Afinal, Quem Matou o Sujeito?

Vamos pegar chuva na estrada!

Paulão olhou para o  céu e concordou com a esposa Juliana. Estavam saindo de  Araraquara e iriam até Macatuba. Queriam passar em Pederneiras, deixar uns doces na casa de uma filha. Coisa já combinada.  Por isso a preocupação.

¬          Que horas são agora, meu bem?

¬          Cinco e meia. Eu não queria viajar a noite. Demora muito ainda?

¬          Não, já limpei tudo. Os tapetes da Caravan estão até cheirosinhos. E a bagagem já está acomodada.

¬          Vou pegar minha bolsa, então.

¬          Vai. Temos que passar no posto pra abastecer.  A Caravan está doidinha pra por “os pés” na estrada”

Os dois sexagenários, ambos aposentados, estavam indo para um fim de semana na casa de um filho em Macatuba, cidade canavieira da região de Jaú. A estrada, relativamente boa,  começava a ficar movimentada nesse  final de sexta feira.  Paulão e Juliana a conheciam bem e sempre faziam essa viagem . Eles se davam bem e faziam a viagem cantando canções da juventude. Eram 18 horas de um horário de verão daquela sexta feira de um dezembro quente e chuvoso quando deram a partida.

No mesmo instante, em Dois Córregos, dona Elis, uma negra animada e bem humorada, líder comunitária em Bauru, apressava sua neta de 16 anos a entrar no carro.

¬          Vanessa!!

¬          Calma vó, quero fazer mais uma foto.

¬          É que está ameaçando chuva.

¬          Calma, vó

¬          Olha a água do rio, como já está parecendo que está chovendo.

¬          Então, quero fotografar isso

Dona Elis tinha levado sua neta para conhecer um bairro em uma pedreira na beira do rio Tietê, onde tinha passado a sua infância. Tinha saído de Bauru com o seu fusca 74 logo depois do almoço e estava pronta pra retornar, não fosse a paixão por fotografia  de Vanessa.

¬          Enquanto tiver um pouco de luz vou aproveitar, vó.

¬          É que viajar a noite com chuva é difícil

¬          calma, vó

¬          e sexta feira tem sempre mais carros na estrada

¬          já to indo, vó.

Em Bocaina, André e Nina terminavam de conversar com o padre e agradeciam a oportunidade de poderem fazer um documentário com ele sobre as pinturas de Benedito Calixto, o artista que inclusive arquitetou o prédio do Banespa em São Paulo. André morava em Vera Cruz e estudava em Marilia. Vera Cruz também tem obras de Benedito Calixto, inclusive sua igreja é uma réplica do prédio do Banespa. Nina era sua namorada e haviam discutido muito na viagem de vinda. Ela queria terminar a relação mas queria continuar amiga. Só não queria mais sexo. Ao entrar no Gol branco e bem conservado, André imaginava que, depois do sucesso do trabalho, poderia convencer Nina a mudar de idéia. Já começava a escurecer e raios e trovões já lhes provocavam uma estranha sensação de uma viagem diferente.

¬          Você quer comer alguma coisa antes de sair pra estrada?

¬          Não , obrigada. Quero chegar logo em Marilia. As meninas da república estão me esperando pra sair.

¬          Sair? Sair pra onde?

¬          Sair, ué!  Só sair.

¬          Ah; não acredito.  Você quer terminar comigo só pra sair pra night?

¬          Porque você está dizendo isso? Mesmo com você eu sempre saí com elas. Quantas vezes a gente se encontrou por aí quando eu saí com elas?

¬          Mas era diferente.

¬          Porque diferente?

¬          Você sabia que ia me encontrar. Então, na verdade você estava saindo pra se encontrar comigo.

¬          Nem sempre.

¬          Como assim; nem sempre? Pô, não estou entendendo. Você não era afim de mim?

E a discussão corria solta quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair. Já começava a escurecer apesar de ser pouco mais de seis e meia da noite de um horário de verão. Eles já se aproximavam da ponte do rio Jacaré Pepira quando a chuva apertou.

Alberto também dirigia um Gol branco, mais novo e vinha da Barra Bonita. Quando a chuva ficou mais forte ele estava subindo um aclive forte perto de Jaú e mesmo com a terceira faixa na pista, preferiu ir atrás de um treminhão que devia estar, mais ou menos, a 20 por hora. Tão cuidadoso,  Alberto era vendedor viajante ou representante comercial como preferia. Sempre as voltas com vendas e cotas de uma distribuidora de material elétrico de Bauru. Saia sempre de manhãzinha e voltava no final do dia. Nessa sexta feira ele estava contente; as vendas tinham sido excelente. Não via hora de chegar em Bauru e ir se encontrar com os amigos numa mesa de chopp onde ia comemorar a boa semana que tivera. Ia cantando sambas antigos que tocava em seu rádio de carro ainda com fita cassete. Assustou-se quando, do treminhão, caiu um pedaço de cana no para brisa de seu carro. Resolveu sair de trás do caminhão e apertar o pé. Logo estaria em Jaú e depois pegaria pista dupla para Bauru.

