O SINAL VERDE

Esta é a estória de Maria de Fátima, sergipana bonita que ‘juntou- se’ com Gaúcho, um sulista alourado, de má vida, assim que pôs os pés em São Paulo. Daí, foi um filho por ano, dois meninos e duas meninas. O quinto e último filho ainda estava no ventre e ela pouco, ou quase nada, sabia daquele homem. Ele vivia nas mesas de bilhar e carteado e morava num barraco mal acabado, em uma invasão, às margens de uma lagoa da cidade. Por sete anos, Maria de Fátima conviveu com aquele homem até que mataram o Gaúcho por pendência de jogo. E, por essas pendências tomaram seu barraco. Foi para a casa de uma vizinha e quando a menina nasceu, sentindo que ia perder a ajuda que recebia de um programa do governo,  e que já era insuficiente para alimentar a todos, resolveu sair pedindo esmola com as cinco crianças pelas ruas. Mais de um ano esmolando, morando aqui e ali, conheceu uma outra moradora de rua que lhe mostrou o que ela considerava um bom trabalho; vender balas no sinaleiro. Ela tinha uma vantagem que não percebia, as crianças, que eram  bonitas e limpinhas, podiam ajudar.

Foi com ela a um cruzamento de duas grandes avenidas de São Paulo, e em princípio, começou a ajudá-la. Depois, a mulher foi ‘emprestando- lhe’ balas para que ela pudesse ter como começar. No fim da tarde tinha algumas moedas que logo se transformavam em alimentos. Estava acabada, sentindo-se um pano velho. Sabia que nenhum homem iria se  interessar por ela, tanto pelo seu estado físico, como pelo fato de ter tantas bocas para alimentar. E doar seus filhos soava- lhe como um pecado gravíssimo.

Dedicou-se a ajudar a nova amiga até que pode ser independente e comprar suas próprias balas. Estava já há pouco mais de um ano nesta vida, mas ainda morando numa comunidade sob um viaduto, fazendo dinheiro apenas para o alimento e pedindo roupas aos que passavam. Suas crianças eram muito unidas e muito bonitas, que até chamavam a atenção. O mais velho, Edilberto, quase 9 anos, depois Maria Camila, quase 8, Mario, quase 6, Maria Isabel, quase 5 e Maria Rosa, 2 anos. Foi numa manhã chuvosa de um 31 de dezembro, com as crianças sentindo um pouco de frio, apesar de ser verão, que uma bala perdida lhe acertou o coração. Maria Rosa estava em seu colo e a bala quase arrancou seu mamilo esquerdo, fazendo um corte bem fundo que até mostrava sua costelinha. Dois motoqueiros quiseram roubar um motorista, mas o passageiro sacou uma arma, começando um tiroteio. Carro e moto fugiram enquanto as crianças ficaram imóveis ao redor do corpo da mãe e da irmãzinha,  naquela poça de sangue. Só Mario deu um grito, após alguns instantes. Muitas pessoas chegaram, empurraram as crianças como se elas fossem apenas curiosas. Depois de alguns minutos a situação se acalmou e a policia levou as crianças para a promotoria da infância. Após conversar com Edilberto, o promotor pediu que um seu assistente fosse com a polícia buscar os documentos das crianças, mas após conversarem com alguns moradores de rua ficaram sabendo que o barraco de Maria de Fátima foi saqueado e levaram tudo, inclusive uma caixa de sapatos  onde estavam as bijuterias e também onde estavam as certidões de nascimento. Como sempre, ninguém sabia de nada. Os primeiros fogos do réveillon espoucavam quando as crianças chegaram a um abrigo de menores. Na primeira manhã do albergue, um  menino mais velho veio mostrar a eles um jornal com foto de sua mãe, no chão, com a manchete ‘Bala perdida mata moradora de rua e fere bebe no seu colo’. Edilberto pegou a folha do jornal, dobrou e guardou. Passaram por muitas situações difíceis, mas mantiveram-se unidos, até que foram adotados, um a um, menos Edilberto. Mario foi o que demorou mais, mas acabou indo. Os três, que foram para famílias diferentes, não se falaram, nem se viram por 15 longos anos. As famílias eram diferentes mesmo e não se conheciam. O juiz da adoção permitiu que as famílias dessem novos nomes a eles quando os novos documentos fossem feitos. Mario passou a ser Rodrigo, Camila passou a ser Karen e Maria Isabel passou a ser Elisa. Os sobrenomes eram de suas novas famílias. Edilberto sabia o seu nome, mas não tinha certeza de seu sobrenome. Como gostava muito de um monitor do albergue,  que queria ser tratado como ‘seo’ Pereira e não como ‘tio’, passou a chamar-se Edilberto Pereira. Foi assim que conseguiu uma nova certidão de nascimento, onde constatava como mãe; Maria de Fátima Pereira e pai; desconhecido. Ficou no abrigo ate a idade limite. Freqüentou normalmente a escola, conseguiu emprego e foi morar em uma pensão em Santana. Conseguiu equilíbrio emocional lembrando-se dos ensinamentos do seo Pereira. Lembrava- se de sua idade, ate mesmo de seu aniversário. Sabia que estava com 24 anos quando terminou seu curso superior de tecnologia elétrica, com especialização em mecatrônica. Era um bom caráter. Tinha dois amigos, Nacho e Ricardo, fieis, alegres e leais, que moravam com ele em um pequeno apartamento, no bairro de Santana,  que conseguiu comprar, na planta, mesmo com um longo financiamento. E ainda tinha como ‘parente’ o ‘seo’ Pereira, que continuava morando no abrigo e era muito ligado ao misticismo, astrologia, pensamento positivo e inteligência espiritual.

