pareciam estar de folga, turistando… Só que a cabeça estava confusa, procurando respostas… Conversaram sobre o carteado, sobre pescaria e todos sabiam que quem estivesse naquele vagão quando o trem chegasse a Bauru seria preso pela policia federal se o plano não desse certo. E o plano estava complicado justamente porque não tinham mais o controle sobre o carro restaurante. Já escurecia quando um carro parou próximo a mesa deles e o motorista desceu pra pedir que Carlo o acompanhasse… Ao chegar  no carro, entrou e nele encontrou o tenente Nael a sua espera.

–           Tudo certo pra manha?

–           Claro. Da nossa parte não há nada a ser feito mesmo. Vocês vão ate cozinhar e servir, né?

–           É. Mas vocês podem ficar com o caixa depois.

–           Ah! Obrigado…

–           Fiquei sabendo que você conversou hoje com aquele safado do Otoniel.

–           Conversei. Eu não sabia mesmo que ele era homem do Coronel Barbosa.

–           Acredito. Pouca gente sabe. Do que falaram?

-De um motor de popa que vendi pra ele. Vou entregar amanha em Campo Grande.

–           Amanhã?

–           É. Alias, nem vai ser eu quem vai entregar. Tem um companheiro meu lá esperando por ele com o motor já embalado. Ele vai pegar o motor e voltar na Litorina, no noturno.

–           É só isso?

–           Claro. A gente pesca junto, sabia?

–           Sabia. Fiquei contente também que você jogou um pôquer com meus homens.

–           Ah! Me levaram uns dólares, os danados…

–           Acho bom isso…

–           O que? Levaram meu dinheiro?

–           Não. Falo desse entrosamento. Amanhã eles estarão no trem. É bom haver uma cooperação. Nada pode sair errado.

–           Claro; não vejo a hora disso acabar. Não vai ter outra, vai?

–           Não. eu te garanto, pode ficar tranqüilo. Agora vai tomar sua cervejinha. Depois de amanha eu te espero em Bauru.

Carlo saiu do carro do tenente; que saiu dali rapidamente. Quando voltou para a mesa parecia tranqüilo e conformado.

–           O que ele queria?

–           Ver se esta tudo certo pra manhã. Coitado. Vai se ‘ferrar’ comigo. Se a troca der certo ele ainda pode ter uma chance . E eu estarei livre do Hassba

–           Porque?

–           To pensando em aprontar uma boa pra ele

–           Como assim?

–           Não sei ainda. Mas ele vai me pagar por isso e pelo que os filhos dele fizeram com o Rodolfo.

Algum tempo depois foram para a estação esperar o trem que chegava. Conversou com o gerente, fez o caixa, falou a todos do restaurante, dizendo que não voltariam trabalhando e que deixasse a limpeza do carro para outra equipe. O carro ia ser desengatado e passar por uma desinfecção. Enquanto isso Ranulfo se reunia com a equipe de vendedores e chamou Custodio e Paquito para uma conversa no hotel. Contou- lhes toda a estória e perderam o sono, obviamente. Claro que o Paquito disse que Carlo podia contar com toda a equipe, só que não sabia o que fazer. Ranulfo disse que trabalhasse normalmente, vendendo café, refrigerantes, refeições, revistas, doces e biscoitos. Aguardariam ordens do chefe.

Tentaram dormir um pouco e logo de manhazinha já estavam no trem. Carlos e Cirineu, normalmente confundidos como irmãos estavam mais juntos do que nunca. Custodio, mineiro, negro de estrutura baixa, cabelos e bigodes já branqueando, possuía uma bela barriga e um belo sorriso. Era muito forte, apesar de seus 166 cm. Paquito é que era magrinho, cabelos lisos negros e um bigodinho fino. Era meio seresteiro e vivia cantarolando musicas do Nelson Gonçalves. Foi Paquito quem me deu uma boa noticia.

–           Ô, chefe, o Vicente disse que esta tudo certo.

Disse que esta tudo pronto e todos a postos. Não entendi nada na hora. Só agora que entendo…

–           Muito por ai?

–           Ainda não, chefe

–           Cirineu, dá uma conferida, ‘sem dar bandeira’.

Depois volte aqui.

–           Ok, chefe.

–           Ranulfo, assuma o comando das vendas e distribua o material. Comece com revistas e jornais. E o café, é claro… cada um pega um. E acomode as gurias na cabine delas.

–           Certo, chefe: vamos pessoal.

Carlo, em sua cabine, esperou Cirineu voltar com a informação sobre a presença ou não de Otoniel no trem.

–           Ele esta no terceiro carro da primeira classe., chefe. Subiu bem na hora que o trem foi partir.

–           Certo. Vamos agora dar uma chegada no carro restaurante e ver se esses caras sabem pelo menos fazer um bom café.

–           Legal, chefe…

O trem já havia adquirido sua velocidade normal e ladeava o Morro do Urucum, Corumbá, com todo o seu calor e a sua beleza, ia ficando pra traz.

–           Chefe, sabe também quem eu vi no trem?

–           A policia…

–           O libanês Hassba

–           Desgraçado…

–           E tem um cara mais novo com ele. Parece filho dele.

–           Mas, que ‘cara de pau’, ele quer ver a minha prisão, o maldito…

Carlo ficou muito irritado com tanta ousadia. Por certo Hassba já havia avisado a policia federal e ia ate Bauru na certeza de ver um grande espetáculo.

Carlo e Cirineu sentaram- se numa mesa próxima ao caixa e de imediato reconheceu aquele ‘gerente’.

Era um dos capangas que havia jogado pôquer com ele no dia anterior. Viu também que um dos garçons era o outro. Pediu o café e fez um pequeno cumprimento ao ‘gerente’. Tomou um gole, levantou os olhos e olho fixamente para Cirineu.

–           Já sei…

–           Que foi, chefe?

–           Já sei! Já sei!

–           O que; Carlo, fala ai…

–           Já sei; acho que já sei; Pague o café e venha comigo

–           Mas, nem tomei ainda…

–           Anda, vem comigo

E saíram rápidos, em direção a cabine de Carlo.

Fecharam a porta e Carlo falou direto;

–           já sei como deixar o restaurante vazio quando for chegando em Três Lagoas.

–           Sabe? Como? Fale logo!

–           Nos vamos trazer aqueles caras aqui para fazer um carteado

Cirineu estava entendendo, balançava a cabeça afirmativamente mas não dizia nada. Parecia muito fácil…

–           Espera ai; são só dois que jogaram cartas com a gente; um Ranulfo vai usar as meninas. E os outros dois?

–           Vamos ver se dois vão com as meninas. E os outros dois?

–           Isso não é possível acontecer.?

–           Acho que é. Um chama o outro.

–           Ai sobra só um. Vai chamar o Ranulfo; corre!

Carlo animou- se. Otoniel ia começar a indicar os seguranças de Nael a partir de Miranda. Para a identificação precisa Cirineu iria com o chefe do trem picotando os bilhetes e Otoniel, em pé, no fim de cada vagão, ia fazendo sinal com a cabeça, quando o marginal entregasse o bilhete. Cirineu estava com uma prancheta na mão e num papel ia anotando a posição da poltrona do segurança. A ordem de Carlo era pra servir o café ou suco por volta de 22 horas.

Durante o dia inteiro todos teriam que gravar a fisionomia de todos eles. Quando Cirineu voltou com Ranulfo e Paquito, já avisou que Custodio viria em seguida.

–           Vamos esperar o Custodio; assim eu falo uma vez só

–           Fala duas vezes chefe, assim a gente entende melhor…

–           Ta bem, vamos armar um teatrinho e vocês serão os atores. Vocês vão conversar discretamente perto dos caras do restaurante que eu sou viciado no baralho. Que toda noite eu jogo e perco grande quantias. Que sempre jogo com alguém depois da uma da manha quando o movimento do restaurante diminui. Que quem combinar primeiro, fica a noite inteira, porta fechada.

Enquanto falava, Custodio chegou. Carlo continuou.

–           Toda vez que vocês forem se abastecer no restaurante procurem ir em dois pra entabular uma conversinha, pra dar a entender que em toda a viagem eu procuro alguém para jogar, entenderam? Tem que passar ‘mel na chupeta’, despertar interesse e principalmente, a cobiça.

Contem que as vezes eu perco dez mil dólares. Comecem devagar acelerem depois do almoço e forcem depois do jantar. Entenderam?

–           Claro chefe

–           E o Custodio, entendeu?

–           Claro chefe, vamos empurrar os caras pra cá…

E isso tem que ser por volta de onze e meia ou meia noite. O trem vai chegar por volta de uma da manha em Três Lagoas.

–           Vamos, então, pessoal, podem notar a falta da gente.

–           Tá certo. A gente se reúne de uma em uma hora aqui

–           Ok

Carlo saiu com Ranulfo em direção a cabine onde estavam as duas garotas. Eram corumbaenses, muitos bonitas e nem pareciam garotas de programa.

Combinaram que na hora do almoço já começariam o jogo da sedução. Atacariam o ex funcionários de Carlo e mais um garçom. Teriam que fazer que eles viessem a cabine por volta de meia noite, o mais tardar. Ranulfo havia providenciado vinho e wiskie para que ficassem bastante tempo ocupados.

–           O problema agora é só o cozinheiro. Você já viu ele?

–           Não. Mas vou buscar café pra vender daqui a pouco. Ai eu vou conhecer o sujeito.

–           Está certo, a gente se encontra daqui a pouco, então

Carlo voltou para a sua cabine e viu que já era quase dez horas da manha. Miranda ainda estava longe e Carlo não via a hora de começar a identificação dos seguranças do tenente Nael. Pela janela via passar as lagoas do Pantanal e toda sua exuberância. Por alguns minutos, conseguiu relaxar. Mas logo começou a recapitular todo o plano; foi conferir onde estava o frasco com o sonífero e a sua caixinha de baralho. Se tudo desse certo, a troca dos carros restaurantes seria feita por volta de uma e quinze da manhã. O único problema ainda era tirar o cozinheiro do carro restaurante na hora certa. Os cozinheiros comuns, normalmente, lavavam os utensílios e iam dormir por volta de 22:30 h pra retornar no dia seguinte pra preparar o café da manha. Como agora era um capanga de Nael isso não era garantido. Por volta das onze horas, voltaram a se reunir. Cirineu já começara a identificar os seguranças e Ranulfo já conhecera  o cozinheiro, que alias era cozinheira.

Era uma mulher, boliviana, a empregada de Hassba, mãe do segurança do tenente Nael. Segurança este que também estava no trem pra proteger a mãe. Isso facilitava bastante, já que por ser cozinheira de verdade ela iria dormir mesmo mais cedo. Agora era esperar que funcionasse a isca para o carteado. Por volta das 20 horas, quando terminava o seu jantar, ao lado de Cirineu, Carlo recebeu um sinal do ‘gerente’ dizendo que queria falar-lhe… Carlo levantou- se, foi ate o caixa e ouviu o ‘gerente’ perguntar- lhe se já tinha parceiro para um carteado. Carlo disse que sim. Que ia jogar com um amigo, vendedor-viajante, mas que esse amigo era pobre demais. Que ia ser um joguinho fraco.

–           Você esta interessado?

–           Só se  seu amigo não for e eu puder levar um companheiro

–           Quem?

–           Aquele que jogou com a gente lá em Corumbá.

–           Tiene lá plata?

–           O cacife é alto?

–           Depende

–           Depende de que?

–           Do jogo

–           To interessado sim.