Raul e sua turma haviam programado aquela viagem para Bauru para assistir a um show musical no Sesc  dez dias atrás. Como Jaú fica a 50 km aproximadamente, eles iriam sair em dois carros, um corsa e um Passat Pointer  por volta de 20 horas, já que o show estava programado para as 21h. Mas como o tempo estava fechando e os oito amigos já estavam reunidos, resolveram sair mais cedo. Se preciso, ficariam no bar tomando cervejas enquanto esperavam.

A rodovia que liga Jau a Bauru sempre foi bem conservada, pelo menos até  Bauru, já que ela prosseguia até Ipaussú, perto da divisa com o Paraná. Entre Jaú e Bauru havia a ponte sobre o rio Tietê e antes dela uma descida longa e com curvas suaves. Já chovia forte e estava bem escuro. Dona Elis reclamava muito, principalmente com a borracha do limpador de para brisa que não limpava nada. Quando era ultrapassada por alguém e recebia um jato de água no vidro de sua porta xingava em voz alta.

¬          Calma vó!

De repente, de repente mesmo,  viu uns carros parados, no meio da pista . Apavorou-se mais quando sentiu um soco no assoalho do fusca. Desgovernou-se e quase entrou dentro do canavial.

¬          Vovó!!

¬          Meus Deus!  O que foi isso?

Estava ainda tremendo dentro do carro quando olhou para Vanessa e sentir que ela estava bem.  O carro girou de lado e ela ficou, no acostamento, de frente para a pista. Gritou quando viu um Gol branco também passar sobre aquele volume na pista e depois frear bruscamente. A chuva continuava forte e relâmpagos iluminavam uma cena assustadora; o volume era o corpo de um homem que jazia no meio da pista. Ao lembrar que ela tinha passado por cima, sentiu vontade de vomitar. Saiu do carro, e mesmo enxarcada, pode perceber outros cinco carros parados. Todos tinham passado sobre o corpo. Todos, até Vanessa, estavam fora, na chuva forte, olhando aquele homem estendido no chão, claramente identificado como um andarilho, com suas roupas avermelhadas pelo barro e pelo sangue que corria com as águas da chuva. Outros carros foram parando  e olhando. A Policia Rodoviária chegou e perguntou em voz alta

¬          Quem  passou com o carro sobre o sujeito ?

 Seis motoristas ergueram o braço, Raul e seu amigo, Paulão, Alberto, Dona Elis e André. Todos realmente, tinham passado com o carro sobre o corpo.

¬          Mas, quem foi o primeiro? Quem atropelou o sujeito?

¬          Quando eu senti o choque ele já estava deitado na pista.

André queria dizer que, daqueles seis, ele tinha sido o primeiro, mas tinha certeza de que não tinha atropelado. Todos afirmavam que passaram por cima, mas ele já estava morto

A chuva continuava forte. O trânsito começou a ser  liberado. Um a um dos seis carros envolvidos entravam na viatura da policia, onde  seus dados eram anotados e seus documentos conferidos. Depois de uma hora chegou uma ambulância que levou o corpo. Por alguns papeis e documentos encontrados em um saco que a vitima carregava ficou-se sabendo que o andarilho era um médico veterinário que havia entrado nas drogas, viciado-se em drogas pesadas e acabado no crack e o que viesse.

Alguns meses depois Dona Elis encontrou-se com Alberto por acaso. Ele estava em um bar tomando chopp e ela tinha ido com Vanessa ouvir um amigo tocar violão. Depois de um cumprimento rápido ela pôs a mão em seu braço e perguntou baixinho:

¬          Afinal, quem matou o sujeito?

ILANA, A Vendedora de Chipa

Ilana

Quando conheci Ilana eu ainda trabalhava como viajante vendedor propagandista de um laboratório farmacêutico no estado do Mato Grosso.

Era inicio da década de 70 e ainda era um estado único, onde Campo Grande era apenas uma grande cidade, bem longe da capital Cuiabá.

Morando em Bauru, usava constantemente o trem como meio de locomoção, embora, quando fora da linha, eu usasse carros alugados, barcos e até pequenos aviões. Vendia, entre outros produtos, soros contra picada de cobras.