Edilberto era seu maior discípulo e se viam todos os dias, quando seu Pereira ainda lhe cobrava o que ensinara, como higiene e comportamento. Namorava Carolina, modelo fotográfico, tão linda quanto ciumenta. No esporte, Edilberto gostava mesmo era de basquete, o que Carolina apenas aturava. A sua luta pessoal era encontrar seus irmãos. Procurava pela internet e foi até a um programa de rádio contar sua estória, mas, passaram-se os anos e nada! A conselho de seu Pereira parou de usar esses recursos, lembrando que, talvez seus irmãos não quisessem lembrar que moravam nas ruas.

Talvez seus pais adotivos não lhes contaram nada. Ou talvez não se lembrassem mesmo. Edilberto conservava aquele jornal e até já tinha feito algumas cópias com medo que o original  se perdesse. E no dia anterior ao dia do jornal foi a data que sua mãe morrera… E todos os anos, naquele dia, véspera de ano novo, pensava em ir aquele cruzamento, mas nunca tivera coragem para tanto. Mas quando saiu do abrigo, definitivamente, foi até o local, passou mal e nunca mais foi. Sentia muitas saudades e sabia que nunca seria feliz sem que pelo menos soubesse o que acontecera com Camila, Bel, Mario e Rosinha. Procurou os hospitais para saber em qual deles Rosinha tinha sido atendida e não conseguiu informação nenhuma. Nem a policia tinha registrado o fato policial do bebê. Só da mãe, que foi enterrada como indigente e nem tumulo tinha mais, pois depois de alguns anos retiraram os ossos e os levaram para um lugar qualquer. Agora a família de Edilberto resumia- se a dois amigos fabulosos, alegres brincalhões, uma namorada linda e ciumenta e um pai de estimação. E Maria Camila passou a ter uma  família de verdade. Os pais; dois médicos, não podiam ter filhos e ela passou a ser filha única.