–           Ta bom então. Minha cabine é a 2c. To te esperando. Onze e meia ta bom?

–           Ta bom

Carlo segurou- se e conteve um gesto de vitoria

Voltou para a mesa e sem olhar para Cirineu disse:

–           O plano começou

Cirineu entendeu e alguns minutos depois pagou a conta e foi atrás de Ranulfo. Cruzou com ele e fez o sinal de positivo e foi atrás de Custodio e Paquito.

Por sinais convocou os dois para uma reunião na cabine de Carlo. Ele sabia que estavam sendo observados e que toda aquela movimentação estava sendo monitorada pelo pessoal do tenente Nael.

Campo Grande já havia ficado para trás e Otoniel havia identificado onze seguranças do tenente.

Estranhamente, quando Otoniel desembarcou em Campo Grande, três seguranças desembarcaram também. Por sorte, Carlo chegou a ver Dejair entregando a caixa com o motor de popa, ainda na plataforma. Isso o despreocupava um pouco. Carlo já estava na cabine quando Cirineu e Ranulfo chegaram logo em seguida . Logo em seguida chegaram Paquito e Custodio.

–           Tudo armado, pessoal, a partir de agora ninguém pode vacilar, ta bem assim?  

–           Que horas agente começa?

–           Agora. Ranulfo, Põe as meninas pra funcionar

–           Certo, chefe, elas não jantaram ainda…

–           Não? Já são quase 9 da noite

–           Eu pedi pra elas esperarem

–           Então vai. Elas sabem mesmo o que fazer..?.

–           Claro, chefe, meia noite estarão dando um trato nos meninos

–           Custodio, esse aqui é o nosso pó da salvação.Leve três garrafas ao invés de levar o garrafão de três litros com café. Leve duas de café e uma de leite quente. Ponha o sonífero numa das garrafas de café e sirva, até de graça para os nossos ‘amigos’

–           Ta bem, chefe…

–           Paquito de um jeito de conversar com a cozinheira e force ela ir logo dormir. Aproveita e induz o gerente e seu amigo a vir logo jogar logo as onze e meia.

–           Claro, chefe, pode deixar comigo; 

–           O Cirineu vai dar um jeito de conferir o serviço de cada um de vocês e vir aqui me dizer como as coisas estão indo. Faltam mais ou menos quatro horas para as trocas dos vagões. A estação  de Três Lagoas já foi avisada pela estação de Campo Grande que tivemos problemas no freezer. O Dejair; do nosso almoxarifado de lá, garantiu o sigilo da mensagem, portanto ninguém ficou sabendo, nem mesmo o agente da estação de Campo Grande. Vamos agora rezar pra tudo dar certo.

Deram- se as mãos e oraram. Depois cada um foi cuidar de sua tarefa.  Carlo ficou sozinho na cabine e começou a preparar o material para o carteado. Por volta das 23 horas, Cirineu trouxe os primeiros resultados.

–           Conseguimos fazer todos eles dormirem, chefe

–           Todos?

–           Sim, os nove

–           Nove? Não sobraram oito?

–           É que tinha um mal encarado que achamos que era bandido também.

–           Então peça para o Custodio por o Hassba e o filho dele pra\ dormirem também

–           Ué; porque?

–           Faça isso, depois eu explico

–           Ta bem, vou lá; olha o Ranulfo ai…

–           E ai ‘Dourado’?

–           Estão lá ainda chefe, as duas tomando cerveja e os dois babando de vontade

–           E você acha que eles vão?

–           Ah! Se não. Claro que vão?

E foram mesmo. Pela porta entreaberta da sua cabine, Carlo viu as meninas passarem, cada um com seu ‘menino’. Custodio apareceu e disse que Hassba não queria café mas aceitaria um copo de leite. O filho tomou o café. E Custodio pôs o pó no leite e os dois já dormiram profundamente.

–           Belo trabalho, mineirinho. Agora, vou te pedir um favor, meio perigoso.

–           Pode falar chefe

–           Assim que o Paquito avisar que a cozinheira saiu do restaurante pra ir dormir e os dois estiverem aqui jogando comigo, você vai abrir uma das portas da geladeira, destravar a tampa, que é de encaixe, assim, olha só, na vertical, e tirar uns três ou quatro pacotes de cocaína, entendeu?

–           Pra que isso, chefe?

–           Depois eu digo. Você pode fazer isso?

–           Acho que sim. A tampa só é encaixada? Não é soldada?

–           Não. Senão como eles tirariam rapidamente lá em Bauru?

–           É verdade. Pode deixar comigo. E onde eu ponho a droga?

–           Guarda no seu dormitório. Depois eu pego

–           Tá bem

–           e quando eu estiver jogando traga café. Primeiro sem o pó do sono e depois, antes de chegar em Três Lagoas, traga uma garrafa ‘batizada’.

–           Tá certo, chefe.

Alguns segundos depois bateram na porta e o jogo começou. Na cabine estavam Carlo, Cirineu e os dois seguranças de Nael, jogando. E Ranulfo assistindo. Custodio estava no corredor, vigiando.

Era exatamente meia noite e o jogo começou com 100 dólares. Quinze minutos depois Custodio apareceu com um copo de café e todos tomaram um gole secando o copo.

–           Não tem mais, Custodio?

–           Vou ver, chefe

E voltou, com outro copo, pela metade

–           Acabou, chefe, esse é o ultimo

–           Ah! Então deixa para os convidados.

E o jogo continuava subindo e eles não tomavam o café. Carlo começava a se preocupar já que Três Lagoas estava chegando. Deu uma forçada e levou pra mil dólares pra ver as cartas. Ranulfo aproveitou e ofereceu cigarros e os dois ficaram tão ansiosos que tomaram o café, finalmente.

–           Custodio, pega uma cerveja pra mim

–           Claro chefe

–           Vocês querem cerveja?

–           Pode ser

Custodio demorou um pouco. De longe já dava pra ver o clarão das luzes de Três Lagoas. Ao ir buscar a cerveja Custodio percebeu que o carro restaurante estava completamente vazio e semi escuro. Foi levar as cervejas para Carlo e voltou para cumprir sua tarefa. Pegou 4 ‘tijolos’ da droga, colocou sob a camisa, fechou o paletó e foi esconde-los em seu alojamento. Ele tinha que tomar cuidado porque sempre havia policia no trem. Na cabine de Carlo o jogo continuava tenso e a ação do sonífero, misturado com a cerveja já começava a funcionar. Quando o trem parou na plataforma de Três Lagoas os dois dormiam profundamente. Carlo nem acreditava que tudo estava dando certo. Saiu com Cirineu e deu um forte abraço em Vicente que veio ao seu encontro. Viu então que as lâmpadas da plataforma na estação começavam a se apagar no mesmo instante  que o trem dava ré pra poder fazer a manobra de troca dos carros. O trem já havia saído da plataforma, já estava no desvio, escuro total, quando, dois sujeitos pularam do trem e correram em direção a locomotiva.

Vicente correu atrás e deixou Carlo e seus parceiros parados, sem saber o que fazer. De repente eles viram Vicente arrastando os dois, já desmaiados para perto da plataforma onde estava Carlo. Eram dois seguranças de Nael que não tinham sido identificados por Otoniel.

Puxaram a arma para o maquinista e Vicente pôs os dois a nocaute com dois socos na cabeça de cada um. Carlo pediu que levasse para uma cabine vazia no carro dormitório e os amarrassem. A manobra foi realmente muito rápida e menos de vinte minutos depois já estavam rodando em direção a divisa do Estado de São Paulo. Precisavam dormir. Vicente pegou uma cabine e dormiu rapidamente. Na cabine de Carlo, Cirineu ajudou-o a deitar os dois seguranças no chão e dormiram o que puderam.

Perto de 6 horas da manha foram acordados por Paquito com uma garrafa de café feito naquela hora.

–           Olha o café, chefe…

–           Puxa; que horas são?

–           Quase 6 horas da manha; bom dia, bom dia

–           Nossa; que disposição. Dá o café aí. Que aconteceu?

–           Tive que dormir com a cozinheira, senão ela não saia de lá…

–           Se deu bem, heim Paquito?

¬          É, apesar dela ser baixinha, gordinha, pernas cabeludas e um sovaco mais peludo que o meu. Mas ate que foi bom e dormi bem…

–           Ah, por falar em dormir, vai correndo chamar o Custodio. Temos que fazer uma coisa antes que clareie o dia de vez.

Terminando o cafezinho e tendo ido ao banheiro e foi chamar Vicente e Ranulfo. Em minutos voltaram Paquito e Custodio. Marcou estar com eles em dez minutos no carro restaurante. Precisavam dominar a situação quando os seguranças começassem a acordar. No restaurante só estava a cozinheira que fervia o leite e preparava mais café para servir e para vender. Todos queriam tomar o café da manha e como não havia ninguém para servir Cirineu tomou a iniciativa e começou a por a mesa.

–           Chefe, tem coisas nesse carro que não tinha no outro e vice versas.

–           Como assim?

–           A lata do café é bem diferente. A cozinheira já deve ter notado isso. O assento da cadeira do caixa era feito de couro marrom. O dessa cadeira é pintado de preto. Por enquanto foi o que eu notei.

–           Então quando ela for preparar o almoço vai ver outras diferenças, como os pedaços de carne e coisa assim. Paquito, fique do lado dela e tire sua concentração, me entende?

–           Ô, claro que entendo chefe. Ela não vai tirar os olhos de mim.

–           Então vai, começa agora

–           Ta certo

–           E agora o problema é outro. Custodio vai buscar aquele ‘material’ que você guardou ontem,  lembra?

-Claro, chefe, são quatro pacotes.

–           Pois bem, quero que dêem um jeito de colocá-los na bagagem do Hassba.

–           Caramba! E como a gente pode fazer isso?

¬          Aproveitem que o trem ainda dorme. Vão todos.

¬          Eles não estão na ultima poltrona do ultimo vagão da primeira classe?

–           Sim

–           Então levem uma bolsa qualquer, coloquem perto da bolsa dele, e coloquem o material e saiam rapidamente de perto.

–           E os passageiros, chefe? Vão notar…

–           A maioria ainda dorme e se alguém estiver acordado cubram a sua visão de alguma forma. Vão logo…

Depois de algumas dificuldades, conseguiram plantar droga na mala do Hassba e na bolsa de seu filho. Carlo pediu então que Ranulfo fosse ate a cabine das meninas para acordar os dois malandros que lá estavam e foi ate a sua própria cabine jogar água no rosto dos dois que jogaram com ele. Depois de chamá-los por quase meia hora, conseguiu que abrissem os olhos e, embora sonolentos demais pra entender alguma coisa conseguiram levantar-se e ir ao banheiro. Carlo então contou uma estorinha qualquer sobre cansaço e ainda pediu que levassem os dólares que haviam ganho; coisa de 800 para um e 600 para o outro. Contentes, mas e, fora a presença de Paquito na cozinha, aparentemente nada notaram. Carlo pediu que Custodio, Ranulfo e ate Cirineu, que nem estava uniformizado começassem a vender o café e o leite para dar trabalho para os quatros seguranças que já assumiam seus postos. 