Mas o grande faturamento vinha mesmo das visitas às farmácias colocando antibióticos, vitaminas, antitússicos. Isso fazia com que eu tivesse que visitar todas as cidades e vilas onde houvesse uma farmácia, por menor que fosse.

As cidades ao longo da estrada de ferro Noroeste do Brasil, no meu setor eram Campo Grande, Aquidauana, Miranda e Corumbá. Dormia em Campo Grande, pegava o trem às 8 horas, chegava a Aquidauana por volta do meio dia, trabalhava à tarde as três farmácias e o hospital da cidade.

Ali, já conversava com os médicos presentes e depois procurava os que não estavam no hospital, em seus consultórios, para falar de algum produto e para deixar amostras grátis de vários produtos.  

Depois rumava para a estação esperar o trem noturno que ia para Miranda e depois Corumbá. Um trem diferente, chamado Litorina, que era praticamente um só carro. Muito mais confortável que o tradicional.

Fazia esse trajeto a cada 42 dias Aliás, todas as cidades do sul do estado eu visitei a cada 42 dias, durante alguns anos. O fato de ter que ficar esperando o trem por horas me tornou ainda mais observador do comportamento humano.

Na estação era fácil reconhecer os colegas de profissão que, embora de ramos diferentes, tinham a pasta ou maleta de vendas como utensílio comum de viagem. Às vezes rolavam conversas, às vezes cada um ficava conferindo pedidos, relatórios, roteiro.

O estado do Mato Grosso, nessa época, dependia muito desses profissionais para abastecer sua economia. Uma de minhas diversões, jovem de 22 anos que eu era, consistia em procurar rostos bonitos de mulheres entre as passageiras. Muito discretamente, é claro.

E foi assim que comecei a notar aquela menina, que nem era passageira. Era uma vendedora de chipa, um biscoito de polvilho e queijo, muito comum na região do Pantanal. Morena, cabelos lisos e pretos, muito brilhantes e olhos quase asiáticos.

Parecia ter menos de 20 anos e ela chegava sempre alguns minutos antes do trem parar. Por isso demorei em notá-la. Eram muitos vendedores assediando os passageiros pelas janelas do trem e a predominância eram os vendedores de chipa.

Eu gostava de me sentar perto da janela que visse a plataforma para ver as estações e suas personagens. Inclusive os vendedores de bolos, salgados, frutas e chipa, é claro. 

Foi depois de umas duas ou três viagens que coincidiu dela vir oferecer suas chipas para mim. Era realmente muito bonita. Recusei com um gesto e ela se foi tão rápido como chegou.

Quase um ano se passou até que ela chegou mais cedo e começou a oferecer chipas para os passageiros que estavam nos bancos, esperando o trem. Quando chegou a minha vez de ser abordado, apenas com a oferta “chipa?”, repeti o gesto negativo e ela se foi rápido.

Senti haver perdido uma rara oportunidade de conhecê-la. Não tenho o jeito invasivo e perturbador do paquerador ou assediador. Nunca tive. Portanto, quando eu comprava uma chipa e recebia o troco com um olhar, já me sentia gratificado.

Mas um dia, sem querer abusar e sem esperar resposta, disse-lhe que ela me parecia mais triste do que o costume. Mas, não era tristeza, era sim uma diarreia que quase a impediu de trabalhar.

Entre meus produtos tinha um restaurador de flora intestinal e por coincidência, tinha algumas amostras em minha pasta.  Ela ouviu com atenção as instruções, perguntou se poderia dar à sua mãe, que também estava ruim. Foi isso.

 Meus períodos de 42 dias e consequentes visitas a Aquidauana duraram mais três anos, sempre com minha insistência em me aproximar e conversar um pouco mais com Ilana, com pouco sucesso.

Saí do ramo farmacêutico, deixei de ser vendedor com carteira assinada e fui ser representante comercial autônomo. Consegui uma representação em São Paulo de recursos audiovisuais, quase que exclusivamente, destinado às escolas.

Poderia vender tanto no interior de São Paulo como no sul de Mato Grosso e, naturalmente, comecei a cadastrar escolas no centro oeste paulista e logo adentrei o outro lado do Rio Paraná.

Já viajava de fusca, com um material para pronta entrega, que me daria recursos para despesa, já que toda ela cabia a mim. Já fazia mais de um semestre que eu não aparecia em Aquidauana e, agora de carro, não haveria razão para ir à estação ferroviária.

Mas, fui mesmo assim, tomar um café no bar do Bentão, um ex-vaqueiro do pantanal que havia quebrado uma perna em uma queda do cavalo. Perguntei sobre Ilana, se ele a conhecia, se ela ainda estava por ali.

