Crônicas das 100 Cidades – Boraceia

Eu já havia concluido meu trabalho em Boraceia. Já tinha passado ao Serginho do Centro Cultural todas as informações referentes ao link com o ponto de cultura de Bauru para o qual estou prestando um serviço de comunicação. Já havia almoçado no restaurante Regina e almoçado bem. Já havia ido ao ponto de atracamento da balsa que atravessando o Tietê, liga Boraceia a Itapui, margem a margem. Já havia até mesmo quebrado, com uma pedra atirada por outro carro,  o vidro de um farol de meu carro. Pouco mais de 15 horas e pronto para seguir até Pederneiras. De repente, um som alto, Ave Maria de Gounod ( ou Shubert, não tenho certeza). Som bem alto.  E uma voz, em tom solene. “O sr Davi faleceu. Estava internado e acabou de falecer” E com algumas variantes o texto continuava, sob o som da música que se mantinha alta. Aí percebi a consternação! As pessoas que passavam por mim estavam tristes, mesmo! Quem seria o finado? Nem perguntei quem era ao Serginho, de quem eu estava me despedindo. Apenas comentei “Que som heim? è sempre assim” Ele pareceu  meio constrangido e nem sei se respondeu. Entrei no carro e fui pensando em como a rotina de um comunidade é afetada profundamente quando os sentidos são mais fortes que as necessidades práticas do dia a dia. Seria essa a magia da cidade pequena, um elo que a todos liga e os mantém? Um elo chamado sentimento?

Crônicas das 100 cidades – Bariri

Não sei em que filme americano tinha uma personagem, moradora de rua, que  era sempre acompanhada por pombas. Nem era bem uma moradora de rua, pois tinha seu “dormitório” no sótão de um teatro em Nova York. Caricata, tinha um chapéu estilo século passado, ligeiramente obesa, maçãs do rosto avermelhadas e um sorriso conformado mostrando um dente mal cuidado. Tinha uma função bem pequena no filme, acho que, de conselheira de um jovem , ou coisa parecida, mas sua imagem ficou em mim. Hoje eu a revi, em Bariri. Seus pombos era quatro enormes cachorros que a seguiam e a obedeciam como crianças bem educadas.. Por quatro ou cinco quarteirões acompanhei seus passos e seus pequenos comandos para manter os animais bem próximos. Atravessou ruas como quando um grupo de alunos vai passear, em fila indiana. Não me contive e parei o carro na sua frente e a abordei. ” Esses cachorros não avançam em alguem ou mesmo em outro cachorro?” A pergunta não era uma reprimenda, era admiração mesmo. A resposta foi tão simples como sua vida ” porque fariam isso?” “Porque são animais” respondi . Ela me  respondeu, parecendo não entender a minha observação,  “Sou irmã da Tia Ninha”  e sem que que eu perguntasse quem era a tal tia, já foi completando. ” é uma que anda por aí” Desconcertado, ainda perturbei mais um pouco “você tambem anda por aí?”  ” ando porque a gente tem que trabalhar, né?” E, diminuido, voltei para o carro e vi Sonia caminhar, lentamente,  escoltada pela sua guarda de honra.

Crônicas das 100 cidades – Lençois Paulista

Saímos de Bauru em direção a Lençois Paulista por volta de 8 horas. Coisa de quarenta kilômetros.  Ao meu lado, Anderson, um vendedor de peças automotivas que ia resolver um problema com um cliente. Um cheque que molhara e precisava ser trocado. Uma estrada cheia de florestas de pinus e eucaliptos. As vezes um pouco de cana. Quando avistamos a placa indicando  Lençois Paulista a 12 km, Anderson fez uma observação. “Olha lá, que fumaceira. Olha aqui, que diferença”  Realmente, havia uma diferença e embora fosse meados de julho, de manhã, com a temperatura amena, era de se esperar que qualquer fumaça estivesse próximo ao solo. Mas, só havia fumaça lá. Pr´ximo a Lençois Paulista. E Anderson não poupava. “Deviam prender esses caras que põe fogo na cana, não tem gente mais egoísta que essa”.  E Anderson falou, por dez km ininterruptamente! “E esse cheiro de óleo, então?” Realmente, havia um forte cheiro de óleo de carro, no ar, um pouco antes da entrada de Lençois Pta. ” Todo dia, a qualquer hora é isso; como aguentam isso?” Logo deixei Anderson numa rua central da cidade. Chacoalhei a cabeça, como que querendo tirar o som da voz de Anderson, e fui trabalhar. Voltei sózinho para Bauru, onde notando bem, também havia muita fumaça. Tempo seco, conclui, pensando que ele afeta não só as vias respiratórias mas o humor de alguns.