Com o nome de Karen passou tranquilamente pelo resto da infância e da adolescência. Seus pais, com os pais descendentes de italianos ainda vivos, e a mãe, filha de fazendeiros do interior de São Paulo, também vivendo próximos deles. Então o que Karen tinha eram dois pais, quatro avos, quatro tios, cinco primos que sempre se reuniam, ou na casa de um avô, ou na casa da outra avó,  sempre com muita festa. Mas, a tristeza de Karen era evidente; nunca conseguira superar aquela cena. Acordava a noite, suada, com o pesadelo daquela tragédia.  Sentia- se protegida pelos novos pais, mas sempre sentia que devia procurar seus irmãos. Poderia ser que tivesse cruzado várias vezes com algum deles e não o reconhecesse. Isso a incomodava muito. Estava terminando a faculdade de direito e, apesar de linda, estava sozinha. Não conseguia fixar-se em nenhum namorado apesar de vários pretendentes, ate mesmo entre seus primos. As vezes corria alguma dúvida sobre suas preferências sexuais. Mas ela era muito feminina nos seus 23 anos e sua meiguice destoava no ambiente em que vivia. Mas todos gostavam muito dela. Maria Isabel, por sua vez, foi para uma família onde o pai era um empresário argentino e a mãe uma empresaria brasileira. Passou a ser Elisa Cunha Robles e viajou muito para a Argentina e outros países até os seus  17 anos. E não viajou mais por causa da faculdade. Tinha dois irmãos, sendo um irmão, do pai, que era divorciado e uma irmã, vinda da mãe que era mãe solteira. A mãe tinha uma grife de modas onde ela também ajudava na loja. O pai tinha uma pequena industria de artigos de lã de carneiro e vicunha em Rosário, na Argentina. O irmão era gay e a irmã, uma revoltada com o mundo. Embora na época tivesse quase 6 anos apenas, Elisa também se lembrava muito de seus irmãos e pensava em procurá-lo. Um dia, aos doze anos, ao passar de carro pela esquina onde acontecera a tragédia com a sua mãe, sentiu-se mal, teve uma crise de choro e não quis explicar porque. Morava nos jardins, região nobre de São Paulo. Cresceu e ficou com o mesmo corpo da mãe, pequena estatura e franzina. Mario, que ficou seis anos no abrigo, foi com mais de onze anos para sua família que se mostrou desajustada. O pai era um ex PM que tinha duas filhas com uma mulher que não podia ter mais filhos. Ele, que era o sargento da PM que atendera a ocorrência da moradora de rua morta pela bala perdida, querendo ter um filho para acompanhá-lo, foi até o abrigo e escolheu Mario, sabedor da origem. Mas, era um homem violento. Espancava a mulher por ciúmes infundados e impedia as filhas de uma vida social normal. A mãe era uma mulher fraca, dependente, submissa. Mario passou a ser Rodrigo e, antes mesmo dos doze anos largou os estudos, não conseguindo completar o ensino médio. Aos 15 anos tentou estuprar uma de suas irmãs de criação e aos 16 passou a fumar maconha.Agora, aos 21 vive nas baladas, atrás de senhoras solitárias que possam lhe dar roupas de grife e algum dinheiro. O pai teve um derrame e ficava numa cadeira de rodas, o tempo todo olhando para o vazio, dando broncas e vivendo da boa pensão que recebe da policia. Mario, ou Rodrigo, lembra-se sempre das brincadeiras com os irmãos, tanto no cruzamento das avenidas como embaixo do viaduto.

Lembra-se claramente de tudo e cada vez que lembra, enraivece-se e vai atrás do traficante comprar maconha. Ficou moreno, estatura mediana, com os olhos amendoados da mãe, diferente de Edilberto, que conservou os traços do pai. Uma noite, após um jogo de basquete em uma universidade, Edilberto foi para um shopping próximo tomar um lanche. Estava com Carolina e um dos amigos, quando notou na mesa do lado, uma moça que parecia conhecer. Não reconheceu Camila, mas olhou tanto que Carolina armou uma grande confusão. Camila, sem entender nada, quieta que era, apressou- se em deixar o local, não sem antes dar uma olhada firme para Edilberto.