Ele respondeu dizendo que ela é muito estranha, parece doente, não fala com ninguém. Chega sempre quase na hora que o trem para e vai logo embora. Disse que não sabe como é a voz dela e nem onde ela mora, mas que logo ela chegaria, pois era hora do trem de Corumbá passar.

 E ela logo chegou e, para minha surpresa, veio em minha direção. E para aumentar minha surpresa, sorriu pra mim. E sorrir transformou seu rosto em uma das mulheres mais bonitas que eu conheci. E conheci muitas, Brasil a fora.

Disse que estava feliz em me rever, que o remédio que eu havia dado a ela funcionou muito bem nela e em sua mãe, e que estava esperando me rever assim como estava esperando rever o seu amor que disse que voltaria jogo e ainda não voltou.

Falava com calma e naturalidade e quando perguntei se ela se referia ao seu namorado, noivo, marido, ela respondeu que não era nenhuma dessas opções.

Ela percebeu que nada entendi e, me puxando pelo braço, me levou até um banco vazio, falando que iria me explicar. Foi a primeira vez que ela me tocou e pensei que alguma coisa aconteceu com ela e tudo parecia ter mudado. Mas, não.

Então me contou que em um ano bem lá atrás, estava oferecendo chipas nas janelas, quando um passageiro lhe chamou a atenção pela beleza de seus olhos azuis.

Mais que isso, mesmo viajando de trem estava muito elegante e ficou mais bonito quando lhe sorriu o sorriso mais lindo que ela jamais recebera. E ele queria uma chipa.

Como estava sentado no banco do corredor, ele preferiu descer do trem e pegar o biscoito com ela. Disse a ela que nunca sentiu nada igual, em toda a sua vida, quando seus olhares se cruzaram.

Ao invés de pegar a chipa e tocou a mão dela, que se arrepiou. Depois ele tocou seu rosto, colocando a palma da mão em seu queixo e fazendo um carinho em sua orelha. Ela só olhava, petrificada.

Então ele falou o que ela mais queria ouvir, que voltaria logo, que namorariam, noivariam e se casariam ali mesmo em Aquidauana e depois iriam morar em São Paulo.

Perguntou, quando o trem apitou anunciando a saída, se ela lhe esperaria, que ele estava sendo sincero como nunca fora na vida. Ela só pode dizer um sim e depois acompanhá-lo quase que correndo pela plataforma até o trem sumir na curva,

Depois disso, a cada trem que chegava sua esperança se transformava em decepção. Mas, ela não desistiria. Havia muita verdade naquelas palavras, segundo ela. Ele certamente iria voltar para leva-la. Quando isso aconteceu ela tinha 21 anos, agora estava perto dos 30 anos.

Falava com empolgação e realmente acreditava que ele iria voltar. Fez questão de me dizer que, além de sua mãe, nunca contou esse fato a mais ninguém. Só a mim. Não me restou outra alternativa a não ser desejar que ele realmente voltasse pra ela e dizer que eu estava voltando para a estrada.

Agora, como representante autônomo eu não tinha um roteiro rígido e poderia ir para cidade que eu quisesse ou que sentisse que ali haveria possibilidades de vendas. E com as despesas por minha conta, teria que ser racional.

Por isso fiquei sem visitar Aquidauana por mais de quatro anos e quando voltei, já estava de volta à área médica, mas atendendo laboratórios de análises clínicas. E usando o trem.  

Decidi, naquela viagem ir direto a Corumbá e vir fazendo as cidades até Campo Grande, que tinha o dobro de laboratórios das outras cidades juntas. Quando o trem parou em Aquidauana, desci rapidamente para tomar um café no Bentão e dali vi Ilana abordando os passageiros oferecendo sua chipa.

Corri até ela para cumprimenta-la e, ao me responder, percebi que ela estava muito triste. Quis saber por que e ela me falou que sua mãe tinha morrido e que agora ela estava só. Disse a ela, então, que na volta em quatro ou cinco dias eu conversaria com ela. E assim, fiz.

 Desci na estação e nem fui para o hotel, fiquei esperando o trem partir pra conversar com ela. O que me chamou a atenção foi ela dizer que agora ela estava só. Será que ela ainda estava esperando o tal de olhos azuis?.

Quando nos sentamos em um banco na estação, agora já bem vazia, pedi que ela me falasse como estava a vida dela. E comecei com um elogio, dizendo que o nome dela era diferente e bonito, mas ela me esclareceu que o nome dela era Helena, e que se tornara Ilana porque a avó dela era fanhosa em virtude de uma doença que deformou o nariz dela e pronunciava Ilana ao invés de Helena.