Estes estavam mal, mas queriam parecer estar bem. Carlo e Vicente sentaram- se numa mesa do restaurante. Carlo pediu que Vicente fosse levar café para os dois seguranças amarrados no dormitório. Por sugestões de Carlo, Vicente colocou sonífero e assim que dormiam, desamarrou e os colocou para dormir no beliche. Vicente pode voltar então para o restaurante e tomar um café com leite, pão geléia e manteiga. Olhou para Carlo e sentiu se diferente, vitorioso, como numa de suas lutas. Quase na hora do almoço, os seguranças foram acordando um a um. Cirineu havia pedido ao chefe do trem que não os acordasse antes para picotar os seus bilhetes. Toda vez que o chefe do trem e seu ajudante saiam picotando, Cirineu saia atrás. Mas, agora, já podiam acordar. Dentro de duas horas, no máximo estariam em Bauru. Na estação de Pirajui, Carlo percebeu uma movimentação diferente na plataforma. Alguns homens, evidentemente policiais, conversavam numa roda. Quando o trem partiu o grupo de seis homens subiu no trem e postaram-se dois em cada porta do restaurante e dois e dois sentaram –se numa das mesas. Carlo entendeu logo já que estava sendo vigiado. Ficou surpreendentemente calmo e quando finalmente o trem parou na plataforma em Bauru e sentiu uma mão firme em seu ombro

–           Fique onde está, por favor, e a policia federal

–           está bem; qual é o problema?

–           Fique onde está, por favor.

Carlo, pela janela, viu pelo menos uns quinze agentes policiais, civis e militares cercando o trem.

Os passageiros saíam rápidos e os carregadores de mala estavam mais ligeiros que o normal. Menos de vinte minutos depois a plataforma estava quase vazia e no trem só ficaram os que estavam uniformizados. Apenas Hassba e o filho ainda dormiam. Carlo tinha pedido que não os acordassem. Eram os únicos  passageiros no trem agora ‘coalhados’ de policiais. Vicente, como não estava uniformizados, acompanhava tudo da plataforma e viu quando o maquinista recebeu ordem da policia para manobrar, tirar o trem da estação e colocá-lo num desvio próximo. Vicente ainda podia ver toda a movimentação. Viu os repórteres chegarem. E viu quando os agentes procuravam por todo o carro restaurante. E viu que, quase uma hora depois, os agentes começavam a deixar o carro restaurante, visivelmente desiludidos.

Viu que os seguranças de Nael se concentraram na porta da estação sem entender nada e finalmente viu Carlo sair gesticulado do trem como se estivesse reprimido a policia por aquele transtorno. Mas, o que mais gostou de ver foi quando Hassba e seu filho passaram algemados, com um agente levando a mala e a bolsa onde estava a droga ‘plantada’ por Carlo. Hassba passou por Vicente, na plataforma da estação em direção a uma viatura da policia e demonstrava incredulidade e desespero. Olhava para o trem sem acreditar no que estava acontecendo. Carlo, e o pessoal do trem foi liberado quase duas horas depois quando a policia tinha adquirido a certeza de ali não havia mais nada. Carlo chamou Cirineu, Ranulfo, Paquito, Custodio e Vicente e foram para o deposito de bebidas da estação. Lá dentro Carlo deu um grito, abraçou a todos, foi abraçado e chegou a chorar. Abriu cervejas e, mesmo quente, tomou uma quase num gole só. Ai, pediu que alguém fosse localizar o ‘gerente’ que havia jogado com ele. Não foi difícil;estavam todos sentados na praça em frente a estação. Quando o sujeito chegou, Carlo até se assustou com a sua expressão. Mas, sem se abalar, perguntou se o tenente Nael estava na cidade. ao ser informado que sim e onde, Carlo foi sozinho ao hotel onde ele estava. O tenente já sabia do fracasso da viagem e tinha os olhos bem vermelhos. Carlo, então, lhe contou tudo, detalhadamente. Expôs seus motivos e o tenente pareceu ir se acalmando pouco a pouco…

–           Três Lagoas esta a mais ou menos 400 km daqui, estrada boa, asfaltada. Hoje a noite vocês podem transferir o material pra alguns carros e ir para onde vocês quiserem.

–           E como agente faz lá em Três Lagoas? Não podemos ir lá entrando de qualquer jeito no galpão…

–           Tenho dois homens de confiança que ficaram lá, tomando conta. Eles ajudaram na manobra da troca. Levem um bilhete meu, paguem uma cervejinha pra eles e tá tudo certo

–           Eu não sei se te mato ou te agradeço…

–           Epa, beijo não…

E finalmente puderam trocar um sorriso. Realmente tudo funcionou como Carlo queria. O tenente Nael, depois dessa operação desapareceu. Alguns falam que ele foi para o Rio de Janeiro comandar o tráfico. Otoniel ainda fez algumas pescarias com Carlo, mas que foi rareando ate acabar em menos de um ano. Hassba e o filho pegaram três anos de cadeia e a concessão foi renovada automaticamente, sem problemas. Vicente e a família foram convidados de Carlo para um almoço na churrascaria Cedro do Libano, que agora era comandada pelo outro filho de Hassba. Rodolfo recuperou- se bem dos ferimentos mas nunca se recuperaria da emoção causada por um bilhete trazido no trem por uma empregada de Yasmin.

‘Amorzinho, minha família está me mandando para a França para eu terminar meus estudos, junto com minha irmã. Não me procure. Lá me farão casar com um patrício. Mas nunca me esquecerei de você porque levo em meu ventre um novo ser. Um ‘frutinho’ do nosso amor. Ame- o.

Adeus,

de tua

Yasmin’  

A ESPERANÇA NA CAATINGA

Morava mal. Zé Otavio tinha um casebre de barro, coberto com palha no norte de Minas, no meio do nada, nenhum móvel caseiro decente e teve, uma vez, um pequeno rádio à pilha.

Juntara-se com uma conhecida, Benedita, analfabeta e miserável como ele, só porque a mesma tinha um casal de cabras. Ficavam horas fazendo planos sobre a futura criação.

Mas o bode morreu logo, achavam que por picada de cascavel.

A cabrita durou mais um pouco até que a fome bateu forte.  A carne nem deu pra uma semana.

O rosto magro e encovado de Zé Otávio ainda refletia esperança de dias melhores toda vez que voltava pra casa com um pouco de feijão e farinha que ganhava em troca de algum serviço.

Andava pelas propriedades da região se oferecendo para fazer qualquer coisa, porque nunca mais conseguira emprego de vaqueiro depois de uma clavícula quebrada. O braço direito ainda doía muito.

Já tinha dois filhos com Benedita, o maior com quase 7

anos e o menor com 3 anos quando Benedita começou a

esperar mais um.

Os meninos já saíam com Zé Otavio pela caatinga caçando o que desse pra comer. Sempre traziam pelo menos um calango, ou mesmo ratazanas, que conseguiam tirar da toca.

Água, eles tiravam de um barreiro a mais de dois quilômetros da casa. A cada ano eles sentiam que o barreiro diminuía, mas Zé Otavio sempre achava que as coisas iam melhorar.

Rezava muito para São José e todos os santos que lembrava porque uma benzedeira lhe disse, quando criança ainda, que ele era filho de Deus e que um dia ele ia ter uma grande sorte. Passou todos os dias de sua desgraçada vida acreditando nisso.

Toda noite dormia falando isso como se fosse uma oração; um dia sua vida ia melhorar.

Assim o tempo ia se arrastando na constante luta pela comida e pela água.

O resto era continuar procurando serviço sem nunca

pensar em qualquer outra coisa que pudesse alterar essa

rotina, que nunca se alterava na incrível ingenuidade de

Benedita e nessa fanática esperança de Zé Otavio.

Até que num ano desses, que ele nem sabe qual, a chuva não chegou e o barreiro secou. Foi sozinho até outro barreiro, com o dobro de distância onde tinha mais pessoas revolvendo o barro, para tirar meio balde de água. Voltou de tardezinha, com um pensamento corroendo por dentro. Iria se retirar dali.

Iria para uma cidade maior onde pudesse encontrar pelo

menos um copo de água limpa para suas crianças.

A menina, que tinha vindo por último, já tinha quase dois anos, mas ainda nem andava.

Chegou em casa e quando viu que aquele pouco de água logo se acabou, avisou que sairiam de manhã levando o que desse.

Saíram de madrugada, ainda bem escuro, em direção a uma luz que imaginavam ser uma grande cidade.

Lá tudo mudaria. Teria sua sorte, finalmente.

Ninguém falava.

Benedita levava a menina e uma trouxa, Zé Otávio levava alguns utensílios de trabalho como enxada, foice, facão.

 O menino maior já com quase 9 anos levava na cabeça algumas panelas e pratos. O menor levava uns panos.

O caminho era seco e eles não cruzavam com ninguém.

A quiçaça era rala e o sol já havia saído há pelo menos três horas e todos sentiam fome e sede, mas ninguém falava nada. Zé Otavio queria seguir sua intuição e ficava procurando novos caminhos.

Saía da estrada principal e ficava sempre achando que havia um trilho mais curto para chegar a cidade. Seu peito tremia, soluços de um choro contido.

O sol já estava alto e tristemente cruel.

Benedita, com os lábios secos e embranquecidos nos cantos, andava com os seios para fora tentando fazer com

que a menina se alimentasse. Mas a mesma parecia só querer dormir.

Zé Otávio achou que se parassem não conseguiriam mais seguir em frente. Resolveu pegar nos ombros o menino

menor que estava ficando cada vez mais para traz e atrasando a todos.

Ele estava tão leve que Zé Otávio, mesmo cansado, não sentiu muita diferença.

O sol estava reto sobre suas cabeças e parecia não sair dali por muito tempo. Já devia ser mais de meio dia e já andavam há pelo menos 6 horas sem parar.

E sem comer e beber nada.

Estavam automatizados, andando mecanicamente, seguindo Zé Otávio.

Se quisessem parar não haveria sombra disponível. Por isso, andavam e andavam, e andavam, até que o menino maior caiu e Zé Otavio nem percebeu.

Nem percebeu também que o menino menor nem se mexia em seus ombros.

Só percebia Benedita andando quase ao seu lado arrastando os pés.

Já era final da tarde quando começaram a encontrar algumas pessoas, e depois, mais e mais pessoas.

Zé Otávio sentiu uma estranha sensação quando viu as primeiras casas de uma cidade.

Era, relativamente, grande, e conseguiu balbuciar para Benedita que finalmente conseguira sua sorte grande. Esboçou um pequeno sorriso antes de desmaiar.

Acordou na enfermaria do hospital, tendo Benedita na cama ao lado e o menino menor em um berço em frente, todos ligados aos frascos de soro.

Ao ser informado pelo médico que a menina falecera e que a policia já tinha voltado com o corpo do menino maior, que também falecera por desidratação, completamente seco, só pode dizer, baixinho, que tinha notado mesmo, que o menino estava ficando escuro como um pau queimado.

COISAS DA FRONTEIRA

Uma sexta feira, úmida, abafada,  à noite, na década de 60, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Aqueles três viajantes vendedores terminaram o jantar naquela churrascaria e depois de ouvir  muitas guarânias, caminhavam pelas ruas mal iluminadas em direção ao hotel.

–           Amanhã vou até Paranhos…

–           Amanhã, Amaro? Amanhã é sábado..

Amaro Luis vendia ferragens de uma fundição de São Paulo e já viajava vendendo naquela região já há alguns anos.

–           E é tão longe..

–           Pois é.  Na verdade, amanhã vou até Ponta Porã. Preciso comprar wiskeis para dois fregueses meus. E aí vou esticar até Paranhos no domingo pela manhã.

–           Fazer…?

–           Churrasquear na chácara de um freguês, que, aliás, é o prefeito do lugar. Vamos dormir?

–           Que horas você vai sair?

