De volta ao corpo

João morreu, sem perceber.

A viga de concreto, içada por um pequeno guindaste, soltou-se e atingiu a parte de trás da cabeça. Não ouviu e nem viu nada. Não sentiu qualquer dor.

Estava naquela construção por acaso, contrariando sua mãe que o queria em casa fazendo as tarefas da escola.

Foi acompanhando um amigo que fora levar um documento ao pai, que era um dos pedreiros da obra.

João era negro, muito pobre e tinha 16 anos.

João, então,  sentiu-se em um lugar diferente, aparentemente  vazio,  de infinita dimensão, mas nada via.

Aliás, pode perceber que não tinha mais o sentido da visão.

Por isso, era tudo muito escuro, mas de um negro brilhante, polido, aparentemente refletindo luzes.

Também percebia que se lembrava de seu corpo e de suas feições,  mas não sentia seus braços,  pernas, ou qualquer parte de seu antigo corpo. E nem as vontades, sempre gritantes, de seu antigo corpo..

Não havia mais a sensação de fome ou sede ou de qualquer lembrança do que fosse uma simples dor física, já que não havia mais a sua parte física.

Mas ele se lembrava de toda a sua história, de tudo o que fez em seus 16 anos e, aí sim,  sentia alegria ou uma tristeza angustiante.

Não via, mas sentia presenças, muitas presenças. Imaginou-se, então, um cego.

Mas, não era cegueira, era um modo diferente de perceber o que havia além dele, embora não houvesse nada.

Apenas aquelas  pequenas porções de luz branca, movendo-se lentamente no fundo negro,  sem forma alguma, diferenciando-se  apenas pela intensidade de seu brilho.

E foi uma dessas porções de luz, bem intensa, que se  aproximou dele. Não houve fala nem som da voz, mas puderam, serenamente, conversar.

–           Bem vindo, João.

–           Sabe o meu nome?

–           Sim,  estava te esperando. Meu último nome foi Ricardo e estava acompanhando tua vida.

–           Teu último nome foi Ricardo?  Como assim?

–           Neste plano guardamos o nome de nossa última fase terrena.

–           E como assim, acompanhando minha vida?

–           Sim, procurando evitar que você morresse

–           Eu morri? Porque eu morri?

–           Não podemos controlar a vida terrena de ninguém. Tudo depende do livre arbítrio de cada um. Você foi vítima de uma imprudência e quem a cometeu deverá responder por isso.

–           E agora?

–           Você ficará um tempo entre nós, ouvindo estórias, aprendendo e retornando para mais uma jornada física. Às vezes, você poderá voltar para a terra com uma missão

–           Missão?

–           Sim, cada fase terrena  tem um propósito e, dependendo do desenvolvimento da missão, esse propósito é atingido ou não.

–           Não entendi

–           É porque você ainda é um espírito jovem. É uma obra recente do Criador.

–           E onde Ele está?

–           Em um plano bem mais acima.

–           Eu vou para lá?

–           Vai demorar algum tempo, depois de muitas fases terrenas e toda a evolução possível,  quando você for uma  luz intensa,  tão intensa que se decomporá em todas as cores. Será uma maravilha!

–           E enquanto isso não acontece, o que faço eu?

–           Mova-se à vontade, conheça outras criações.

–           E como?

–           Basta chegar perto que a comunicação se fará.  Saiba também que o brilho da luz indica o grau de evolução do espírito.

–           Será que tem alguém que conheci por aqui?

–           É possível, mas não espere que te reconheçam.

–           Ah, não? Porque?

–           Porque aqui é possível identificar apenas a consciência. Se não havia ligação espiritual não haverá reconhecimento

Durante muito tempo João vagou por aquele ambiente. Conheceu muitas estórias e ,  também, muitas lamentações e arrependimentos. Ricardo, às vezes, falava sobre algumas atitudes que ele havia tomado e lhe dava alguns conselhos. Estava calmo e em paz, mas sentia uma vontade que não sabia identificar. Ficou deste jeito, sem saber por quanto tempo,  quando inesperadamente Ricardo se aproximou.

–           Prepare-se!

–           Para que?

–           Você vai voltar a um corpo a ser formado dentro do corpo de uma mulher que não quer ter filhos.

–           Ué, não entendi. Ah, já sei,  sou um espírito recente…

–           é  isso mesmo

–           Mas, se ela não quer ter filho o que eu vou fazer lá?

–           Servir a um propósito.

João  chegou no mesmo instante em que sentiu uma descarga elétrica.  Ficou por ali,  sentindo-se crescer,  mas logo tudo pareceu explodir. Logo estava de volta próximo a  Ricardo. Continuava ainda com  a consciência de João.

–           Porque estou de volta?

–           Porque ela provocou um aborto.

–           Foi ruim

–           Mas, prepare-se; você vai voltar para o mesmo corpo.

–           De novo?

–           Sim, mas desta vez vamos alterar a dosagem de hormônios. Você será uma menina. E continuarei por perto, procure perceber.

–           Mas, como posso perceber?

–           Fique tranqüilo, em paz, sem pensamentos ruins, que você vai me ouvir.