Passado um tempo, Edilberto volta sozinho aquele shopping e procura a moça sem ter sucesso. Faz isso várias vezes; mas nunca a noite e nem naquele horário, já que estava quase sempre com Carolina.

Só tinha folga dela quando a mesma tinha algum trabalho em estúdio. Numa dessas noites de folga foi ate lá e ficou sabendo que o prédio ali perto era uma  faculdade de direito, onde tinha o ginásio de esportes, o mesmo onde tinha ido assistir aquele jogo de basquete. Ficou sabendo que após as aulas alguns alunos freqüentavam aquela lanchonete. Esperou, então. Estava numa mesa, sozinho, quando Camila chegou. Ela nem se sentou. Ficou olhando para ele que olhava para ela  enquanto levantava lentamente. Nem trocaram uma palavra. Olharam-se muito. E muito. E se abraçaram e choraram. Quando se acalmaram, falaram muito, quase ao mesmo tempo, e os amigos dela ficaram ali, mudos, alguns também chorando, conforme foram conhecendo a estória. A partir daí se encontraram  muito, e se falavam muito, por telefone, pela internet, Edilberto não conseguia chama-lá por Karen e ela não se importou muito. Combinaram a procura pelos outros irmãos. Passaram a ter Carolina como aliada, alem de seus amigos Nacho e Ricardo, o primeiro mecânico de carro e o outro, um motoboy, ambos rappers. Começaram a sair muito e freqüentar o centro da cidade, locais de eventos, olhando a todos, imaginando como estariam Mario e Maria Isabel alias, cruzaram com os dois sem reconhecê-los, em várias oportunidades. Chegaram até a ver Mario levar um tapa de uma mulher em um bar durante uma discussão, mas saíram rapidamente do local.