Ela me contou que tinha um irmão que quando pequeno também a chamava de Ilana e que agora era peão pantaneiro, trabalhando para o dono do sítio onde ela morava. Disse que vinha para a cidade nos horários de chegada dos trens com uma charrete que seu irmão lhe dera, já que seu pai, também vaqueiro, sumira no mundo.

Agora seu irmão foi para outra fazenda, do mesmo dono do sitio, lá perto de Poconé e fazia anos que não voltava pra casa. Por isso, com a morte da mãe, estava realmente só.

Então, perguntei por que não arrumava um namorado, já que era tão bonita e gostava de trabalhar. Ficou em silêncio por um instante, mas me surpreendeu com a resposta.

Ela achava que iria morrer logo como a avó e como a mãe de uma doença ruim. Imaginei ser câncer ou outra doença genética, mas, baixinho, ela disse que era lepra.

Pediu que eu não contasse a ninguém, que aprendeu a confiar em mim, que se alguém soubesse, ela nem poderia estar ali e ninguém compraria suas chipas. Pode ser um preconceito tolo, mas, sim, isso poderia acontecer.

Fiquei sem saber o que dizer. Perguntei se ela estava infectada e ela disse que no último exame de sangue tinha dado negativo. Mas, ela não tinha certeza de nada.

A graça na vida dela era esperar que aquele amor voltasse um dia. 

E só sabia que se arrumasse um namorado ali, este iria saber do histórico de doenças na família e ela iria ficar “falada”. Não podia arriscar a jogar fora a única fonte de renda para sua subsistência.

Já era meados da década de 80 e eu a vi mais duas ou três vezes até eu voltar a viajar para São Paulo e Paraná.

No começo de 1993 fiquei sabendo que o trem de passageiros Bauru a Corumbá iria parar de rodar. Resolvi fazer uma viagem de turismo, sem compromisso profissional algum, na última partida da estação da NOB em Bauru.

Fui fotografando tudo o que pudesse me lembrar de muitas viagens que fiz por aqueles trilhos. Quando saí de Campo Grande pensei em fazer uma foto com Ilana, até pra me lembrar do quando aquela pantaneira era bonita.

Quando o trem parou na estação em Aquidauana eu não a vi. Fui até o bar do Bentão e perguntei a ele pela Ilana. 

Ele me disse, sem parar de servir salgados e cafezinhos que ela tinha ficado muito estranha, mais quieta que de costume e que uma noite, quando trem já estava saindo, ela começou a gritar, chamando alguém de dentro do trem balançando os braços, largou cesta de chipas na plataforma e saiu pelos trilhos correndo atrás do trem.

Estava bem escuro, chovendo, fazendo frio, e ela sumiu na curva. Todos esperavam que ela voltasse logo e nem ligaram muito. No dia seguinte encontraram o corpo dela no lado dos trilhos a mais de dois quilômetros daqui. Ninguém aqui entendeu nada.

Contos Quase Reais (4) – A Barriga do Bebê

1.300 km de estrada de ferro ligam Bauru, interior de São Paulo a Corumbá, em pleno pantanal, no Mato Grosso do Sul.

Bolívia             Rio Paraguay

Corumbá               Mato Grosso do Sul

Miranda

Aquidauana

Campo Grande

Três Lagoas                Rio Paraná

   Andradina

Araçatuba                              São Paulo

Lins

                                                       Bauru

Durante muitos anos os trens de passageiros interligavam as duas regiões e o trem que ligava os dois terminais ficou conhecido como o ‘trem da morte’ .

Corumbá é a porta de entrada da Bolívia para os brasileiros e ate há um prolongamento da estrada que segue ate Santa Cruz de la Sierra.

Outros horários de trem cobriam um ramal que liga Campo Grande a Ponta Porã; alguns horários de Campo Grande a Bauru e horários de Campo Grande a Corumbá.  E Ponta Porã faz divisa com Pedro Juan Caballero, no Paraguai, dividida por apenas uma avenida. Era de se supor que o trem transportasse o inimaginável. Mas além desse inimaginável, o trem transportava muitos passageiros. E haviam pessoas que serviam esses passageiros durantes essas longas viagens.

Paquito era um desses senhores que parecem ter saído de uma caricatura ilustrada. Magrinho, cabelo ralo com entradas e um bigodinho bem fino calçando um nariz pontiagudo. Meio século de vida e parecia que nunca foram jovem e que nunca seria velho.

Paquito vendia revistas e jornais no trem. Por deferência especial, também vendia o suco de pneu, que era o tradicional cafezinho vendido aos corajosos passageiros. A viagem de Corumbá a Bauru começava as 8 horas da manha, pelo horário de Mato Grosso do Sul, que é uma hora a menos e terminava no outro dia em Bauru, por volta de 14 horas, quando não havia atraso, o que era bastante comum.