–           Aí  pelas oito. Vou almoçar em Dourados e depois sigo. Boa noite, gente…

–           Boa noite Amaro, e boa viagem…

–           Obrigado. E muito obrigado também pela conversa.

E assim foi. Amaro estava com um jeep da segunda guerra, aqueles usados pelos alemães. Conseguiu achar a relíquia numa oficina mecânica, no lado paraguaio de Bela Vista, quase às  margens do Rio Apa.  Até a cor era original. A placa era de Bela Vista , do Paraguay e ele só rodava ali, na região fronteiriça. Quando ia para sua casa, no Paraná, usava seu fusca, que  só usava em Campo Grande , onde fazia seu ponto. . Dizia que o jeep fora usado na guerra do deserto, na África, e que viera de navio até Assuncion, pelo Rio Paraguay.

  Era em meio de uma tarde quente  quando chegou em Ponta Porã. Como sempre, estava vermelho, coberto com o pó daqueles quase 400 km de estradas cascalhadas e poerentas. Foi para o Hotel Internacional, cumprimentou os amigos, atravessou a avenida e foi fazer compras em Pedro Juan Caballero. Quando voltou tomou um banho e caiu num bom cochilo.

 O Hotel Internacional era uma velha construção, de  madeira, em dois andares, e por isso era o preferido por alguns viajantes voyeurs. Praticamente em todos os quartos tinha, pelo menos, um furo na parede que se limitava com outro quarto e tapado com goma de mascar. À noite, passou pelo cassino para arriscar no Black Jack . Foi dormir não muito tarde. Queria estar descansado quando acordasse. Já passava alguns minutos das seis da manhã quando se preparava para pegar a estrada para Amambay. Depois seguiria para Paranhos, região pesada, de fronteira, muitos traficantes de maconha e refúgio de fugitivos das leis brasileiras e paraguaias pelos mais variados crimes. A maioria, homicídios. A grama do canteiro central da avenida Internacional estava molhada pelo orvalho e brilhava ao sol, baixinho ainda, deixando a temperatura baixa, quase uns dez graus. Uma brisa fria, querendo ser vento, tocava-lhe o rosto ainda acordando. Pensou em voltar, dormir mais um pouco.

–           Que absurdo!   corrigiu

Amaro Lins gostava muito daquela região, ainda em formação, mas cheia de vida, dinheiro e problemas. Muitos problemas! Seu roteiro por ali era sempre mais ou menos assim; trabalhava em Ponta Porã de manhã, passava por Amambay onde tinha dois clientes e ia dormir em Paranhos, quando dava. Duzentos e tantos quilômetros de pedras e muita poeira. E Paranhos era um “patrimônio”, de ruas largas, poucas casas e poucos metros separando-o de Ypehu, no Paraguay.

Uma região antiga, que não cresceu por causa de seu próprio isolamento, como gostava de dizer o “seu” Domevil, prefeito nomeado, filho de gente do lugar, mas neto de gaúchos, que vieram do Rio Grande, em comitiva, em trinta carros de boi, chegando ali um pouquinho depois de 1900.

Enquanto o “jipão” cortava o cascalho seco da estrada, Amaro ia se lembrando dos “causos” contados pelo seu Domivil, um de seus melhores clientes. Não só porque comprava muito bem suas ferragens mas, mais pelo seu temperamento positivo, alegre, folclórico até. Lembrou-se de quando o seu Domivil teve um entrevero com um delegado local, o Claudiomiro, antigo companheiro de política, depois convidado pelo próprio Domevil para ser delegado de policia, que era de absoluta confiança naqueles tempos de ditadura militar. Foi uma indicação pra lá de infeliz.

É que de repente, Claudiomiro virou bandido sem que ninguém percebesse, envolvendo também seus quatro auxiliares que Domivil havia contratado a pedido dele. Muitos crimes de morte estavam acontecendo na região, por motivos simples e todos continuavam sem elucidação, Uma vez, chegaram a matar um sitiante que voltava da cidade em sua carroça, apenas para lhe tirarem os mantimentos que havia comprado no mercado, que não passavam de dez quilos.Um dos guardas que compunham a ‘força policial’ confessou mais tarde.

De outra vez,o delegado Claudiomiro e seus guardas capangas ‘armaram’ pra cima de um mecânico e seu filho. Pediram para que outros dois capangas, que não eram guardas, fossem até a oficina com um carro roubado e ficassem por lá pedindo um pequeno conserto. Ai,Claudimiro chegou com mais dois e já desceram atirando. Dizem que foi um tiroteio dos diabos, só que ninguém acertava ninguém.

O mecânico e seu filho, que nada estavam entendendo garantiram que a mira era bem pra cima, que era só gritaria e correria assim como se fosse um filme,com bastante bala pra gastar. De repente os dois “clientes” correram para o mato e ninguém foi atrás,e foi ai que sobrou para o mecânico e seu filho. Começaram a atirar  na direção deles que se esconderam e começaram a gritar por socorro. Chegou mais gente e a fuzilaria acabou, mas o mecânico e seu filho foram presos, acusados de cumplicidade no roubo de carros. Na verdade eles sabiam demais. Ali também era passagem de carros roubados para troca com a droga.

Quando o prefeito Donevil ficou sabendo foi imediatamente para a delegacia, já anoitecendo, interceder por eles. Donevil temia pela chegada da noite e como conhecia o mecânico muito bem, sabia que seria ‘queima de arquivo’. Chegou bravo e Donevil, que nem eleito era e tampouco era juiz conseguiu a soltura deles,  que no dia seguinte, sumiram da cidade. Na verdade havia ainda um restinho de respeito ou ate mesmo de gratidão de Claudiomiro por Donevil. Só que os casos foram se sucedendo, os assaltos aumentando e inexplicavelmente, não se prendia ninguém.

De vez em quando aparecia um corpo e Claudiomiro alardeava que tinha liquidado mais um assaltante, sempre contando uma estória heróica, plenamente confirmada pelos seus guardas. Mas, que nada, era apenas mais um assalto ou mais uma queima de arquivo. Ou até mesmo um assassinato por encomenda.

Até que um dia alguém presenciou um crime de morte e foi correndo contar para o prefeito, conhecido do morto. Era noite  e Donevil ficou tão possesso que foi delegacia adentro, dedo em riste, cabo do revolver pra fora, já definindo;

–           Vocês são uns vermes, uns bandidos safados… amanhã cedo estou falando com o secretário de justiça… quero todo mundo longe do meu município…. está todo mundo demitido…na rua…!!!

–           ei… pêra ai, Donevil, ta falando de que?

–           estou falando que sei de tudo que viram vocês matando o Pedro Jacó agora pouco, quando ele desceu da

f-1000 na frente da casa dele. Vieram rápido me contar

–           ê, ninguém fala assim comigo não, prefeito…

–           Falo e mando… podem atravessar a fronteira já… sumam…-se daqui…

–           e as provas? Mostre a prova…mostre a testemunha…. se não tens provas, feche a boca…

–           pois manda a tua mãe fechar a boca, seu velho jaguara e vocês 4 aí, podem ficar quietinhos ai…com a mão longe do cabo… vim para mandar vocês para longe daqui

–           olha como fala….

–           falo que se eu tivesse um jeito enfiava vocês atrás das grades e chamava os parentes das vitimas de vocês

–           nos é que vamos te enfiar lá dentro por calunia e desacato.

–           Mas, olha,  que venham…  vocês me conhecem… eu mato vocês…tenho 6 balas… uma pra cada um e sobra; pelo menos 3 levo comigo por inferno

–           não provoca, prefeito…

–           olhe aqui… já disse…amanhã  logo cedo estou com o decreto de exoneração de vocês…e terei os substitutos de vocês amanhã aqui comigo, para correr com vocês. Já deixei meu irmão fazendo as ligações pra Cuiabá, providenciando tudo

–           como já ta juntando muita gente ai na frente a gente se acerta depois, viu, ‘seu’ prefeito….

–           vou sair, agora, de costas… e não adianta vir atrás…não vão me achar

–           agente acha sim…

–           agora pra mim vocês são uns bandidos fugidos e olha que tem muita gente querendo acertar as contas com vocês…. e vou ajudar………..

E assim se foi….e começou uma vida de medo para o ‘seu’ Donevil. Claro que Claudiomiro e seus capangas fugiram.

Entraram Paraguai adentro e de vez em quando se ouvia falar deles. Era assalto a caminhoneiros, trafico de drogas, contrabando, o que desse dinheiro fácil. Por mais de dois anos ‘seu’ Donevil sofreu ameaças de morte e se não fosse a ajuda de dois irmãos, bom sangue campero também, Claudiomiro tinha lhe enchido balas.

Para provocar, passava de jeep em frente a sua casa, bem devagar, aos domingos, porque sabia que Donevil gostava de chimarrão na varanda. Depois sumia uns tempos. No fim; quem levou foi ele, Claudiomiro.

Resolveram assaltar um caminhoneiro na entrada de Ponta Porã e jogaram o corpo no meio da estrada. Só que esse caminhoneiro era filho caçula de uma família muito rica e muito brava ali do sudoeste do Paraná. Os parentes e seus peões não descansaram enquanto não o pegaram. Foram achá-lo em Concepcion e deixaram ele e seus capangas nas mãos da policia paraguaia em Cerro Corá, com um bom “agrado” por um certo tempo, porque sabiam que ali acontecia uma ‘judiaria’, como falavam, quando o preso era sujeito ruim.

Penduravam o coitado pelos calcanhares, passando um arame por dentro da carne, pelo tendão de Aquiles. Depois o penduravam por uma corrente, num galho alto qualquer, no meio da mata e lá o deixavam por duas ou três noites. Se o sujeito sobrevivesse a dor e as onças, eles o entregavam aos parentes da vitima. Foi o que aconteceu; os irmãos do caminhoneiro trouxeram-no ao Brasil e o mataram ali mesmo onde ele havia jogado o corpo do irmão. Dos capangas nunca mais se teve noticias. Só aí é que ‘seu’ Donevil teve um pouco de paz. Só que toda hora tinha um caso assim e na maioria das vezes, ‘seu’ Donevil estava no meio.

Era pouco mais de meio dia quando Amaro abraçou ‘seu’ Donevil, de chapéu de abas largas e pilchado com bombacha preta. Foi cumprimentando a todos, pegando uma cerveja, pedindo um corte de carne, pondo-se a vontade. ‘Seu’ Donevil morava numa chácara, mas quase no centro da ‘cidade’

Nesse terreno de pouco mais de 50 mil m2 criava porcos, galinhas e até mesmo umas cabeças de gado. O pomar era uma maravilha mas a plantação de mate era o orgulho dele.

Os convidados do churrasco eram ‘aprendizes’ de políticos e a conversa sobre política e sobre a revolução de 64 era um assunto dominante.

E já era a segunda vez que Donevil levava Amaro até os fundos da chácara para mostrar os restos do que ele chamava de carretera do Lopes, que era um sulco no pasto, denotando que um dia ali passara uma estrada para carros de boi.

–           Na prefeitura tem documentos relatando que o general Solano Lopes usou essa carretera várias e várias vezes durante a guerra do Paraguai…

E Amaro Lins como gostava de ouvir, ouvia. O churrasco foi até a noite e como não havia hotel na cidade, ‘seu’ Donevil fez questão que ele pernoitasse ali mesmo.

¬          Amanha, na prefeitura, falamos de negócios..

Afinal, Quem Matou o Sujeito?

Vamos pegar chuva na estrada!

Paulão olhou para o  céu e concordou com a esposa Juliana. Estavam saindo de  Araraquara e iriam até Macatuba. Queriam passar em Pederneiras, deixar uns doces na casa de uma filha. Coisa já combinada.  Por isso a preocupação.