 

Crônicas das 100 cidades – Piratininga

Tinha o porte de um gigante e o semblante de um João, o menino do Pé de Feijão. Óculos de aros grossos e voz pausada, apresentava um programa de rádio destinado ao público infantil. Seu horário era depois do meu horário, o que me permitia sempre acompanhar alguns minutos de seu trabalho; sempre animadíssimo, com muitos telefonemas de crianças, muitos prêmios e brincadeiras. Gestos comedidos e elegantes, fora do ar não alterava a voz e nem seus gestos. Além disso, editava um jornal onde cheguei a reservar uma página para transcrever alguns informativos de programas meus, do rádio. Aí, ele saiu do ar. Sumiu. Dez anos depois ouvi dizer que ele estava em uma emissora em Marilia. E só. Mais de dez anos depois, em Piratininga, no escritório de uma imobiliária, ouvi seu nome. “O Tio Pedroso esteve aqui” Seria o mesmo? , me perguntei.  Era. Peguei o enderêço e após resolver o problema com o meu cliente fui ter com ele, que agora edita o Jornal da Comunidade, em Piratininga. Abraços, palavras soltas aqui e ali, um copo de refrigerante, outro copo de refrigerante e “Pois é; estou na base da tarja preta. Sofri uma depressão  profunda, após a minha separação, que me derrubou. Fiz muitas coisas, em muitos lugares e acabei parando na Bahia. Aí encontrei um anjo que me salvou” 

Lembrei do Clubinho da Criança, sua alegria, suas lembranças em mim. E uma pontinha de decepção. Aí, chegou Débora, ou Débbie, baiana arretada, positiva, fuçadora, que aprende tudo, e principalmente, segura meu amigo no colo, trocando calor.  Aí fiquei bem, outra vez.

Crônicas das 100 cidades – Guarantan

Havia um problema em meu carro, uma perua Fiat Elba que uso como viatura para gravações, O carburador estava encharcando (é com ch ou com x?). Cada vez que eu desacelerava, o carro “morria” , “afogava”,  causando uma pequena irritação, que aumentava, é claro. O problema começou em Pirajui, mas quando entrei na Rondon, ele desapareceu, também, é claro isso! Mas quando entrei em Guarantan, na primeira esquina, recomeçou. E quando eu religava, sentia que ia danificar o sistema de alarme. Ia em direção a prefeitura mas quando vi a igreja achei que devia aproveitar a luz e fazer as fotos. Veja lá no site www.culturaviva.net.br  se ficaram boas. Poderiam ter ficado melhores, não fosse a minha irritação. Aí entrei na prefeitura e não encontrei quem eu procurava. E nem quem pudesse falar em seu lugar.Mas chegaria logo.  Perguntei, então,  a quem me atendeu onde eu poderia fazer outras fotos sobre a cidade. E fui. Achei a estação ferroviária, fiz outras fotos e voltei, quase xingando, doido pra voltar a Bauru e resolver o problema com o mecânico que tinha feito a revisão. Mas quando entrei novamente na prefeitura, percebi um sorriso. Aliás, um sorriso calmante. Lindo, embaixo de olhos que também sorriam.

Aí, Ana Paula falou seu nome.

O sorriso tinha, então, um nome; Ana Paula!

A viagem de volta foi mais tranquila e nem briguei tanto com o mecânico.

 

 

 

Crônica das 100 cidades – Paulistânia

Erika Itajubá é minha sobrinha e eu não a via há pelo menos 5 anos. Ou mais. É filha de meu irmão Edgar que também não vejo há mais de 5 anos. Ou mais. É mais que sabido que parentesco não é sinal de amizade. E que não se deve forçar uma convivência com quer que seja, parente ou não, se os pontos de vista e, principalmente, o comportamento não se completam. Mas, no caso de Erika, não! Eu gosto muito dela. Sinto que ela gosta de mim. Gosto do Edgard e sei que ele gosta de mim. Mas não convivemos. Que estupidez é essa? O que nos leva a perder de vista o que nos faz bem? Porque não fazemos um pequeno esforço para nos manter ligados aos nossos ancestrais pelos laços mais belos que temos? Porque não cultivamos a familia que é o nosso patrimonio mais valioso? que egoísmo é esse que nos toma as coisas quando se presume que o egoísmo retem nossas coisas? Erika é psicóloga da prefeitura municipal de Paulistânia onde seu sorriso, maior do que ela, tornará tudo mais perfeito e relevará a minha imperdoável ausência. Eu ia escrever uma crônica sobre adolescentes pedreiros construindo uma casa em Paulistânia. Deixo só a foto. Érika é maior.

Crônicas das 100 cidades – Avaí

Era manhã, quase meio dia,  e eu preocupado em conseguir a melhor imagem da igreja .  Concentrado, não ouvi o primeiro chamado.   “Hei, moço” e olhei, ouvi uma voz baixinha,de uma menina baixinha, voz fraca,  mas não trêmula: “O papagaio morreu”.  Perguntei, quase automáticamente; ” o teu papagaio?” “Não” ela me respondeu “aquele ali, no fio”

Demorei a entender. Afinal, eu só queria fotografar a fachada da igreja. “ele pisou nos dois fios” ela me explicou. “Ah!” murmurei. E num estalo saí da minha prepotência e consegui enxergar a menina e sua preocupação. E o seu olhar, melhor que o meu, que percebeu uma tragédia que eu nunca perceberia não fosse aquela pequena voz, que se foi com aquela menina baixinha, não mais que 8 anos, mas com muitos seculos de compaixão.

walter itajubá