Era verão e o calor em Corumbá é insuportável para os desacostumados mas Paquito, com o seu paletozinho azul marinho de tergal e seu quepe de aba de plástico parecia nem sentir o tempo, quanto mais a temperatura. Aquela viagem prometia, porque ao subir na composição o ajudante do maquinista escorregou e se ralou todo. Medicado, atrasou a partida em, pelo menos,  meia hora.

E, quando o trem de passageiros atrasa, todos os trens de carga que estão no trecho, atrasam também. Era uma sucessão de atrasos.

A voz de Paquito era metálica,  puxando esses e erres, herança de um antigo desejo de ser locutor de rádio. E a cada frase mais eloqüente, erguia as sobrancelhas, enrugando toda a testa. Aliás, ele era muito querido por toda a equipe do trem.

Começar a viagem pela manhã proporcionava aos passageiros um espetáculo fantástico na travessia do Pantanal. Jacarés, capivaras, veados, macacos e pássaro aos bandos compunham cenas inesquecíveis… Como os trilhos foram construídos em região alagada, era necessário uma velocidade moderada e, às vezes, bastante lentas, o que permitia uma observação privilegiada por quem conseguia um lugar nas portas ou nas janelas dos vagões.

Pelos corredores, a rotina do trem começava. Ora era o bilheteiro, ora eram os vendedores, como o Paquito.

Já se aproximava do meio dia e Paquito começou a oferecer o almoço. O passageiro poderia ir ao restaurante ou almoçar na poltrona mesmo, recebendo o famoso PF; um prato feito com arroz, feijão, macarrão, um bife e duas rodelas de tomate. Foi ai que Paquito notou aquele casal,  num vagão de primeira classe. Voltando para o carro restaurante foi pensando, pensando…

–           Que casal estranho…..

–           Que que é Paquito….? Perguntou Barba, o cozinheiro.

–           Nada não, acho que é impressão minha… Tem mais PF pronto ai?

–           Claro… Leve esses seis aqui….

–           Ta bom… Daqui a pouco volto pra acertar.

Colocando um prato vazio sobre o prato com a refeição e fazendo um pilha, Paquito colocava a mesma em um pano, amarrava as duas pontas atrás do pescoço o que facilitava em muito o transporte. O casal havia pedido dois PFs que deveriam ser entregues na próxima vez, mas Paquito não se conteve, passou por quem estava na frente e foi lá no carro de primeira.

–           Olha o almoço de vocês…. Ta quentinho… Se tiver o dinheiro trocado, eu agradeço…

O rapaz pagou com uma nota e disse que Paquito poderia ficar com o troco. Era um bom troco e Paquito saiu rapidinho temendo um arrependimento. Mas, mesmo assim notou a expressão assustada da moça e pode notar que entre os dois havia um bebe, provavelmente, dormindo. No caminho de volta, anotou pedidos de refrigerantes e os trouxe, junto a mais uma pilha de Pfs. Não tinha mais nenhuma entrega naquele carro, mas foi lá,  mesmo assim. Quem sabe alguém já teria terminado de almoçar e ele, então, traria os pratos vazios. Passou bem devagar pelo casal e teve que desviar o olhar,  porque o rapaz o encarou de forma ameaçadora.

Reparou que a moça nem tinha aberto o prato ainda.

Voltou para o restaurante para fazer o acerto daquela entrega.

– Tem um casal muito estranho num carro da primeira…

–           Como assim…?. Quis saber Rodolfo, o gerente do restaurante…

–           Não sei não… O cara é magrinho cadavérico, vermelhão, tem bigode e cavanhaque ‘de bode’ e ainda usa óculos escuros o tempo todo.

¬          E que é que tem isso?

–           Não sei.. A moça que tá com ele é morena, bonita, parece uma ‘crucenha’, mas pelo sotaque, parece ser carioca….

–           Ainda pergunto o que é que tem isso…?

–           Não sei… Parecem assustados…

–           Assustados?

–           É eles não relaxam… E tem ainda o bebê…

–           Bebê?

–           É… A criança ta muito coberta, num calorzão desse….

–           Vai ver é pai de primeira viagem…

–           Pode ser… Mas eles nem se falam  direito…

–           Vai ver tão brigados…

Era comum Paquito voltar de suas entregas com estórias para contar e todos já estavam acostumados. Alias, gostavam muito. Por isso da forma como ouviram, esqueceram. Paquito voltou levando mais refrigerantes e tinha muita pressa, já que estava chegando mais uma estação.