¬          Que horas são agora, meu bem?

¬          Cinco e meia. Eu não queria viajar a noite. Demora muito ainda?

¬          Não, já limpei tudo. Os tapetes da Caravan estão até cheirosinhos. E a bagagem já está acomodada.

¬          Vou pegar minha bolsa, então.

¬          Vai. Temos que passar no posto pra abastecer.  A Caravan está doidinha pra por “os pés” na estrada”

Os dois sexagenários, ambos aposentados, estavam indo para um fim de semana na casa de um filho em Macatuba, cidade canavieira da região de Jaú. A estrada, relativamente boa,  começava a ficar movimentada nesse  final de sexta feira.  Paulão e Juliana a conheciam bem e sempre faziam essa viagem . Eles se davam bem e faziam a viagem cantando canções da juventude. Eram 18 horas de um horário de verão daquela sexta feira de um dezembro quente e chuvoso quando deram a partida.

No mesmo instante, em Dois Córregos, dona Elis, uma negra animada e bem humorada, líder comunitária em Bauru, apressava sua neta de 16 anos a entrar no carro.

¬          Vanessa!!

¬          Calma vó, quero fazer mais uma foto.

¬          É que está ameaçando chuva.

¬          Calma, vó

¬          Olha a água do rio, como já está parecendo que está chovendo.

¬          Então, quero fotografar isso

Dona Elis tinha levado sua neta para conhecer um bairro em uma pedreira na beira do rio Tietê, onde tinha passado a sua infância. Tinha saído de Bauru com o seu fusca 74 logo depois do almoço e estava pronta pra retornar, não fosse a paixão por fotografia  de Vanessa.

¬          Enquanto tiver um pouco de luz vou aproveitar, vó.

¬          É que viajar a noite com chuva é difícil

¬          calma, vó

¬          e sexta feira tem sempre mais carros na estrada

¬          já to indo, vó.

Em Bocaina, André e Nina terminavam de conversar com o padre e agradeciam a oportunidade de poderem fazer um documentário com ele sobre as pinturas de Benedito Calixto, o artista que inclusive arquitetou o prédio do Banespa em São Paulo. André morava em Vera Cruz e estudava em Marilia. Vera Cruz também tem obras de Benedito Calixto, inclusive sua igreja é uma réplica do prédio do Banespa. Nina era sua namorada e haviam discutido muito na viagem de vinda. Ela queria terminar a relação mas queria continuar amiga. Só não queria mais sexo. Ao entrar no Gol branco e bem conservado, André imaginava que, depois do sucesso do trabalho, poderia convencer Nina a mudar de idéia. Já começava a escurecer e raios e trovões já lhes provocavam uma estranha sensação de uma viagem diferente.

¬          Você quer comer alguma coisa antes de sair pra estrada?

¬          Não , obrigada. Quero chegar logo em Marilia. As meninas da república estão me esperando pra sair.

¬          Sair? Sair pra onde?

¬          Sair, ué!  Só sair.

¬          Ah; não acredito.  Você quer terminar comigo só pra sair pra night?

¬          Porque você está dizendo isso? Mesmo com você eu sempre saí com elas. Quantas vezes a gente se encontrou por aí quando eu saí com elas?

¬          Mas era diferente.

¬          Porque diferente?

¬          Você sabia que ia me encontrar. Então, na verdade você estava saindo pra se encontrar comigo.

¬          Nem sempre.

¬          Como assim; nem sempre? Pô, não estou entendendo. Você não era afim de mim?

E a discussão corria solta quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair. Já começava a escurecer apesar de ser pouco mais de seis e meia da noite de um horário de verão. Eles já se aproximavam da ponte do rio Jacaré Pepira quando a chuva apertou.

Alberto também dirigia um Gol branco, mais novo e vinha da Barra Bonita. Quando a chuva ficou mais forte ele estava subindo um aclive forte perto de Jaú e mesmo com a terceira faixa na pista, preferiu ir atrás de um treminhão que devia estar, mais ou menos, a 20 por hora. Tão cuidadoso,  Alberto era vendedor viajante ou representante comercial como preferia. Sempre as voltas com vendas e cotas de uma distribuidora de material elétrico de Bauru. Saia sempre de manhãzinha e voltava no final do dia. Nessa sexta feira ele estava contente; as vendas tinham sido excelente. Não via hora de chegar em Bauru e ir se encontrar com os amigos numa mesa de chopp onde ia comemorar a boa semana que tivera. Ia cantando sambas antigos que tocava em seu rádio de carro ainda com fita cassete. Assustou-se quando, do treminhão, caiu um pedaço de cana no para brisa de seu carro. Resolveu sair de trás do caminhão e apertar o pé. Logo estaria em Jaú e depois pegaria pista dupla para Bauru.

Raul e sua turma haviam programado aquela viagem para Bauru para assistir a um show musical no Sesc  dez dias atrás. Como Jaú fica a 50 km aproximadamente, eles iriam sair em dois carros, um corsa e um Passat Pointer  por volta de 20 horas, já que o show estava programado para as 21h. Mas como o tempo estava fechando e os oito amigos já estavam reunidos, resolveram sair mais cedo. Se preciso, ficariam no bar tomando cervejas enquanto esperavam.

A rodovia que liga Jau a Bauru sempre foi bem conservada, pelo menos até  Bauru, já que ela prosseguia até Ipaussú, perto da divisa com o Paraná. Entre Jaú e Bauru havia a ponte sobre o rio Tietê e antes dela uma descida longa e com curvas suaves. Já chovia forte e estava bem escuro. Dona Elis reclamava muito, principalmente com a borracha do limpador de para brisa que não limpava nada. Quando era ultrapassada por alguém e recebia um jato de água no vidro de sua porta xingava em voz alta.

¬          Calma vó!

De repente, de repente mesmo,  viu uns carros parados, no meio da pista . Apavorou-se mais quando sentiu um soco no assoalho do fusca. Desgovernou-se e quase entrou dentro do canavial.

¬          Vovó!!

¬          Meus Deus!  O que foi isso?

Estava ainda tremendo dentro do carro quando olhou para Vanessa e sentir que ela estava bem.  O carro girou de lado e ela ficou, no acostamento, de frente para a pista. Gritou quando viu um Gol branco também passar sobre aquele volume na pista e depois frear bruscamente. A chuva continuava forte e relâmpagos iluminavam uma cena assustadora; o volume era o corpo de um homem que jazia no meio da pista. Ao lembrar que ela tinha passado por cima, sentiu vontade de vomitar. Saiu do carro, e mesmo enxarcada, pode perceber outros cinco carros parados. Todos tinham passado sobre o corpo. Todos, até Vanessa, estavam fora, na chuva forte, olhando aquele homem estendido no chão, claramente identificado como um andarilho, com suas roupas avermelhadas pelo barro e pelo sangue que corria com as águas da chuva. Outros carros foram parando  e olhando. A Policia Rodoviária chegou e perguntou em voz alta

¬          Quem  passou com o carro sobre o sujeito ?

 Seis motoristas ergueram o braço, Raul e seu amigo, Paulão, Alberto, Dona Elis e André. Todos realmente, tinham passado com o carro sobre o corpo.

¬          Mas, quem foi o primeiro? Quem atropelou o sujeito?

¬          Quando eu senti o choque ele já estava deitado na pista.

André queria dizer que, daqueles seis, ele tinha sido o primeiro, mas tinha certeza de que não tinha atropelado. Todos afirmavam que passaram por cima, mas ele já estava morto

A chuva continuava forte. O trânsito começou a ser  liberado. Um a um dos seis carros envolvidos entravam na viatura da policia, onde  seus dados eram anotados e seus documentos conferidos. Depois de uma hora chegou uma ambulância que levou o corpo. Por alguns papeis e documentos encontrados em um saco que a vitima carregava ficou-se sabendo que o andarilho era um médico veterinário que havia entrado nas drogas, viciado-se em drogas pesadas e acabado no crack e o que viesse.

Alguns meses depois Dona Elis encontrou-se com Alberto por acaso. Ele estava em um bar tomando chopp e ela tinha ido com Vanessa ouvir um amigo tocar violão. Depois de um cumprimento rápido ela pôs a mão em seu braço e perguntou baixinho:

¬          Afinal, quem matou o sujeito?

ILANA, A Vendedora de Chipa

Ilana

Quando conheci Ilana eu ainda trabalhava como viajante vendedor propagandista de um laboratório farmacêutico no estado do Mato Grosso.

Era inicio da década de 70 e ainda era um estado único, onde Campo Grande era apenas uma grande cidade, bem longe da capital Cuiabá.

Morando em Bauru, usava constantemente o trem como meio de locomoção, embora, quando fora da linha, eu usasse carros alugados, barcos e até pequenos aviões. Vendia, entre outros produtos, soros contra picada de cobras.

Mas o grande faturamento vinha mesmo das visitas às farmácias colocando antibióticos, vitaminas, antitússicos. Isso fazia com que eu tivesse que visitar todas as cidades e vilas onde houvesse uma farmácia, por menor que fosse.

As cidades ao longo da estrada de ferro Noroeste do Brasil, no meu setor eram Campo Grande, Aquidauana, Miranda e Corumbá. Dormia em Campo Grande, pegava o trem às 8 horas, chegava a Aquidauana por volta do meio dia, trabalhava à tarde as três farmácias e o hospital da cidade.

Ali, já conversava com os médicos presentes e depois procurava os que não estavam no hospital, em seus consultórios, para falar de algum produto e para deixar amostras grátis de vários produtos.  

Depois rumava para a estação esperar o trem noturno que ia para Miranda e depois Corumbá. Um trem diferente, chamado Litorina, que era praticamente um só carro. Muito mais confortável que o tradicional.

Fazia esse trajeto a cada 42 dias Aliás, todas as cidades do sul do estado eu visitei a cada 42 dias, durante alguns anos. O fato de ter que ficar esperando o trem por horas me tornou ainda mais observador do comportamento humano.

Na estação era fácil reconhecer os colegas de profissão que, embora de ramos diferentes, tinham a pasta ou maleta de vendas como utensílio comum de viagem. Às vezes rolavam conversas, às vezes cada um ficava conferindo pedidos, relatórios, roteiro.

O estado do Mato Grosso, nessa época, dependia muito desses profissionais para abastecer sua economia. Uma de minhas diversões, jovem de 22 anos que eu era, consistia em procurar rostos bonitos de mulheres entre as passageiras. Muito discretamente, é claro.

E foi assim que comecei a notar aquela menina, que nem era passageira. Era uma vendedora de chipa, um biscoito de polvilho e queijo, muito comum na região do Pantanal. Morena, cabelos lisos e pretos, muito brilhantes e olhos quase asiáticos.

Parecia ter menos de 20 anos e ela chegava sempre alguns minutos antes do trem parar. Por isso demorei em notá-la. Eram muitos vendedores assediando os passageiros pelas janelas do trem e a predominância eram os vendedores de chipa.

Eu gostava de me sentar perto da janela que visse a plataforma para ver as estações e suas personagens. Inclusive os vendedores de bolos, salgados, frutas e chipa, é claro. 

Foi depois de umas duas ou três viagens que coincidiu dela vir oferecer suas chipas para mim. Era realmente muito bonita. Recusei com um gesto e ela se foi tão rápido como chegou.

