ILANA, A Vendedora de Chipa

Ilana

Quando conheci Ilana eu ainda trabalhava como viajante vendedor propagandista de um laboratório farmacêutico no estado do Mato Grosso.

Era inicio da década de 70 e ainda era um estado único, onde Campo Grande era apenas uma grande cidade, bem longe da capital Cuiabá.

Morando em Bauru, usava constantemente o trem como meio de locomoção, embora, quando fora da linha, eu usasse carros alugados, barcos e até pequenos aviões. Vendia, entre outros produtos, soros contra picada de cobras.

Mas o grande faturamento vinha mesmo das visitas às farmácias colocando antibióticos, vitaminas, antitússicos. Isso fazia com que eu tivesse que visitar todas as cidades e vilas onde houvesse uma farmácia, por menor que fosse.

As cidades ao longo da estrada de ferro Noroeste do Brasil, no meu setor eram Campo Grande, Aquidauana, Miranda e Corumbá. Dormia em Campo Grande, pegava o trem às 8 horas, chegava a Aquidauana por volta do meio dia, trabalhava à tarde as três farmácias e o hospital da cidade.

Ali, já conversava com os médicos presentes e depois procurava os que não estavam no hospital, em seus consultórios, para falar de algum produto e para deixar amostras grátis de vários produtos.  

Depois rumava para a estação esperar o trem noturno que ia para Miranda e depois Corumbá. Um trem diferente, chamado Litorina, que era praticamente um só carro. Muito mais confortável que o tradicional.

Fazia esse trajeto a cada 42 dias Aliás, todas as cidades do sul do estado eu visitei a cada 42 dias, durante alguns anos. O fato de ter que ficar esperando o trem por horas me tornou ainda mais observador do comportamento humano.

Na estação era fácil reconhecer os colegas de profissão que, embora de ramos diferentes, tinham a pasta ou maleta de vendas como utensílio comum de viagem. Às vezes rolavam conversas, às vezes cada um ficava conferindo pedidos, relatórios, roteiro.

O estado do Mato Grosso, nessa época, dependia muito desses profissionais para abastecer sua economia. Uma de minhas diversões, jovem de 22 anos que eu era, consistia em procurar rostos bonitos de mulheres entre as passageiras. Muito discretamente, é claro.

E foi assim que comecei a notar aquela menina, que nem era passageira. Era uma vendedora de chipa, um biscoito de polvilho e queijo, muito comum na região do Pantanal. Morena, cabelos lisos e pretos, muito brilhantes e olhos quase asiáticos.

Parecia ter menos de 20 anos e ela chegava sempre alguns minutos antes do trem parar. Por isso demorei em notá-la. Eram muitos vendedores assediando os passageiros pelas janelas do trem e a predominância eram os vendedores de chipa.

Eu gostava de me sentar perto da janela que visse a plataforma para ver as estações e suas personagens. Inclusive os vendedores de bolos, salgados, frutas e chipa, é claro. 

Foi depois de umas duas ou três viagens que coincidiu dela vir oferecer suas chipas para mim. Era realmente muito bonita. Recusei com um gesto e ela se foi tão rápido como chegou.

Quase um ano se passou até que ela chegou mais cedo e começou a oferecer chipas para os passageiros que estavam nos bancos, esperando o trem. Quando chegou a minha vez de ser abordado, apenas com a oferta “chipa?”, repeti o gesto negativo e ela se foi rápido.

Senti haver perdido uma rara oportunidade de conhecê-la. Não tenho o jeito invasivo e perturbador do paquerador ou assediador. Nunca tive. Portanto, quando eu comprava uma chipa e recebia o troco com um olhar, já me sentia gratificado.

Mas um dia, sem querer abusar e sem esperar resposta, disse-lhe que ela me parecia mais triste do que o costume. Mas, não era tristeza, era sim uma diarreia que quase a impediu de trabalhar.

Entre meus produtos tinha um restaurador de flora intestinal e por coincidência, tinha algumas amostras em minha pasta.  Ela ouviu com atenção as instruções, perguntou se poderia dar à sua mãe, que também estava ruim. Foi isso.

 Meus períodos de 42 dias e consequentes visitas a Aquidauana duraram mais três anos, sempre com minha insistência em me aproximar e conversar um pouco mais com Ilana, com pouco sucesso.