–           Chipa… Olha a chipa…

As vendedoras de chipa, na plataforma de Miranda, ainda lembravam as fronteiras de Bolivia e Paraguai, que fazem de Mato Grosso do Sul um estado tão especial. Chipa é um biscoito de queijo, tipo pão de queijo mineiro, com forma mais alongada.

Paquito não gostava muito desses vendedores, já que eram seus concorrentes diretos mas sabia que isso criava a atmosfera da viagem. Muitos daqueles passageiros eram turistas e ele sabia como turista gasta com qualquer coisa diferente. O trem movimentou- se ao mesmo tempo em que ele passava por aquele casal. O rapaz parecia dormir e a moça segurava e bebe no colo, de encontro ao peito. Paquito continuou rápido mas ficou imaginando a cena. Quando chegou no restaurante não se conteve.

–           Caramba, mas assim o neném não respira….

–           Como é,  Paquito?

–           Sabe aquele casal estranho que lhe falei?

–           Que tem….?

–           A moça não parece mãe, não…

–           E porque?

–           Ela não sabe nem segurar o neném…(pegando a garrafa térmica)  Ela está apertando a cara do neném assim, ó, contra o peito… Desse jeito ele vai se sufocar…..

–           E você acha que ela não sabe disso, ô Paquito.!!!.

Paquito nem respondeu. Pegou a garrafa térmica com café, os copos americanos, de vidro, e saiu.

Atendendo um aqui, outro ali, esqueceu- se do casal e seu bebê. Só foi se incomodar um pouco quando viu aqueles ‘federais’ embarcando em Aquidauana.

Já conhecia os dois de outras ‘batidas’ e sabia que eles não facilitavam nem um pouquinho. Eles eram de Campo Grande, mas quando havia alguma denuncia, iam de carro ate Aquidauana, armavam a ‘campana’ e preparavam o flagrante, contando com o reforço em Campo Grande, onde outros agentes aguardavam. De Aquidauana a Campo Grande passariam ainda algumas horas e Paquito ficou ‘patrulhando’ os dois agentes tentando descobrir o ‘avião’, que é a denominação dada ao transportador de drogas compradas na fronteira. Percebeu um dos agentes fingindo ler uma revista em quadrinhos, sentado na primeira poltrona do vagão enquanto o outro ficava em pé na outra ponta de vagão. De repente, e lentamente, os dois trocavam de lugar, cruzando- se pelo corredor sem mesmo se olharem. Paquito já havia visto esta operação mais de uma vez, em outras viagem, e sabia que quando eles detectavam o ‘avião’, ficavam no vagão, juntos, esperando Campo Grande. Ainda não havia acontecido isso. Isto é, não haviam ainda encontrado o, ou os traficantes. Normalmente, tinham a descrição anotada em papel e antes de ‘correr’ outro vagão, conferiam juntos a descrição.  Sabiam também que o denunciado descrito, às vezes, não embarcava e passava o ‘bagulho’ para outro “avião”. Quem fazia a denuncia, normalmente, era o próprio vendedor da droga, na Bolívia. Quando não encontravam o descrito passavam a procurar comportamentos suspeitos. Por fim, colocavam a jaqueta com a inscrição da Policia Federal e observavam as reações. Paquito conhecia todo esse processo e procurava não estar muito perto quando acontecesse o flagrante. Mas, estava percebendo que os dois agentes não estavam tendo sucesso, não. Já era final de tarde, Campo Grande se aproximava e nada de abordagem. Paquito já achava que não havia traficante naquele trem.

Começo da noite e o trem parou na estação de Campo Grande. Os dois agentes desceram. Paquito pode observá-los conversando com outros três na plataforma, viu os cinco subirem, correrem todos os vagões, revistarem os carros dormitórios e novamente descerem sem nada apurado. Em Campo Grande o trem demora um pouco mais para sair, mas naquele dia demorou um pouco mais. Já passava das oito e meia da noite quando se ouviu o apito do chefe do trem autorizando o maquinista sair.

Paquito passou recolhendo os últimos pratos do jantar e a cada vez que chegava ao carro restaurante, contava mais um pouco do trabalho frustrados dos agentes federais.

–           Mas parece que um deles esta seguindo viagem – comentou Barba.

–           Eu não vi retrucou Paquito

–           É um que eu conheço… Ele esta no segundo vagão da  Primeira

–           Será que está de serviço?

–           Claro ! Está sem bagagem…

–           Deve descer em Ribas do Rio Pardo, então…

–           E deve ter viatura esperando por ele lá… Deve ser coisa grande que eles estão procurando…

–           Bem… Vou oferecer cafezinho…

–           Qualquer coisa vem contar….

