COISAS DA FRONTEIRA

Uma sexta feira, úmida, abafada,  à noite, na década de 60, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Aqueles três viajantes vendedores terminaram o jantar naquela churrascaria e depois de ouvir  muitas guarânias, caminhavam pelas ruas mal iluminadas em direção ao hotel.

–           Amanhã vou até Paranhos…

–           Amanhã, Amaro? Amanhã é sábado..

Amaro Luis vendia ferragens de uma fundição de São Paulo e já viajava vendendo naquela região já há alguns anos.

–           E é tão longe..

–           Pois é.  Na verdade, amanhã vou até Ponta Porã. Preciso comprar wiskeis para dois fregueses meus. E aí vou esticar até Paranhos no domingo pela manhã.

–           Fazer…?

–           Churrasquear na chácara de um freguês, que, aliás, é o prefeito do lugar. Vamos dormir?

–           Que horas você vai sair?

–           Aí  pelas oito. Vou almoçar em Dourados e depois sigo. Boa noite, gente…

–           Boa noite Amaro, e boa viagem…

–           Obrigado. E muito obrigado também pela conversa.

E assim foi. Amaro estava com um jeep da segunda guerra, aqueles usados pelos alemães. Conseguiu achar a relíquia numa oficina mecânica, no lado paraguaio de Bela Vista, quase às  margens do Rio Apa.  Até a cor era original. A placa era de Bela Vista , do Paraguay e ele só rodava ali, na região fronteiriça. Quando ia para sua casa, no Paraná, usava seu fusca, que  só usava em Campo Grande , onde fazia seu ponto. . Dizia que o jeep fora usado na guerra do deserto, na África, e que viera de navio até Assuncion, pelo Rio Paraguay.

  Era em meio de uma tarde quente  quando chegou em Ponta Porã. Como sempre, estava vermelho, coberto com o pó daqueles quase 400 km de estradas cascalhadas e poerentas. Foi para o Hotel Internacional, cumprimentou os amigos, atravessou a avenida e foi fazer compras em Pedro Juan Caballero. Quando voltou tomou um banho e caiu num bom cochilo.

 O Hotel Internacional era uma velha construção, de  madeira, em dois andares, e por isso era o preferido por alguns viajantes voyeurs. Praticamente em todos os quartos tinha, pelo menos, um furo na parede que se limitava com outro quarto e tapado com goma de mascar. À noite, passou pelo cassino para arriscar no Black Jack . Foi dormir não muito tarde. Queria estar descansado quando acordasse. Já passava alguns minutos das seis da manhã quando se preparava para pegar a estrada para Amambay. Depois seguiria para Paranhos, região pesada, de fronteira, muitos traficantes de maconha e refúgio de fugitivos das leis brasileiras e paraguaias pelos mais variados crimes. A maioria, homicídios. A grama do canteiro central da avenida Internacional estava molhada pelo orvalho e brilhava ao sol, baixinho ainda, deixando a temperatura baixa, quase uns dez graus. Uma brisa fria, querendo ser vento, tocava-lhe o rosto ainda acordando. Pensou em voltar, dormir mais um pouco.

–           Que absurdo!   corrigiu

Amaro Lins gostava muito daquela região, ainda em formação, mas cheia de vida, dinheiro e problemas. Muitos problemas! Seu roteiro por ali era sempre mais ou menos assim; trabalhava em Ponta Porã de manhã, passava por Amambay onde tinha dois clientes e ia dormir em Paranhos, quando dava. Duzentos e tantos quilômetros de pedras e muita poeira. E Paranhos era um “patrimônio”, de ruas largas, poucas casas e poucos metros separando-o de Ypehu, no Paraguay.

Uma região antiga, que não cresceu por causa de seu próprio isolamento, como gostava de dizer o “seu” Domevil, prefeito nomeado, filho de gente do lugar, mas neto de gaúchos, que vieram do Rio Grande, em comitiva, em trinta carros de boi, chegando ali um pouquinho depois de 1900.