Cruzaram com Maria Isabel durante um desfile onde Carolina participou, onde chegaram a ficar a um metro de distancia, mas de costas. Camila finalmente convencera Edilberto a ir conhecer sua nova família. Edilberto foi com Carolina para ter segurança, mas todo o seu medo e sua insegurança transformaram- se em tranqüilidade quando viu aquela família muito alegre. Era um domingo e era um almoço a italiana, com muita massa e vinho. No final do almoço contaram sobre sua busca pelos seus três irmãos. Sabiam que Maria Isabel saiu do abrigo com 7 anos e Mario saiu com 11 anos, mas Edilberto lembrava apenas vagamente das pessoas que os haviam adotado. Assim como estava lembrando,  agora, dos atuais pais de Camila. Esses pais, ali, a sua frente mudaram pouco nesses quinze anos, mas as crianças devem ter mudado muito, como Camila. Todos pareciam doentes quando crianças, e mesmo tomando banho, as vezes pareciam sempre sujos. Agora era diferente. Como estariam? E sobre Rosinha não sabiam nada mesmo. Qualquer registro sobre ela, simplesmente não existia. O foco, mesmo,  era  em Bel e Mario. Todos da família se propuseram a ajudar, mas a única referencia  que tinham era um recorte de jornal e o nome das crianças. A partir daí, Karen, que não gostava muito de sair de finais de semana, começou a ir a bares, baladas ou simplesmente andar com seus primos. Pela idade Bel teria 22 e Mario, 21 anos, a idade de sair. Cruzou com Mario em um bar seduzindo uma mulher mais velha, cruzou outra vez com Mario dirigindo um conversível vermelho, sozinho. Cruzou  pela terceira vez com Mario simplesmente correndo pela rua e sumindo na primeira esquina. Mas só foi reconhecer Mario quando estava com Edilberto numa loja da Barão de Itapetininga, comprando um presente para Carolina. Mario também estava comprando algo. Ela comentou que aquele rapaz que estava ali era o mesmo que tinha levado tapa daquela mulher naquele bar. Comentou também que o havia visto outra vez, num carro conversível. Edilberto olhou e comentou que ele lembrava alguém. Ficaram ansiosos. Passaram a olhar com mais atenção, procurando traços familiares. Mario, quando percebeu que estava sendo observado, reagiu agressivamente com gestos. Os dois não quiseram insistir, pois ambos haviam se enganado outras vezes e resolveram desculpar- se e dar as costas. Mas, Mario é quem deixou a loja rapidamente. Passadas algumas semanas, Karen estava voltando em seu carro da faculdade, a noite, com duas amigas quando viu Mario, sozinho, sentado na calçada, encostado em um poste de iluminação, sob uma chuva fraca e fina, fumando um baseado. Parou o carro, deu ré e parou do outro lado da rua e ficou observando. Mario, jaqueta de motoqueiro, com os olhos vermelhos, molhado por causa da chuva, lábios embranquecidos por causa do frio, olhou também para Karen e gritou, voz tremula, perguntando se ela era sua irmã Camila. Karen ficou assustada. Sentiu um arrepio. Ele voltou a gritar perguntando se ela era sua irma  Camila. Karen teve uma forte crise de chora, ali mesmo no carro, segurando o volante com a cabeça e com as duas mãos. Quando conseguiu se acalmar e olhar para a calçada não viu mais ninguém. Perguntou para suas amigas para onde ele tinha ido, mas responderam que tinham ficado tão preocupadas com ela que nem perceberam para onde ele pudesse ter ido. Karen imediatamente ligou para Edilberto e contou o que acontecera. Edilberto pediu que o esperasse, pois iria de moto e logo estaria ali. Teve o cuidado de perguntar se o local era perigoso ou não. Quinze minutos depois Edilberto chegou, acalmou Karen e deram uma volta pela região. Como já era muito tarde, passava de meia noite, resolveram voltar no dia seguinte. Mas foi quase um mês depois que Edilberto e Carolina encontraram Mario andando pela rua. Edilberto gritou seu nome, mas Mario não atendeu o chamado. Mas Edilberto parou na sua frente, insistiu, insistiu, mostrou a foto do jornal e finalmente viu Mario cair num choro descontrolado. Foi a vez de Edilberto ligar para Karen e os três irmãos foram a um parque caminhar e contar sobre  suas vidas. Edilberto e Karen perceberam rapidamente o quanto o irmão precisava de ajuda. Nas semanas seguintes alteraram em muito suas rotinas envolvendo todas as famílias, que participavam das buscas de um jeito ou de outro. O primeiro almoço dos três foi na casa de Karen e o ambiente festivo ajudou Mario a se descontrair e em alguns momentos voltar a ser o menino carente e dependente dos irmãos. Depois disso, Edilberto e Karen tiveram muitos problemas por causa do comportamento de Mario e os conflitos eram inevitáveis. Mas, ninguém desistia, nem mesmo Mario. Edilberto passou a usar os ensinamentos teo- filosóficos do seu Pereira, com algum resultado positivo. O envolvimento dos avós de Karen criava um ambiente de segurança que agradava e atraia Mario, que procurava cada vez mais mudar seu comportamento. Passado algum tempo, cada um levando sua vida, com Mario melhorando um pouco, Carolina trouxe uma noticia para Edilberto. Disse que estava fazendo um trabalho fotográfico para uma loja de grife própria, nos Jardins, e que lá conhecera uma moça parecida com Mario, os mesmos olhos e a mesma altura, a mesma cor de cabelos e, até, o mesmo jeito introspectivo. Deu um jeito de perguntar e ficou sabendo que ela era adotada, o que aliás, era evidente. Sua mãe era claríssima e ela, morena com traços nordestinos. Chamava-se Elisa.