Saí do ramo farmacêutico, deixei de ser vendedor com carteira assinada e fui ser representante comercial autônomo. Consegui uma representação em São Paulo de recursos audiovisuais, quase que exclusivamente, destinado às escolas.

Poderia vender tanto no interior de São Paulo como no sul de Mato Grosso e, naturalmente, comecei a cadastrar escolas no centro oeste paulista e logo adentrei o outro lado do Rio Paraná.

Já viajava de fusca, com um material para pronta entrega, que me daria recursos para despesa, já que toda ela cabia a mim. Já fazia mais de um semestre que eu não aparecia em Aquidauana e, agora de carro, não haveria razão para ir à estação ferroviária.

Mas, fui mesmo assim, tomar um café no bar do Bentão, um ex-vaqueiro do pantanal que havia quebrado uma perna em uma queda do cavalo. Perguntei sobre Ilana, se ele a conhecia, se ela ainda estava por ali.

Ele respondeu dizendo que ela é muito estranha, parece doente, não fala com ninguém. Chega sempre quase na hora que o trem para e vai logo embora. Disse que não sabe como é a voz dela e nem onde ela mora, mas que logo ela chegaria, pois era hora do trem de Corumbá passar.

 E ela logo chegou e, para minha surpresa, veio em minha direção. E para aumentar minha surpresa, sorriu pra mim. E sorrir transformou seu rosto em uma das mulheres mais bonitas que eu conheci. E conheci muitas, Brasil a fora.

Disse que estava feliz em me rever, que o remédio que eu havia dado a ela funcionou muito bem nela e em sua mãe, e que estava esperando me rever assim como estava esperando rever o seu amor que disse que voltaria jogo e ainda não voltou.

Falava com calma e naturalidade e quando perguntei se ela se referia ao seu namorado, noivo, marido, ela respondeu que não era nenhuma dessas opções.

Ela percebeu que nada entendi e, me puxando pelo braço, me levou até um banco vazio, falando que iria me explicar. Foi a primeira vez que ela me tocou e pensei que alguma coisa aconteceu com ela e tudo parecia ter mudado. Mas, não.

Então me contou que em um ano bem lá atrás, estava oferecendo chipas nas janelas, quando um passageiro lhe chamou a atenção pela beleza de seus olhos azuis.

Mais que isso, mesmo viajando de trem estava muito elegante e ficou mais bonito quando lhe sorriu o sorriso mais lindo que ela jamais recebera. E ele queria uma chipa.

Como estava sentado no banco do corredor, ele preferiu descer do trem e pegar o biscoito com ela. Disse a ela que nunca sentiu nada igual, em toda a sua vida, quando seus olhares se cruzaram.

Ao invés de pegar a chipa e tocou a mão dela, que se arrepiou. Depois ele tocou seu rosto, colocando a palma da mão em seu queixo e fazendo um carinho em sua orelha. Ela só olhava, petrificada.

Então ele falou o que ela mais queria ouvir, que voltaria logo, que namorariam, noivariam e se casariam ali mesmo em Aquidauana e depois iriam morar em São Paulo.

Perguntou, quando o trem apitou anunciando a saída, se ela lhe esperaria, que ele estava sendo sincero como nunca fora na vida. Ela só pode dizer um sim e depois acompanhá-lo quase que correndo pela plataforma até o trem sumir na curva,

Depois disso, a cada trem que chegava sua esperança se transformava em decepção. Mas, ela não desistiria. Havia muita verdade naquelas palavras, segundo ela. Ele certamente iria voltar para leva-la. Quando isso aconteceu ela tinha 21 anos, agora estava perto dos 30 anos.

Falava com empolgação e realmente acreditava que ele iria voltar. Fez questão de me dizer que, além de sua mãe, nunca contou esse fato a mais ninguém. Só a mim. Não me restou outra alternativa a não ser desejar que ele realmente voltasse pra ela e dizer que eu estava voltando para a estrada.

Agora, como representante autônomo eu não tinha um roteiro rígido e poderia ir para cidade que eu quisesse ou que sentisse que ali haveria possibilidades de vendas. E com as despesas por minha conta, teria que ser racional.