Quase um ano se passou até que ela chegou mais cedo e começou a oferecer chipas para os passageiros que estavam nos bancos, esperando o trem. Quando chegou a minha vez de ser abordado, apenas com a oferta “chipa?”, repeti o gesto negativo e ela se foi rápido.

Senti haver perdido uma rara oportunidade de conhecê-la. Não tenho o jeito invasivo e perturbador do paquerador ou assediador. Nunca tive. Portanto, quando eu comprava uma chipa e recebia o troco com um olhar, já me sentia gratificado.

Mas um dia, sem querer abusar e sem esperar resposta, disse-lhe que ela me parecia mais triste do que o costume. Mas, não era tristeza, era sim uma diarreia que quase a impediu de trabalhar.

Entre meus produtos tinha um restaurador de flora intestinal e por coincidência, tinha algumas amostras em minha pasta.  Ela ouviu com atenção as instruções, perguntou se poderia dar à sua mãe, que também estava ruim. Foi isso.

 Meus períodos de 42 dias e consequentes visitas a Aquidauana duraram mais três anos, sempre com minha insistência em me aproximar e conversar um pouco mais com Ilana, com pouco sucesso.

Saí do ramo farmacêutico, deixei de ser vendedor com carteira assinada e fui ser representante comercial autônomo. Consegui uma representação em São Paulo de recursos audiovisuais, quase que exclusivamente, destinado às escolas.

Poderia vender tanto no interior de São Paulo como no sul de Mato Grosso e, naturalmente, comecei a cadastrar escolas no centro oeste paulista e logo adentrei o outro lado do Rio Paraná.

Já viajava de fusca, com um material para pronta entrega, que me daria recursos para despesa, já que toda ela cabia a mim. Já fazia mais de um semestre que eu não aparecia em Aquidauana e, agora de carro, não haveria razão para ir à estação ferroviária.

Mas, fui mesmo assim, tomar um café no bar do Bentão, um ex-vaqueiro do pantanal que havia quebrado uma perna em uma queda do cavalo. Perguntei sobre Ilana, se ele a conhecia, se ela ainda estava por ali.

Ele respondeu dizendo que ela é muito estranha, parece doente, não fala com ninguém. Chega sempre quase na hora que o trem para e vai logo embora. Disse que não sabe como é a voz dela e nem onde ela mora, mas que logo ela chegaria, pois era hora do trem de Corumbá passar.

 E ela logo chegou e, para minha surpresa, veio em minha direção. E para aumentar minha surpresa, sorriu pra mim. E sorrir transformou seu rosto em uma das mulheres mais bonitas que eu conheci. E conheci muitas, Brasil a fora.

Disse que estava feliz em me rever, que o remédio que eu havia dado a ela funcionou muito bem nela e em sua mãe, e que estava esperando me rever assim como estava esperando rever o seu amor que disse que voltaria jogo e ainda não voltou.

Falava com calma e naturalidade e quando perguntei se ela se referia ao seu namorado, noivo, marido, ela respondeu que não era nenhuma dessas opções.

Ela percebeu que nada entendi e, me puxando pelo braço, me levou até um banco vazio, falando que iria me explicar. Foi a primeira vez que ela me tocou e pensei que alguma coisa aconteceu com ela e tudo parecia ter mudado. Mas, não.

Então me contou que em um ano bem lá atrás, estava oferecendo chipas nas janelas, quando um passageiro lhe chamou a atenção pela beleza de seus olhos azuis.

Mais que isso, mesmo viajando de trem estava muito elegante e ficou mais bonito quando lhe sorriu o sorriso mais lindo que ela jamais recebera. E ele queria uma chipa.

Como estava sentado no banco do corredor, ele preferiu descer do trem e pegar o biscoito com ela. Disse a ela que nunca sentiu nada igual, em toda a sua vida, quando seus olhares se cruzaram.

Ao invés de pegar a chipa e tocou a mão dela, que se arrepiou. Depois ele tocou seu rosto, colocando a palma da mão em seu queixo e fazendo um carinho em sua orelha. Ela só olhava, petrificada.

Então ele falou o que ela mais queria ouvir, que voltaria logo, que namorariam, noivariam e se casariam ali mesmo em Aquidauana e depois iriam morar em São Paulo.

Perguntou, quando o trem apitou anunciando a saída, se ela lhe esperaria, que ele estava sendo sincero como nunca fora na vida. Ela só pode dizer um sim e depois acompanhá-lo quase que correndo pela plataforma até o trem sumir na curva,

Depois disso, a cada trem que chegava sua esperança se transformava em decepção. Mas, ela não desistiria. Havia muita verdade naquelas palavras, segundo ela. Ele certamente iria voltar para leva-la. Quando isso aconteceu ela tinha 21 anos, agora estava perto dos 30 anos.

Falava com empolgação e realmente acreditava que ele iria voltar. Fez questão de me dizer que, além de sua mãe, nunca contou esse fato a mais ninguém. Só a mim. Não me restou outra alternativa a não ser desejar que ele realmente voltasse pra ela e dizer que eu estava voltando para a estrada.

Agora, como representante autônomo eu não tinha um roteiro rígido e poderia ir para cidade que eu quisesse ou que sentisse que ali haveria possibilidades de vendas. E com as despesas por minha conta, teria que ser racional.

Por isso fiquei sem visitar Aquidauana por mais de quatro anos e quando voltei, já estava de volta à área médica, mas atendendo laboratórios de análises clínicas. E usando o trem.  

Decidi, naquela viagem ir direto a Corumbá e vir fazendo as cidades até Campo Grande, que tinha o dobro de laboratórios das outras cidades juntas. Quando o trem parou em Aquidauana, desci rapidamente para tomar um café no Bentão e dali vi Ilana abordando os passageiros oferecendo sua chipa.

Corri até ela para cumprimenta-la e, ao me responder, percebi que ela estava muito triste. Quis saber por que e ela me falou que sua mãe tinha morrido e que agora ela estava só. Disse a ela, então, que na volta em quatro ou cinco dias eu conversaria com ela. E assim, fiz.

 Desci na estação e nem fui para o hotel, fiquei esperando o trem partir pra conversar com ela. O que me chamou a atenção foi ela dizer que agora ela estava só. Será que ela ainda estava esperando o tal de olhos azuis?.

Quando nos sentamos em um banco na estação, agora já bem vazia, pedi que ela me falasse como estava a vida dela. E comecei com um elogio, dizendo que o nome dela era diferente e bonito, mas ela me esclareceu que o nome dela era Helena, e que se tornara Ilana porque a avó dela era fanhosa em virtude de uma doença que deformou o nariz dela e pronunciava Ilana ao invés de Helena.

Ela me contou que tinha um irmão que quando pequeno também a chamava de Ilana e que agora era peão pantaneiro, trabalhando para o dono do sítio onde ela morava. Disse que vinha para a cidade nos horários de chegada dos trens com uma charrete que seu irmão lhe dera, já que seu pai, também vaqueiro, sumira no mundo.

Agora seu irmão foi para outra fazenda, do mesmo dono do sitio, lá perto de Poconé e fazia anos que não voltava pra casa. Por isso, com a morte da mãe, estava realmente só.

Então, perguntei por que não arrumava um namorado, já que era tão bonita e gostava de trabalhar. Ficou em silêncio por um instante, mas me surpreendeu com a resposta.

Ela achava que iria morrer logo como a avó e como a mãe de uma doença ruim. Imaginei ser câncer ou outra doença genética, mas, baixinho, ela disse que era lepra.

Pediu que eu não contasse a ninguém, que aprendeu a confiar em mim, que se alguém soubesse, ela nem poderia estar ali e ninguém compraria suas chipas. Pode ser um preconceito tolo, mas, sim, isso poderia acontecer.

Fiquei sem saber o que dizer. Perguntei se ela estava infectada e ela disse que no último exame de sangue tinha dado negativo. Mas, ela não tinha certeza de nada.

A graça na vida dela era esperar que aquele amor voltasse um dia. 

E só sabia que se arrumasse um namorado ali, este iria saber do histórico de doenças na família e ela iria ficar “falada”. Não podia arriscar a jogar fora a única fonte de renda para sua subsistência.

Já era meados da década de 80 e eu a vi mais duas ou três vezes até eu voltar a viajar para São Paulo e Paraná.

No começo de 1993 fiquei sabendo que o trem de passageiros Bauru a Corumbá iria parar de rodar. Resolvi fazer uma viagem de turismo, sem compromisso profissional algum, na última partida da estação da NOB em Bauru.

Fui fotografando tudo o que pudesse me lembrar de muitas viagens que fiz por aqueles trilhos. Quando saí de Campo Grande pensei em fazer uma foto com Ilana, até pra me lembrar do quando aquela pantaneira era bonita.

Quando o trem parou na estação em Aquidauana eu não a vi. Fui até o bar do Bentão e perguntei a ele pela Ilana. 

Ele me disse, sem parar de servir salgados e cafezinhos que ela tinha ficado muito estranha, mais quieta que de costume e que uma noite, quando trem já estava saindo, ela começou a gritar, chamando alguém de dentro do trem balançando os braços, largou cesta de chipas na plataforma e saiu pelos trilhos correndo atrás do trem.

Estava bem escuro, chovendo, fazendo frio, e ela sumiu na curva. Todos esperavam que ela voltasse logo e nem ligaram muito. No dia seguinte encontraram o corpo dela no lado dos trilhos a mais de dois quilômetros daqui. Ninguém aqui entendeu nada.

Contos Quase Reais (4) – A Barriga do Bebê

1.300 km de estrada de ferro ligam Bauru, interior de São Paulo a Corumbá, em pleno pantanal, no Mato Grosso do Sul.

Bolívia             Rio Paraguay

Corumbá               Mato Grosso do Sul

Miranda

Aquidauana

Campo Grande

Três Lagoas                Rio Paraná

   Andradina

Araçatuba                              São Paulo

Lins

                                                       Bauru

Durante muitos anos os trens de passageiros interligavam as duas regiões e o trem que ligava os dois terminais ficou conhecido como o ‘trem da morte’ .

Corumbá é a porta de entrada da Bolívia para os brasileiros e ate há um prolongamento da estrada que segue ate Santa Cruz de la Sierra.

Outros horários de trem cobriam um ramal que liga Campo Grande a Ponta Porã; alguns horários de Campo Grande a Bauru e horários de Campo Grande a Corumbá.  E Ponta Porã faz divisa com Pedro Juan Caballero, no Paraguai, dividida por apenas uma avenida. Era de se supor que o trem transportasse o inimaginável. Mas além desse inimaginável, o trem transportava muitos passageiros. E haviam pessoas que serviam esses passageiros durantes essas longas viagens.

Paquito era um desses senhores que parecem ter saído de uma caricatura ilustrada. Magrinho, cabelo ralo com entradas e um bigodinho bem fino calçando um nariz pontiagudo. Meio século de vida e parecia que nunca foram jovem e que nunca seria velho.

Paquito vendia revistas e jornais no trem. Por deferência especial, também vendia o suco de pneu, que era o tradicional cafezinho vendido aos corajosos passageiros. A viagem de Corumbá a Bauru começava as 8 horas da manha, pelo horário de Mato Grosso do Sul, que é uma hora a menos e terminava no outro dia em Bauru, por volta de 14 horas, quando não havia atraso, o que era bastante comum.

Era verão e o calor em Corumbá é insuportável para os desacostumados mas Paquito, com o seu paletozinho azul marinho de tergal e seu quepe de aba de plástico parecia nem sentir o tempo, quanto mais a temperatura. Aquela viagem prometia, porque ao subir na composição o ajudante do maquinista escorregou e se ralou todo. Medicado, atrasou a partida em, pelo menos,  meia hora.