Edilberto, é claro, correu para lá. Conversou com a mãe da moça, que negou a estória verdadeira. Disse que havia feito a adoção num hospital com Elisa ainda recém nascida. Edilberto sabia que essa moça não era Rosinha, porque esta havia herdado os olhos castanhos esverdeados do pai, fato esse sempre salientado pela sua mãe. Aliás, era a única com olhos esverdeados e por isso sua mãe sempre comentava isso. Mas como ela, a moça, se parecia muito com sua mãe, embora Edilberto se lembrasse de sua mãe como quase uma mendiga. O pior é que Elisa acreditava mesmo na estória da mãe adotiva e afirmava que Edilberto estava completamente enganado. Edilberto saiu, a contragosto. Depois,  conversou com Karen e Mario, e vez ou outra, tentava conversar com Elisa, sem sucesso. Isso durou mais de seis meses, passando inclusive pelas festas de fim de ano, ocasião que os três passaram juntos na casa de Karen. Mas os três estavam cada vez mais convencidos de que Elisa era mesmo Maria Isabel. Porque ela se recusava a aceitar? Mario lembrou que demorou um pouco para aceitar por pura vergonha de seu vicio. Mas, e Elisa? Seria por vergonha do passado? Será que tinha esquecido mesmo? Enquanto a vida continuava, os problemas de um passaram a ser os problemas de todos. Assim, Karen e seus primos envolviam-se nos problemas que Edilberto tinha no trabalho com um companheiro de trabalho, seu inimigo declarado que o vivia perseguindo e boicotando seus projetos técnicos. Por seu lado, Karen tinha dois primos, muito divertidos, ambos com 21 anos, que viviam disputando seu amor, ambos deslealmente. A cada tentativa de um se aproximar, o outro, boicotava. Mario tinha sérios problemas com o pai adotivo e era apaixonado pela irmã que tentou estuprar e que agora o odiava muito. Mas, Mario vivia protegendo a mãe e as irmãs das grosserias do pai, que mesmo da cadeira de rodas ainda dominava a todas. Mario aprendera a tocar guitarra, mas encantara-se com a viola caipira do avô fazendeiro de Karen e queria aprender tudo sobre ela. Um dia os três foram a um desfile de modas a convite de Carolina e encontraram Elisa. Os três ficaram observando de longe, comentando sobre seus traços e alguns gestos que lembravam a mãe. Edilberto, que na época da adoção de Maria Isabel tinha mais de 8 anos, lembrava- se de algumas coisas que Maria Isabel fazia e que estavam bem presentes em sua memória. Principalmente coisas que ela mais gostava. Chegaram perto dela, calmamente, e sem mesmo cumprimentá-la, Edilberto começou a contar fatos da infância, tanto os ocorridos embaixo do viaduto, como na esquina das duas avenidas em que vendiam balas.

Elisa foi ouvindo, ouvindo e desmaiou. Elisa, por viver no mundo da moda queria ser magérrima e se alimentava pouco; e mal. Foi levada a um hospital onde se constatou uma anemia profunda. Enquanto todos aguardavam, a mãe de Elisa chegou a destratar Edilberto, mas quando o pai de Elisa chegou e ficou sabendo por que os três estavam ali, achou que era hora da filha ficar sabendo sobre seu passado, que aliás, não tinha nada de errado. Uma enfermeira veio dizendo que ela precisava de transfusão de sangue e perguntou quem era da família e poderia doar. Os três se apresentaram, doaram sangue e foram embora. Dois dias depois Edilberto recebeu uma ligação da mãe de Elisa, desculpando-se e dizendo que a sua irmã queria vê-lo. Os três foram e se encontraram com Elisa em seu quarto, ainda de cama.