Por isso fiquei sem visitar Aquidauana por mais de quatro anos e quando voltei, já estava de volta à área médica, mas atendendo laboratórios de análises clínicas. E usando o trem.  

Decidi, naquela viagem ir direto a Corumbá e vir fazendo as cidades até Campo Grande, que tinha o dobro de laboratórios das outras cidades juntas. Quando o trem parou em Aquidauana, desci rapidamente para tomar um café no Bentão e dali vi Ilana abordando os passageiros oferecendo sua chipa.

Corri até ela para cumprimenta-la e, ao me responder, percebi que ela estava muito triste. Quis saber por que e ela me falou que sua mãe tinha morrido e que agora ela estava só. Disse a ela, então, que na volta em quatro ou cinco dias eu conversaria com ela. E assim, fiz.

 Desci na estação e nem fui para o hotel, fiquei esperando o trem partir pra conversar com ela. O que me chamou a atenção foi ela dizer que agora ela estava só. Será que ela ainda estava esperando o tal de olhos azuis?.

Quando nos sentamos em um banco na estação, agora já bem vazia, pedi que ela me falasse como estava a vida dela. E comecei com um elogio, dizendo que o nome dela era diferente e bonito, mas ela me esclareceu que o nome dela era Helena, e que se tornara Ilana porque a avó dela era fanhosa em virtude de uma doença que deformou o nariz dela e pronunciava Ilana ao invés de Helena.

Ela me contou que tinha um irmão que quando pequeno também a chamava de Ilana e que agora era peão pantaneiro, trabalhando para o dono do sítio onde ela morava. Disse que vinha para a cidade nos horários de chegada dos trens com uma charrete que seu irmão lhe dera, já que seu pai, também vaqueiro, sumira no mundo.

Agora seu irmão foi para outra fazenda, do mesmo dono do sitio, lá perto de Poconé e fazia anos que não voltava pra casa. Por isso, com a morte da mãe, estava realmente só.

Então, perguntei por que não arrumava um namorado, já que era tão bonita e gostava de trabalhar. Ficou em silêncio por um instante, mas me surpreendeu com a resposta.

Ela achava que iria morrer logo como a avó e como a mãe de uma doença ruim. Imaginei ser câncer ou outra doença genética, mas, baixinho, ela disse que era lepra.

Pediu que eu não contasse a ninguém, que aprendeu a confiar em mim, que se alguém soubesse, ela nem poderia estar ali e ninguém compraria suas chipas. Pode ser um preconceito tolo, mas, sim, isso poderia acontecer.

Fiquei sem saber o que dizer. Perguntei se ela estava infectada e ela disse que no último exame de sangue tinha dado negativo. Mas, ela não tinha certeza de nada.

A graça na vida dela era esperar que aquele amor voltasse um dia. 

E só sabia que se arrumasse um namorado ali, este iria saber do histórico de doenças na família e ela iria ficar “falada”. Não podia arriscar a jogar fora a única fonte de renda para sua subsistência.

Já era meados da década de 80 e eu a vi mais duas ou três vezes até eu voltar a viajar para São Paulo e Paraná.

No começo de 1993 fiquei sabendo que o trem de passageiros Bauru a Corumbá iria parar de rodar. Resolvi fazer uma viagem de turismo, sem compromisso profissional algum, na última partida da estação da NOB em Bauru.

Fui fotografando tudo o que pudesse me lembrar de muitas viagens que fiz por aqueles trilhos. Quando saí de Campo Grande pensei em fazer uma foto com Ilana, até pra me lembrar do quando aquela pantaneira era bonita.

Quando o trem parou na estação em Aquidauana eu não a vi. Fui até o bar do Bentão e perguntei a ele pela Ilana. 

Ele me disse, sem parar de servir salgados e cafezinhos que ela tinha ficado muito estranha, mais quieta que de costume e que uma noite, quando trem já estava saindo, ela começou a gritar, chamando alguém de dentro do trem balançando os braços, largou cesta de chipas na plataforma e saiu pelos trilhos correndo atrás do trem.

Estava bem escuro, chovendo, fazendo frio, e ela sumiu na curva. Todos esperavam que ela voltasse logo e nem ligaram muito. No dia seguinte encontraram o corpo dela no lado dos trilhos a mais de dois quilômetros daqui. Ninguém aqui entendeu nada.

Deixe um comentário