João ainda teve tempo de vagar um pouco e ouvir algumas estórias de outros abortados.  Pode compreender que a vida começa no embrião quando o coração pulsa e as células nervosas ficam prontas para se interligarem.

Pode entender também que é possível perceber o ambiente externo quando alguns sistemas orgânicos já estão formados. De repente, Ricardo estava  próximo, de repente não estava mais e João é que estava levando um choque.

E não era mais João. O desenvolvimento foi rápido e nove meses depois nascia como Maria, sem nenhuma lembrança de como era João.

A família de Maria era formada apenas pelos pais e com bons recursos financeiros,  mas a mãe era de uma personalidade fútil e superficial. E o pai, um homem de personalidade fraca e carente que sempre atendia a seus desejos.

Foram cinco anos de uma vida feliz. Maria era muito carinhosa, linda e bem humorada. Encantava a todos. Sua mãe já falava em trazer um irmãozinho para lhe fazer companhia, tão grande era a alegria que Maria havia trazido aquela casa. Ela já falava muito, conversava muito, dizia frases inteligentes.

Apoiava seu pai em tudo e o abraçava muito, dizendo sempre que ele era seu cavaleiro protetor,  forte e corajoso. Isso o deixava seguro e confiante. Sua mãe até que gostava disso. Muitas vezes, também o chamava de cavaleiro forte e corajoso.

No entanto, um dia Maria teve um desmaio e, levada ao um hospital, foi constatada uma grave doença degenerativa e por mais cinco anos, Maria agonizou.

Foi definhando a cada dia e apesar de todos os tratamentos possíveis, seu fim parecia inevitável. Mesmo assim, mantinha seu bom humor e uma coragem surpreendente.

Em uma de suas internações conheceu Luzia, também de sua idade que passava por uma quimioterapia. Gostaram-se e conversavam muito. E o câncer de Luzia era muito agressivo que ela também já se convencia que não teria muitas chances de continuar viva.

Maria gostava de se pentear e a mãe começou a passar pós e batom para que sua palidez não fosse muito notada. Ela gostava muito. Mas ao ver Luzia sem cabelos parou de se pentear e pediu que a mãe maquiasse as duas. Mas Luzia insistia em pentear os cabelos de Maria. E nesses momentos esqueciam suas dores falando, sorrindo, brincando com outras pessoas.

Suas mães procuravam não chorar perto delas e, por mais dolorido que fosse pra elas,mães,  inventavam brincadeiras e cantavam pequenas canções.

Um dia, em que as duas estavam juntas num dos quartos, ouviram uma enfermeira cumprimentando outra enfermeira pelo aniversário naquele dia. Luzia também a cumprimentou a seu modo

–           Feliz Natal!

–           Como?

Perguntou a enfermeira, sem entender o cumprimento. E foi Maria quem completou;

–           Sim, feliz natal, feliz natalício, dia em que você nasce.

–           Ah, sim, obrigada. É que pensei que natal fosse só em dezembro.

–           É também em dezembro, intervém Luzia, quando todos se lembram de Deus

–           E se lembram também de como é fácil amar, como é simples perdoar Diz Maria

–          E como é gostoso um abraço, completa Luzia

–           Mas isso pode ser também no teu natal, não é?

( pergunta Maria, que continua)

O teu nascimento deve ser uma grande data também, como o natal de dezembro. Lembra como você fica no Natal de dezembro?

–           O nascimento e a vida de Jesus não é um exemplo, para  ser seguido? , pergunta Luzia.

–           Então teu aniversário deve ser celebrado como o Natal de dezembro, não é? pergunta Maria.

–           Ah, bem que eu gostaria, diz a enfermeira

–           Mas isso pode acontecer, basta você querer, diz Luzia

–           Mas eu quero..

–           então lembre-se do espírito do Natal em teu natal, lembra como é?

–           prepare sua festa de aniversário com o espírito do Natal, lembra como você se sente naquele dia? Pergunta Maria

–           sim, lembro, fico toda chorosa

–           é simples, não é? completa Luzia

–           é, Vou tentar

Quando estava perto de completar seus dez anos suas dores aumentaram muito e já não andava mais. Os médicos disseram a seus pais que não adiantaria mais levá-la ao hospital. Ficou tão fraca que quase não conseguia falar. Mesmo assim disse a sua mãe que ela ira embora,  mas  que ela teria outra filha.

–           Mas é preciso desejá-la  muito para poder tê-la.

A mãe lembrou-se de seu primeiro aborto e de toda a sua preocupação com seu corpo, achando que iria ficar deformado com uma gravidez. Sentiu um desconforto com tal lembrança.

–           Mamãe, eu queria que você  valorizasse a vida de qualquer ser. Mesmo que não seja gente como nós. Assim como os animais, entende?. Queria que você tivesse amor por todos. Você entende que, assim,  nunca estará sozinha?

Pouco tempo depois, Maria era uma pequena nuvem de luz um pouco mais brilhante e foi Ricardo quem a recebeu.

–           Bem vinda, Maria

–           Ah, que bom, não tenho mais dores.