Passada a emoção e depois de muita conversa, conheceram Emerson e Kelli, quando ficou evidente a empatia entre Mario e Kelli, já que ambos tinham problemas de comportamentos ou comportamentos parecidos Kelli  tinha, inclusive, os piercings e as tatuagens que Mario queria ter feito e não o fez por causa de seu pai. Edilberto, que já se acostumara a chamar Camila de Karen, começou a chamar Maria Isabel por Elisa e assim ficou. O que não acontecia com Mario, que não conseguia chamar de Rodrigo de jeito nenhum. A partir daí os quatro começam a interagir e as famílias passam a se freqüentar,  porque os quatros fizeram valer suas personalidades, apesar da aparente fragilidade de Karen e principalmente de Elisa. Mas, apenas aparência, porque a força espiritual de Edilberto os contaminava. As situações familiares se desdobravam; as trapalhadas de Rogério e Romário para a conquista de Karen divertiam muito os quatro irmãos, a competição entre os avôs de Karen, um falando do norte da Itália, outro falando do interior de São Paulo sempre resultavam embates hilariantes. As avós entravam no clima e competiam sobre a melhor comida do domingo, a italiana ou a caipira. Os quatros começaram a freqüentar esses almoços por pedido de Karen, que era prontamente atendido pelos seus pais. Ate os pais de Elisa compareciam e só os pais de Mario é que não iam, por razões óbvias. Os pais de Karen tinham irmãos, seus tios, e entre eles, Renatinho Perez, tio por parte de pai, um grande sonhador, com soluções para tudo. Renatinho tinha três filhas, todas saindo da adolescência, com hormônios descontrolados, que logo acabavam se envolvendo na vida dos quatros irmãos, que acabaram formando um grupo facilmente identificável. A união entre os quatros chegava a emocionar quem convivia com eles. Por isso, não se esqueciam de Rosinha e o seu indefinido paradeiro era um assunto constante. Outro problema era visitar o local onde a mãe fora morta, mas sempre havia impedimentos, e o maior deles era o emocional. Apenas Edilberto tinha ido uma vez lá, no dia em que a morte da mãe completara 10 anos e ele tinha sido obrigado a deixar o abrigo pelo limite de idade. Chorara muito e decidira nunca mais voltar lá, pois alem da perda da mãe, sentia saudades dos irmãos. Agora que os encontrara, poderia ir. Os outros achavam que tinham que ir, mas a imagem da mãe na foto do jornal os bloqueava. Diziam que, se Edilberto não tivesse guardado o jornal, talvez tivessem esquecido e agora seria mais fácil voltar ao local. Finalmente, decidiram ir, mas apenas embaixo do viaduto, onde moraram algum tempo. No dia marcado, os quatro estavam lá, mais alguns amigos e primos.

Algumas crianças brincavam com um cachorro e uma bola, como eles faziam. Uma senhora, bem idosa foi se aproximando lentamente, olhando bem Karen, Edilberto e principalmente Elisa. E olhando nos olhos de Elisa disse alguma coisa sobre Gaucho e Fafá. Edilberto pensava estar vendo aquela mulher que ajudava sua mãe no começo da vida nas ruas. Um garoto chegou perto e disse que não ligassem para aquela mulher, pois ela era maluca. Edilberto pegou suas mãos e disse que voltaria logo e que lhe traria comida, roupas, remédios, o que precisasse. A mulher disse baixinho que não precisava e que eles deviam trazer o bebê. Karen começou a ficar nervosa e abraçou- se a Elisa. Perceberam que ela falava de Rosinha e que precisavam mesmo saber o que tinham acontecido. Talvez Rosinha não tivesse resistido ao ferimento. A mulher insistiu que precisavam ver o bebê e disse que eles tinham que ir ao sinal verde. Não entenderam de imediato. Só quando se encontraram no final de semana seguinte, os quatro, na lanchonete onde Edilberto viu Karen pela primeira vez é que se lembraram da frase de sua mãe que dizia ‘olha o sinal verde’. Enquanto todos gritavam ‘sinal vermelho’, que os carros, paravam e era hora de vender, ela gritava ‘sinal verde’ que era ora de proteger, pois carros, e principalmente motos saiam perigosamente. Depois de um silêncio, a pergunta voltou; como encontrar Rosinha? E se ela ainda estivesse viva? A partir dessa noite todos se envolveram, colocaram a estória na internet, criaram uma comunidade virtual, foram atrás de pistas falsas, foram a programas de radio e TV, e nada! Enquanto a vida continuava, Mario e Kelli estavam mais unidos que nunca. Kelli gostava de Mario, mas Mario gostava mesmo era de Marcela, mas esta era irredutível; a atitude de Mario era imperdoável. Marcela era mesmo muito agradável, cativante, um pouco briguenta principalmente quando se tratava de Mario. Cada vez que Kelli ia a sua casa, ela, Kelli, brigava com Marcelino, o pai de Mario, que implicava com ela por causa de seus piercings e tatuagens. Uma vez discutiram tanto que ele teve que ser internado numa clinica com suspeita de um novo derrame. A outra irmã de Mario, Cintia era a imagem da mãe, com a mesma submissão e desinteresse pela vida. Mario até tentou fazer com que freqüentassem a casa de Karen, mas foram num domingo para um almoço e não voltaram mais porque não se sentiram a vontade. Passado algumas semanas os quatros praticamente desistiram da busca por Rosinha e decidiram que no próximo aniversário de morte da mãe, véspera do ano novo, iriam ao cruzamento das duas avenidas, onde vendiam balas. Faltavam quase dois meses ainda, falavam muito sobre o assunto e pediram que alguns familiares os acompanhassem, mas ninguém quis ir. Argumentavam que o momento era só deles.