Enquanto o “jipão” cortava o cascalho seco da estrada, Amaro ia se lembrando dos “causos” contados pelo seu Domivil, um de seus melhores clientes. Não só porque comprava muito bem suas ferragens mas, mais pelo seu temperamento positivo, alegre, folclórico até. Lembrou-se de quando o seu Domivil teve um entrevero com um delegado local, o Claudiomiro, antigo companheiro de política, depois convidado pelo próprio Domevil para ser delegado de policia, que era de absoluta confiança naqueles tempos de ditadura militar. Foi uma indicação pra lá de infeliz.

É que de repente, Claudiomiro virou bandido sem que ninguém percebesse, envolvendo também seus quatro auxiliares que Domivil havia contratado a pedido dele. Muitos crimes de morte estavam acontecendo na região, por motivos simples e todos continuavam sem elucidação, Uma vez, chegaram a matar um sitiante que voltava da cidade em sua carroça, apenas para lhe tirarem os mantimentos que havia comprado no mercado, que não passavam de dez quilos.Um dos guardas que compunham a ‘força policial’ confessou mais tarde.

De outra vez,o delegado Claudiomiro e seus guardas capangas ‘armaram’ pra cima de um mecânico e seu filho. Pediram para que outros dois capangas, que não eram guardas, fossem até a oficina com um carro roubado e ficassem por lá pedindo um pequeno conserto. Ai,Claudimiro chegou com mais dois e já desceram atirando. Dizem que foi um tiroteio dos diabos, só que ninguém acertava ninguém.

O mecânico e seu filho, que nada estavam entendendo garantiram que a mira era bem pra cima, que era só gritaria e correria assim como se fosse um filme,com bastante bala pra gastar. De repente os dois “clientes” correram para o mato e ninguém foi atrás,e foi ai que sobrou para o mecânico e seu filho. Começaram a atirar  na direção deles que se esconderam e começaram a gritar por socorro. Chegou mais gente e a fuzilaria acabou, mas o mecânico e seu filho foram presos, acusados de cumplicidade no roubo de carros. Na verdade eles sabiam demais. Ali também era passagem de carros roubados para troca com a droga.

Quando o prefeito Donevil ficou sabendo foi imediatamente para a delegacia, já anoitecendo, interceder por eles. Donevil temia pela chegada da noite e como conhecia o mecânico muito bem, sabia que seria ‘queima de arquivo’. Chegou bravo e Donevil, que nem eleito era e tampouco era juiz conseguiu a soltura deles,  que no dia seguinte, sumiram da cidade. Na verdade havia ainda um restinho de respeito ou ate mesmo de gratidão de Claudiomiro por Donevil. Só que os casos foram se sucedendo, os assaltos aumentando e inexplicavelmente, não se prendia ninguém.

De vez em quando aparecia um corpo e Claudiomiro alardeava que tinha liquidado mais um assaltante, sempre contando uma estória heróica, plenamente confirmada pelos seus guardas. Mas, que nada, era apenas mais um assalto ou mais uma queima de arquivo. Ou até mesmo um assassinato por encomenda.

Até que um dia alguém presenciou um crime de morte e foi correndo contar para o prefeito, conhecido do morto. Era noite  e Donevil ficou tão possesso que foi delegacia adentro, dedo em riste, cabo do revolver pra fora, já definindo;

–           Vocês são uns vermes, uns bandidos safados… amanhã cedo estou falando com o secretário de justiça… quero todo mundo longe do meu município…. está todo mundo demitido…na rua…!!!

–           ei… pêra ai, Donevil, ta falando de que?

–           estou falando que sei de tudo que viram vocês matando o Pedro Jacó agora pouco, quando ele desceu da

f-1000 na frente da casa dele. Vieram rápido me contar

–           ê, ninguém fala assim comigo não, prefeito…

–           Falo e mando… podem atravessar a fronteira já… sumam…-se daqui…

–           e as provas? Mostre a prova…mostre a testemunha…. se não tens provas, feche a boca…

–           pois manda a tua mãe fechar a boca, seu velho jaguara e vocês 4 aí, podem ficar quietinhos ai…com a mão longe do cabo… vim para mandar vocês para longe daqui

–           olha como fala….

–           falo que se eu tivesse um jeito enfiava vocês atrás das grades e chamava os parentes das vitimas de vocês

–           nos é que vamos te enfiar lá dentro por calunia e desacato.