E, quando o trem de passageiros atrasa, todos os trens de carga que estão no trecho, atrasam também. Era uma sucessão de atrasos.

A voz de Paquito era metálica,  puxando esses e erres, herança de um antigo desejo de ser locutor de rádio. E a cada frase mais eloqüente, erguia as sobrancelhas, enrugando toda a testa. Aliás, ele era muito querido por toda a equipe do trem.

Começar a viagem pela manhã proporcionava aos passageiros um espetáculo fantástico na travessia do Pantanal. Jacarés, capivaras, veados, macacos e pássaro aos bandos compunham cenas inesquecíveis… Como os trilhos foram construídos em região alagada, era necessário uma velocidade moderada e, às vezes, bastante lentas, o que permitia uma observação privilegiada por quem conseguia um lugar nas portas ou nas janelas dos vagões.

Pelos corredores, a rotina do trem começava. Ora era o bilheteiro, ora eram os vendedores, como o Paquito.

Já se aproximava do meio dia e Paquito começou a oferecer o almoço. O passageiro poderia ir ao restaurante ou almoçar na poltrona mesmo, recebendo o famoso PF; um prato feito com arroz, feijão, macarrão, um bife e duas rodelas de tomate. Foi ai que Paquito notou aquele casal,  num vagão de primeira classe. Voltando para o carro restaurante foi pensando, pensando…

–           Que casal estranho…..

–           Que que é Paquito….? Perguntou Barba, o cozinheiro.

–           Nada não, acho que é impressão minha… Tem mais PF pronto ai?

–           Claro… Leve esses seis aqui….

–           Ta bom… Daqui a pouco volto pra acertar.

Colocando um prato vazio sobre o prato com a refeição e fazendo um pilha, Paquito colocava a mesma em um pano, amarrava as duas pontas atrás do pescoço o que facilitava em muito o transporte. O casal havia pedido dois PFs que deveriam ser entregues na próxima vez, mas Paquito não se conteve, passou por quem estava na frente e foi lá no carro de primeira.

–           Olha o almoço de vocês…. Ta quentinho… Se tiver o dinheiro trocado, eu agradeço…

O rapaz pagou com uma nota e disse que Paquito poderia ficar com o troco. Era um bom troco e Paquito saiu rapidinho temendo um arrependimento. Mas, mesmo assim notou a expressão assustada da moça e pode notar que entre os dois havia um bebe, provavelmente, dormindo. No caminho de volta, anotou pedidos de refrigerantes e os trouxe, junto a mais uma pilha de Pfs. Não tinha mais nenhuma entrega naquele carro, mas foi lá,  mesmo assim. Quem sabe alguém já teria terminado de almoçar e ele, então, traria os pratos vazios. Passou bem devagar pelo casal e teve que desviar o olhar,  porque o rapaz o encarou de forma ameaçadora.

Reparou que a moça nem tinha aberto o prato ainda.

Voltou para o restaurante para fazer o acerto daquela entrega.

– Tem um casal muito estranho num carro da primeira…

–           Como assim…?. Quis saber Rodolfo, o gerente do restaurante…

–           Não sei não… O cara é magrinho cadavérico, vermelhão, tem bigode e cavanhaque ‘de bode’ e ainda usa óculos escuros o tempo todo.

¬          E que é que tem isso?

–           Não sei.. A moça que tá com ele é morena, bonita, parece uma ‘crucenha’, mas pelo sotaque, parece ser carioca….

–           Ainda pergunto o que é que tem isso…?

–           Não sei… Parecem assustados…

–           Assustados?

–           É eles não relaxam… E tem ainda o bebê…

–           Bebê?

–           É… A criança ta muito coberta, num calorzão desse….

–           Vai ver é pai de primeira viagem…

–           Pode ser… Mas eles nem se falam  direito…

–           Vai ver tão brigados…

Era comum Paquito voltar de suas entregas com estórias para contar e todos já estavam acostumados. Alias, gostavam muito. Por isso da forma como ouviram, esqueceram. Paquito voltou levando mais refrigerantes e tinha muita pressa, já que estava chegando mais uma estação.

–           Chipa… Olha a chipa…

As vendedoras de chipa, na plataforma de Miranda, ainda lembravam as fronteiras de Bolivia e Paraguai, que fazem de Mato Grosso do Sul um estado tão especial. Chipa é um biscoito de queijo, tipo pão de queijo mineiro, com forma mais alongada.

Paquito não gostava muito desses vendedores, já que eram seus concorrentes diretos mas sabia que isso criava a atmosfera da viagem. Muitos daqueles passageiros eram turistas e ele sabia como turista gasta com qualquer coisa diferente. O trem movimentou- se ao mesmo tempo em que ele passava por aquele casal. O rapaz parecia dormir e a moça segurava e bebe no colo, de encontro ao peito. Paquito continuou rápido mas ficou imaginando a cena. Quando chegou no restaurante não se conteve.

–           Caramba, mas assim o neném não respira….

–           Como é,  Paquito?

–           Sabe aquele casal estranho que lhe falei?

–           Que tem….?

–           A moça não parece mãe, não…

–           E porque?

–           Ela não sabe nem segurar o neném…(pegando a garrafa térmica)  Ela está apertando a cara do neném assim, ó, contra o peito… Desse jeito ele vai se sufocar…..

–           E você acha que ela não sabe disso, ô Paquito.!!!.

Paquito nem respondeu. Pegou a garrafa térmica com café, os copos americanos, de vidro, e saiu.

Atendendo um aqui, outro ali, esqueceu- se do casal e seu bebê. Só foi se incomodar um pouco quando viu aqueles ‘federais’ embarcando em Aquidauana.

Já conhecia os dois de outras ‘batidas’ e sabia que eles não facilitavam nem um pouquinho. Eles eram de Campo Grande, mas quando havia alguma denuncia, iam de carro ate Aquidauana, armavam a ‘campana’ e preparavam o flagrante, contando com o reforço em Campo Grande, onde outros agentes aguardavam. De Aquidauana a Campo Grande passariam ainda algumas horas e Paquito ficou ‘patrulhando’ os dois agentes tentando descobrir o ‘avião’, que é a denominação dada ao transportador de drogas compradas na fronteira. Percebeu um dos agentes fingindo ler uma revista em quadrinhos, sentado na primeira poltrona do vagão enquanto o outro ficava em pé na outra ponta de vagão. De repente, e lentamente, os dois trocavam de lugar, cruzando- se pelo corredor sem mesmo se olharem. Paquito já havia visto esta operação mais de uma vez, em outras viagem, e sabia que quando eles detectavam o ‘avião’, ficavam no vagão, juntos, esperando Campo Grande. Ainda não havia acontecido isso. Isto é, não haviam ainda encontrado o, ou os traficantes. Normalmente, tinham a descrição anotada em papel e antes de ‘correr’ outro vagão, conferiam juntos a descrição.  Sabiam também que o denunciado descrito, às vezes, não embarcava e passava o ‘bagulho’ para outro “avião”. Quem fazia a denuncia, normalmente, era o próprio vendedor da droga, na Bolívia. Quando não encontravam o descrito passavam a procurar comportamentos suspeitos. Por fim, colocavam a jaqueta com a inscrição da Policia Federal e observavam as reações. Paquito conhecia todo esse processo e procurava não estar muito perto quando acontecesse o flagrante. Mas, estava percebendo que os dois agentes não estavam tendo sucesso, não. Já era final de tarde, Campo Grande se aproximava e nada de abordagem. Paquito já achava que não havia traficante naquele trem.

Começo da noite e o trem parou na estação de Campo Grande. Os dois agentes desceram. Paquito pode observá-los conversando com outros três na plataforma, viu os cinco subirem, correrem todos os vagões, revistarem os carros dormitórios e novamente descerem sem nada apurado. Em Campo Grande o trem demora um pouco mais para sair, mas naquele dia demorou um pouco mais. Já passava das oito e meia da noite quando se ouviu o apito do chefe do trem autorizando o maquinista sair.

Paquito passou recolhendo os últimos pratos do jantar e a cada vez que chegava ao carro restaurante, contava mais um pouco do trabalho frustrados dos agentes federais.

–           Mas parece que um deles esta seguindo viagem – comentou Barba.

–           Eu não vi retrucou Paquito

–           É um que eu conheço… Ele esta no segundo vagão da  Primeira

–           Será que está de serviço?

–           Claro ! Está sem bagagem…

–           Deve descer em Ribas do Rio Pardo, então…

–           E deve ter viatura esperando por ele lá… Deve ser coisa grande que eles estão procurando…

–           Bem… Vou oferecer cafezinho…

–           Qualquer coisa vem contar….

–           Tá…

Mas não havia nada pra contar. A composição cortava a escuridão e dentro dos vagões os passageiros procuravam a melhor posição em busca do sono. O tac ti tac das rodas deslizando sobre os trilhos  e o balanceio lateral do vagão criava uma sensação, no mínimo, estranha a quem se detinha no detalhe do ambiente. Já era uma hora da madrugada quando o trem se aproximou de Três Lagoas e o chefe do trem passou coletando os bilhetes de quem iria desembarcar. Paquito aproveitou para se aproximar do tal agente e constatou que ele não descera em Ribas do Rio Pardo e que também não dormira nem um pouco. Chegou bem perto, abaixou e quase cochilou.

–           Quer um café?

–           Tem?  Quero… Obrigado.

–           Vou buscar…

Paquito nem sabia se havia café quente ainda; mas não resistira a curiosidade e se arriscou. Chegou no carro restaurante, adentrou a cozinha e encontrou Barba ainda acordado.

–           Barba, tem um café, ainda?

–           Não.

–           Não?

–           Não.

–           Puxa vida! Eu precisava de um café, urgente.

–           Porque?

–           Eu precisava agradar uma pessoa…

–           Que pessoa?

–           Um federal… quero saber qual é a ação deles hoje…

–           Como assim?

–           É que desde Aquidauana eles estão atrás de alguma coisa… e até agora não conseguiram fazer o flagrante… se não fizerem em Três Lagoas, é porque a coisa é grande e difícil…

–           E o que você quer?

–           Quero puxar uma conversa com o federal… saber alguma coisa.

–           Tá bem… vou passar um rapidinho…

Paquito entregou o café ao agente e já perguntou.

–           Posso ajudar em alguma coisa?

–           Como é?

–           Eu sei que você é da federal. E que está de serviço.

Aqui na composição a gente sabe…..

–           Qual o teu nome?

–           Paquito, seu criado…

–           Olha aqui, Paquito, estamos procurando um gordinho, mais ou menos 1,60 de altura, cabelos crespos, castanhos bem peludos, com uma maleta de couro cru e uma mala marrom, grande . De dia, ele usa óculos escuros o tempo todo…

–           Não está no trem…

–           O que?

–           Só se estiver nos carros dormitórios…

–           Já checamos os três…. lá não esta….. mas temos certeza que ele embarcou com pelo menos três quilos de ‘pó’….

–           Três quilos?

–           Ainda não é muito…. mas ficamos sabendo que ele compra do mesmo fornecedor pelo menos quatro vezes por semana…

–           Por semana?

–           Já viu a quantidade, né?

–           E como ele faz?

–           É o que queremos descobrir agora…

–           E nada?

–           Nada…

–           O senhor esta sozinho?

–           Não.

–           Onde está o outro?

–           Precisa dizer?

–           Claro que não.

–           Você é inteligente, Paquito….

–           A gente pode ajudar?

–           Fique de olho….