Apenas Carolina serviria de motorista e quando o dia chegou, chovia. Como o acidente com a mãe foi por volta de meio dia, resolveram passar antes pelos barracos sob o viaduto, a pouco mais de mil metros do local, e fazer o percurso até o cruzamento das duas avenidas, a pé, como faziam quando crianças. Coincidentemente o dia do mês era o mesmo dia da semana de 18 anos atrás; uma segunda feira, embora véspera de feriado. E também coincidentemente, chovia, as vezes fraco, as vezes torrencialmente. Quando chegaram embaixo do viaduto ficaram sabendo que aquela mulher falecera no sábado, dois dias atrás. Pediram, então, que Carolina os seguisse de carro, pois iriam caminhando, mesmo sob a chuva forte. No começo, conversavam. Depois, um silêncio chato começou a instalar-se entre eles, incomodando, e aí caminhavam mais forte, agora já chorando, com as lágrimas misturando-se com a água da chuva. Quando finalmente chegaram ao cruzamento, a chuva havia diminuído, mas ainda chovia. Não havia ninguém pedindo, ninguém vendendo nada. Karen estava abraçada a Elisa e Edilberto e Mario estavam bem próximos um do outro, quase encostados. Poucas pessoas, escondidas sob seus guarda chuva, passavam rápidas. Visualizaram o local onde sua mãe havia caído, usando a foto do jornal, evidentemente protegida por um plástico, como referência. Fizeram um circulo para fazer uma oração e ficaram olhando para o chão quando uma voz trêmula pediu para participar. Olharam e viram Marcela, parada, chorando, com a sombrinha quebrada por causa do vento. Mario se assustou, achando que ela tinha vindo dar alguma noticia ruim sobre seu pai, que ainda estava internado. Ela entrou no círculo e levantou a blusa, mostrando uma enorme cicatriz sob o seu seio esquerdo. Edilberto entendeu logo e a abraçou fortemente. A imagem do bebê ferido voltou na memória de todos e foram entendendo quem era ela, e se abraçaram, enquanto ela chorando foi contando o que sua mãe adotiva lhe revelara. A mãe disse que ela deveria ir ao encontro, levantar a blusa e mostrar a cicatriz, porque ela era a irmã que eles estavam procurando Contou que seu marido, um sargento da PM na época, simplesmente a levou para casa depois de tirá-la do hospital onde ficara por quase dois meses se recuperando do tiro. Ao invés de levá-la para a delegacia, omitiu todos os fatos, rasgou as fichas, levou para sua casa e a registrou como sua, como tendo nascido numa cidade do nordeste, usando seus parentes que também eram policiais militares por lá. Sua mulher não podia ter mais filhos e ele não queria uma filha só. Era de família numerosa e por isso foi buscar Mario alguns anos depois. Mario, rindo e chorando, só pode dizer que era por isso ele gostava tanto dela

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