–           Você suportou bem essas dores, Maria.

–           Que lugar é esse? O que aconteceu comigo?

–           Você foi mostrar o amor para um homem e uma mulher. Hoje eles são pessoas melhores depois de tua passagem pela vida deles. Agora, os filhos deles serão desejados e muito amados.

–           Não estou entendendo.

–           Não se preocupe, você não precisa entender. Mas saiba que você está mais fortalecida depois dessa jornada terrena.

–           Estou no céu? Porque não vejo ninguém?

–           Aqui é um dos níveis do céu, como se fala na terra. Mas, ainda não é o céu perfeito, aquele onde se encontra a felicidade eterna.

–           Não? E onde é?

–           É aqui mesmo, só que em outra dimensão

–           não entendi

–           é mais ou menos como um aparelho de TV onde você sintoniza estações diferentes. Ali, num só ponto estão muitas estações, não é? Aqui basta ser de nível de evolução diferente para encontrar sua própria estação.

–           E agora? Pra onde vou? O que vou fazer?

–           Você vai ser Maria ainda por algum tempo. Passeie e procure se aproximar de outros espíritos. Converse bastante. Procure aprender. É aqui neste nível que os espíritos se preparam para mais uma jornada evolutiva.

Ricardo estava gostando da evolução daquele jovem espírito que estava sob sua guarda e já o achava merecedor de uma vida mais longa.

Roberto era outro espírito de luz intensa que havia sido colocado como guardião na mesma época que Ricardo.

Roberto monitorava uma mulher já evoluída que havia se casado recentemente. Roberto estava procurando um espírito jovem para a primeira gravidez de sua protegida e procurou Ricardo para conversar.

Enquanto isso Maria vagava lentamente aproximando-se e afastando-se de outras nuvens de luz até que sentiu uma forte atração.

–           Luzia! É você?

–           Sim; Maria?

–           Sim, sim

–           que alegria te encontrar;

–           sinto a mesma alegria e não me sinto mais só agora

–           vamos voar? A gente pode voar

–           é mesmo, vamos, vamos

E aí, eram duas bolas de luz passando muito rapidamente para lá e para cá. Falaram-se muito, comentaram sobre os momentos ruins no hospital e sobre as brincadeiras que fizeram juntas.

Roberto ficou sabendo de Ricardo que Maria, sua protegida, iria voltar a um corpo, desta vez para ter uma vida bem longa. Perguntou então se ela não poderia ir para o ventre de sua protegida, que já era merecedora de uma filha que lhe fizesse feliz. Disse que era certo que seria a melhor mãe que ela poderia ter.

Ricardo chamou Maria e lhe disse que iria voltar a terra logo. Maria perguntou se Luzia não poderia ir com ela.

–           Gêmeas? Indagou Roberto

–           Porque não? Respondeu Ricardo. Vamos falar com o guardião dela.

Algum tempo depois, nasciam, lindas, saudáveis e bem diferentes uma da outra.

Walter Itajubá

Não existe nada mais horizontal do que uma família.

O falido sistema patriarcal, no momento querendo ser substituído pelo comando  feminino, foi uma nefasta demonstração de ignorância e involução.

A cultura tribal,  com sua hierarquia vertical, infelizmente ainda é modelo para a construção de um grupo social consangüíneo, também conhecido como “família”.

E isto ainda é um erro maior.

É preciso entender que não se “manda” em nenhum ser humano, muito menos em uma criança, ainda mais sendo seu filho.

Quem faz isso, aproveitando-se de seu tamanho,  é despreparado, confuso, impotente. Não se  “tem” um ser humano;  mesmo sendo  menor e vulnerável .

Quando nasce um filho é preciso entender que ele traz  uma memória genética , física e emocional, que se desenvolverá de uma forma ou de outra.

Não se deve, interferir, mas apoiar. Não se deve impor, mas facilitar.

Também é preciso compreender que ele é formado pela contribuição genética de duas pessoas.

E que cada uma dessas duas pessoas também veio de outras duas pessoas.

E essas duas pessoas  também  vieram de etc, etc, etc.

Não é lógico imaginar que esse filho traga traços de cada uma dessas personalidade?

Não é, também lógico,  necessário conhecer bem esses parentes, que é de onde vieram esses traços?

É preciso, então,  estar atento para perceber esses traços  no filho e, principalmente, estar preparado para lidar com eles.

Se forem traços negativos, como índole violenta ou explosiva, corrigi-los.

Se forem traços positivos,  como uma habilidade manual ou uma tendência profissional, potencializá-los e permitir que aconteçam

Fazer isso com o filho é básico para cumprir o papel de pais.

Afeto, carinho, diversão mútua,  amizade e outros valores do amor, virão naturalmente.

Mas, é  imperdoável  o isolamento da  “nova” família, a partir do casamento de um filho ou filha, como pregam alguns segmentos  religiosos.

O casamento de um filho é aumento da família; não diminuição.

Aumento que tende a crescer, com novas pessoas, novas estórias, novas emoções e  uma nova diversidade,  instigante e desafiadora,  e por isso mesmo, muito interessante.