–           Mas, olha,  que venham…  vocês me conhecem… eu mato vocês…tenho 6 balas… uma pra cada um e sobra; pelo menos 3 levo comigo por inferno

–           não provoca, prefeito…

–           olhe aqui… já disse…amanhã  logo cedo estou com o decreto de exoneração de vocês…e terei os substitutos de vocês amanhã aqui comigo, para correr com vocês. Já deixei meu irmão fazendo as ligações pra Cuiabá, providenciando tudo

–           como já ta juntando muita gente ai na frente a gente se acerta depois, viu, ‘seu’ prefeito….

–           vou sair, agora, de costas… e não adianta vir atrás…não vão me achar

–           agente acha sim…

–           agora pra mim vocês são uns bandidos fugidos e olha que tem muita gente querendo acertar as contas com vocês…. e vou ajudar………..

E assim se foi….e começou uma vida de medo para o ‘seu’ Donevil. Claro que Claudiomiro e seus capangas fugiram.

Entraram Paraguai adentro e de vez em quando se ouvia falar deles. Era assalto a caminhoneiros, trafico de drogas, contrabando, o que desse dinheiro fácil. Por mais de dois anos ‘seu’ Donevil sofreu ameaças de morte e se não fosse a ajuda de dois irmãos, bom sangue campero também, Claudiomiro tinha lhe enchido balas.

Para provocar, passava de jeep em frente a sua casa, bem devagar, aos domingos, porque sabia que Donevil gostava de chimarrão na varanda. Depois sumia uns tempos. No fim; quem levou foi ele, Claudiomiro.

Resolveram assaltar um caminhoneiro na entrada de Ponta Porã e jogaram o corpo no meio da estrada. Só que esse caminhoneiro era filho caçula de uma família muito rica e muito brava ali do sudoeste do Paraná. Os parentes e seus peões não descansaram enquanto não o pegaram. Foram achá-lo em Concepcion e deixaram ele e seus capangas nas mãos da policia paraguaia em Cerro Corá, com um bom “agrado” por um certo tempo, porque sabiam que ali acontecia uma ‘judiaria’, como falavam, quando o preso era sujeito ruim.

Penduravam o coitado pelos calcanhares, passando um arame por dentro da carne, pelo tendão de Aquiles. Depois o penduravam por uma corrente, num galho alto qualquer, no meio da mata e lá o deixavam por duas ou três noites. Se o sujeito sobrevivesse a dor e as onças, eles o entregavam aos parentes da vitima. Foi o que aconteceu; os irmãos do caminhoneiro trouxeram-no ao Brasil e o mataram ali mesmo onde ele havia jogado o corpo do irmão. Dos capangas nunca mais se teve noticias. Só aí é que ‘seu’ Donevil teve um pouco de paz. Só que toda hora tinha um caso assim e na maioria das vezes, ‘seu’ Donevil estava no meio.

Era pouco mais de meio dia quando Amaro abraçou ‘seu’ Donevil, de chapéu de abas largas e pilchado com bombacha preta. Foi cumprimentando a todos, pegando uma cerveja, pedindo um corte de carne, pondo-se a vontade. ‘Seu’ Donevil morava numa chácara, mas quase no centro da ‘cidade’

Nesse terreno de pouco mais de 50 mil m2 criava porcos, galinhas e até mesmo umas cabeças de gado. O pomar era uma maravilha mas a plantação de mate era o orgulho dele.

Os convidados do churrasco eram ‘aprendizes’ de políticos e a conversa sobre política e sobre a revolução de 64 era um assunto dominante.

E já era a segunda vez que Donevil levava Amaro até os fundos da chácara para mostrar os restos do que ele chamava de carretera do Lopes, que era um sulco no pasto, denotando que um dia ali passara uma estrada para carros de boi.

–           Na prefeitura tem documentos relatando que o general Solano Lopes usou essa carretera várias e várias vezes durante a guerra do Paraguai…

E Amaro Lins como gostava de ouvir, ouvia. O churrasco foi até a noite e como não havia hotel na cidade, ‘seu’ Donevil fez questão que ele pernoitasse ali mesmo.

¬          Amanha, na prefeitura, falamos de negócios..

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