–           ok, chefe

Paquito desceu um pouco na plataforma em Três Lagoas e se imaginou um super agente secreto.

Andou lentamente, pela lateral do trem observando as janelas e seus ocupantes, perguntando- se ‘cadê o gordinho?’. Num repente de raciocínio, concluiu que o gordinho não era o ‘avião’ e que contratara alguém. Mas, quem? Mesmo com o movimento de embarque e desembarque, a maioria dos passageiros continuava dormindo. Entrou novamente no trem e passou lentamente pelos corredores dos vagões. Seria aquele gordo com aquela mala no colo, dormindo tão profundamente que chegava a babar? Seria aquele negro de boina colorida e fones no ouvidos,que já tomara três cervejas desde Campo Grande? Ou seria aquele senhor careca, de bigode, de paletó cinza e camisa branca, que ficava mastigando aquele palito de fósforo?. Como saber? Os federais já haviam usado seus truques e ninguém se entregou. Então, como fazer?  O melhor mesmo era dormir um pouco. E assim fez. Perto de seis horas já estava enchendo a garrafa térmica de três litros para correr os vagões.

O trem já se aproximava de Castilho e logo chegaria a Andradina, já no estado de São Paulo. Paquito percebeu que fazia calor porque alguns passageiros comentaram sobre isso. Mas não se abateu.

Atravessou os carros de primeira classe e quando começou os da segunda, lembrou- se do casal com o bebê. Chegou perto e viu que os três dormiam fundo, apesar do calor e da claridade das seis horas do verão. A paisagem, vista pelas janelas já era completamente diferente, com muito mais construções, apesar de muito pasto e muito gado ainda. Castilho passou e Andradina, onde a parada seria maior já se aproximava. Paquito procurou saber do agente da policia federal, já que embarcara em Campo Grande, sem bagagem, e que deveria estar trabalhando o tempo todo. Não o achou na primeira passagem. Deveria estar no banheiro. Na verdade, estava mesmo é curioso para saber quem era o outro agente e se fariam o fragrante em Araçatuba, onde sempre havia mais agentes da policia federal. Mas nada. A viagem transcorria sem problema algum. Para Paquito, os federais estavam aproveitando a viagem pra passear e até mesmo chegar a Bauru, pra fazer algumas compras, ir na casa da Eny, um bordel famoso e voltar a Campo Grande sem remorso algum. A chegada em Bauru estava prevista pra 14:30h aproximadamente. Pouco atraso. Já era quase meio dia, Paquito entregava alguns PFs e o trem se aproximava de Lins. Um dos Pfs foi entregue ao agente e ao seu colega, que finalmente se juntou ao mesmo, desistindo de qualquer ação. Ainda faltavam quase duas horas para o trem chegar a Bauru e Paquito aproveitava para insistir em oferecer refrigerantes geladinhos. Ao percorrer os vagões de segunda classe notou algo muito estranho. O casal com o bebe estava discutindo em tom baixo, mas bem perceptivo. Passou por eles e sentiu um cheiro diferente. Na volta, parou na porta do banheiro para observar melhor, já que o casal estava na primeira poltrona do carro. Foi quando viu o rapaz tirar um spray do bolso da jaqueta e pulverizar o ar. Notou que o spray era um desodorante chamado Bom Ar e pode perceber o aroma de lavanda. Achou esquisito mas seguiu seu trabalho. Quando voltou pra recolher os vasilhames, notou que o rapaz continuava pulverizando o ar, mas que de vez em quando, pulverizava na direção do bebê. Revoltou- se. Isso era demais.

-Olha aqui rapaz, tá certo que no fim da viagem o cheiro dos banheiros começa incomodar,  mas não precisava jogar isso no nariz do teu filho, caramba!

–           Não te meta, companheiro…

–           Tá bem… mas isso faz mal pro bebê…e que mãe é a senhora que deixa isso?

–           Já disse, não te meta,… esse trem fede muito… fora daqui….

Paquito não teve outra alternativa. Resmungando saiu pisando forte. Instintivamente, acercou-se dos agentes federais e comentou o ocorrido.

–           Vocês poderiam dar uma dura no rapaz… ele é muito abusado.

–           Não podemos fazer isso… o problema da higiene é com vocês… embora eu reconheça que o cheiro dos banheiros agora é mesmo caso de policia…

Paquito voltou ao carro restaurante e comentou com o Barba e com Rodolfo. Estava realmente indignado com aqueles pais. Imagine; jogar spray em cima de um bebê!!? O trem já saira  de Pirajui, faltava pouco mais de  uma hora pra chegar a Bauru e o calor era infernal. Paquito resolveu fazer uma última checagem em busca de vasilhames ou qualquer coisa que precisasse ser recolhida. Foi quando viu o rapaz pulverizar bem em cima do bebe quase em seu rostinho. Não se conteve. Voltou ao carro de primeira e praticamente intimou os agentes.

–           Vocês tem que ver isso e fazer alguma coisa… ele vai matar o filho desse jeito…

Pra dar um aspecto mais oficial a reprimenda, Paquito pediu aos agentes que colocassem o colete da Policia Federal. Assim o rapaz não o ofenderia e talvez ouvisse a voz do bom senso. De cara fechada, seguiu firme pelos corredores, acompanhando de perto pelos agentes, que iam com muita má vontade, aliás. Quando entraram no vagão onde estava o casal e Paquito os apontou lá no fundo, a reação da moça foi surpreendente. Ela deu um grito, que não dava pra entender o que dizia e simplesmente jogou o bebe no peito do rapaz. Após isso, saiu desesperada pelos corredores dos outros vagões. Enquanto isso o rapaz, com o bebe no colo, via Paquito e os agentes se aproximarem rapidamente e, meio sem ação, por estar sozinho tomou uma decisão surpreendente.

Arremessou o bebe na direção dos três. Paquito se atirou e pegou o bebe em pleno ar, sem entender nada. Atordoado, caindo por cima de outros passageiros, pode ver o rapaz sacando uma arma e rapidamente Paquito levantou-se e quase vomitou ao sentir o cheiro que vinha do bebê. Num gesto paternal, delicado e preocupadíssimo, foi arrumar a manta que cobria a criança. Foi quando viu que o bebe não abria os olhos. E mais, que estava frio. E mais; é que estava mesmo mortinho. Quis gritar, a voz não saiu, quis chorar, não saiu, quis largar a criança mas só conseguia ficar olhando para aquele rostinho pálido. Os outros passageiros dos outros carros já faziam um pequeno tumulto ao seu redor, subindo por sobre as poltronas, querendo saber o que estava acontecendo. Apertou o bebe de encontro ao peito com tanta força que percebeu que algo estourara. O mal cheiro aumentou e num misto de asco e incompreensão procurou saber o que fizera com aquele corpinho. Levantou a manta e percebeu uma enorme costura cirúrgica na barriga do bebê. Alguns pontos se abriram. Um dos agentes pegou a criança, tirou o fio da sutura e do abdômen da criança, já sem as vísceras, bastante inchado, e tirou vários sacos de plásticos, cheios de cocaína.

Paquito não acreditava no que via. Uma passageira desmaiou e, ao cair, bateu a cabeça na lateral da poltrona e sangrou muito. Uma outra passageira vomitou muito, inicialmente no marido e depois pela janela. O outro agente conseguiu capturar a suposta mãe quando ela ameaçava se jogar do trem em movimento. Pouco tempo depois o trem apitava anunciando sua chegada na gare central da estação ferroviária de Bauru. Não havia ninguém esperando os agentes federais. Os passageiros desciam, seguiam seus destinos, talvez comentando, talvez não. Os agentes ficaram no trem, no vagão do chefe, esperando que viessem agentes de Bauru para configurar o fragrante. Paquito, saudoso de casa, sentou- se numa mesa do carro restaurante e observava a plataforma com todas as pessoas se cumprimentando e carregando suas malas. Precisava ainda fazer um acerto de caixa com Rodolfo e torcia pra não ser convocado como testemunha. Quando a plataforma se esvaziava, viu os agentes levarem o casal, algemado, pra fora da estação. Ai entrou num banheiro, vomitou muito e chorou como uma criança. Chegou em casa quase começo da noite, abraçou a ‘patroa’ como chamava a esposa, passou a mão na cabeça do menino, beijou a menina mais velha e abraçou longamente a menorzinha, magrinha como um bebê. Ai; tomou um gole de cachaça e comentou que a viagem tinha sido normal; como todas as outras… só a sua vida é que deixaria de ser normal; pois precisaria, sempre ao lembrar-se, de um ou dois goles de cachaça……..                                   

W. ITACOM na Bacia de Campos RJ

Inicio dos trabalhos da W. Itacom na Bacia de Campos dentro do PEA Programa de Educação Ambiental para a petroleira OGPar. O levantamento demorou 90 dias e só este trabalho mais 180 dias. Foi um de 9 trabalhos

Realidade diferente!

A W. Itacom aplicou 06 cursos de educação ambiental nas comunidades citadas. Após a conclusão, a Itacom desenvolveu mais os seguintes projetos para a mesma petroleira;

1- Término de instalação física da fábrica de oleados na Colônia de Pescadores de Cabo Frio com curso de capacitação dos operadores das máquinas de produção.

2- Mobilização das entidades pesqueiras de Arraial do Cabo para reunião com o Ibama e definição da planta da nova sede da Colônia de Pescadores. Desenvolvimento também de PCS ( Programa de Comunicação Social) junto as autoridades municipais e comunidades pesqueiras de Arraial e Figueira Branca

3- PCS em Búzios e entrega de equipamentos para manutenção das embarcações

4 – Curso de informática, governança e gestão financeira, além do PCS, na Colônia de Pescadores de Macaé e na Associação dos Pescadores da Barra do Rio Macaé.

5- Reforma da sala de informática e comunicação social na Colônia de Pescadores do Farol de São Tomé em Campos.

6- Curso de Gestão e construção de mini estaleiro na Colônia de Pescadores de Atafona em São João da Barra

7- Reestruturação da sala de informática da Colônia de Pescadores no distrito de Gargaú em São Francisco de Itabapoana, além do programa de comunicação social

8- Capacitação das marisqueiras da Colônia de Pescadores da praia de Itaipava, no distrito de Marataíses em Itapemirim, ES, em redes sociais.

Todos os trabalhos entregues sem qualquer senão nestes quase três anos.

Portal de Empresas e a Capacitação

Rio de Janeiro – Bauru – S.J. do Rio Preto – Londrina – Região dos Lagos RJ

Capacitar é tornar alguém capaz de realizar tarefas, quase automaticamente. Quase, só porque somos humanos.

Esta capacitação busca tornar os vendedores de estabelecimentos comerciais aptos a dialogar digitalmente com os consumidores

Dialogar digitalmente não é virtualmente. Diálogo virtual é pelo whatsapp e outros mensageiros.

Diálogo digital é o que se encaixa, É ação e reação. É pergunta e resposta correta.

Criar uma mente digital ajuda a criar um ambiente digital, facilitando as relações comerciais (e pessoais também, porque não?) O tempo é melhor utilizado diminuindo as relações e tarefas analógicas.

As informações que serão passadas, ou transmitidas, nesta capacitação só terão valor se houver uma resposta. Se não houver a prática, não adianta ler ou ouvir. Não haverá o processamento e consequente fixação.

Portanto leia com atenção, ouça os áudios, cumpra a tarefa e, principalmente, questione.

Seguem os temas

Tema 1

Tema 2
Tema 3
Tema4
Tema 4
Tema 5
Tema 6

Tema 7
Tema 8