–           Tá…

Mas não havia nada pra contar. A composição cortava a escuridão e dentro dos vagões os passageiros procuravam a melhor posição em busca do sono. O tac ti tac das rodas deslizando sobre os trilhos  e o balanceio lateral do vagão criava uma sensação, no mínimo, estranha a quem se detinha no detalhe do ambiente. Já era uma hora da madrugada quando o trem se aproximou de Três Lagoas e o chefe do trem passou coletando os bilhetes de quem iria desembarcar. Paquito aproveitou para se aproximar do tal agente e constatou que ele não descera em Ribas do Rio Pardo e que também não dormira nem um pouco. Chegou bem perto, abaixou e quase cochilou.

–           Quer um café?

–           Tem?  Quero… Obrigado.

–           Vou buscar…

Paquito nem sabia se havia café quente ainda; mas não resistira a curiosidade e se arriscou. Chegou no carro restaurante, adentrou a cozinha e encontrou Barba ainda acordado.

–           Barba, tem um café, ainda?

–           Não.

–           Não?

–           Não.

–           Puxa vida! Eu precisava de um café, urgente.

–           Porque?

–           Eu precisava agradar uma pessoa…

–           Que pessoa?

–           Um federal… quero saber qual é a ação deles hoje…

–           Como assim?

–           É que desde Aquidauana eles estão atrás de alguma coisa… e até agora não conseguiram fazer o flagrante… se não fizerem em Três Lagoas, é porque a coisa é grande e difícil…

–           E o que você quer?

–           Quero puxar uma conversa com o federal… saber alguma coisa.

–           Tá bem… vou passar um rapidinho…

Paquito entregou o café ao agente e já perguntou.

–           Posso ajudar em alguma coisa?

–           Como é?

–           Eu sei que você é da federal. E que está de serviço.

Aqui na composição a gente sabe…..

–           Qual o teu nome?

–           Paquito, seu criado…

–           Olha aqui, Paquito, estamos procurando um gordinho, mais ou menos 1,60 de altura, cabelos crespos, castanhos bem peludos, com uma maleta de couro cru e uma mala marrom, grande . De dia, ele usa óculos escuros o tempo todo…

–           Não está no trem…

–           O que?

–           Só se estiver nos carros dormitórios…

–           Já checamos os três…. lá não esta….. mas temos certeza que ele embarcou com pelo menos três quilos de ‘pó’….

–           Três quilos?

–           Ainda não é muito…. mas ficamos sabendo que ele compra do mesmo fornecedor pelo menos quatro vezes por semana…

–           Por semana?

–           Já viu a quantidade, né?

–           E como ele faz?

–           É o que queremos descobrir agora…

–           E nada?

–           Nada…

–           O senhor esta sozinho?

–           Não.

–           Onde está o outro?

–           Precisa dizer?

–           Claro que não.

–           Você é inteligente, Paquito….

–           A gente pode ajudar?

–           Fique de olho….

–           ok, chefe

Paquito desceu um pouco na plataforma em Três Lagoas e se imaginou um super agente secreto.

Andou lentamente, pela lateral do trem observando as janelas e seus ocupantes, perguntando- se ‘cadê o gordinho?’. Num repente de raciocínio, concluiu que o gordinho não era o ‘avião’ e que contratara alguém. Mas, quem? Mesmo com o movimento de embarque e desembarque, a maioria dos passageiros continuava dormindo. Entrou novamente no trem e passou lentamente pelos corredores dos vagões. Seria aquele gordo com aquela mala no colo, dormindo tão profundamente que chegava a babar? Seria aquele negro de boina colorida e fones no ouvidos,que já tomara três cervejas desde Campo Grande? Ou seria aquele senhor careca, de bigode, de paletó cinza e camisa branca, que ficava mastigando aquele palito de fósforo?. Como saber? Os federais já haviam usado seus truques e ninguém se entregou. Então, como fazer?  O melhor mesmo era dormir um pouco. E assim fez. Perto de seis horas já estava enchendo a garrafa térmica de três litros para correr os vagões.

O trem já se aproximava de Castilho e logo chegaria a Andradina, já no estado de São Paulo. Paquito percebeu que fazia calor porque alguns passageiros comentaram sobre isso. Mas não se abateu.

Atravessou os carros de primeira classe e quando começou os da segunda, lembrou- se do casal com o bebê. Chegou perto e viu que os três dormiam fundo, apesar do calor e da claridade das seis horas do verão. A paisagem, vista pelas janelas já era completamente diferente, com muito mais construções, apesar de muito pasto e muito gado ainda. Castilho passou e Andradina, onde a parada seria maior já se aproximava. Paquito procurou saber do agente da policia federal, já que embarcara em Campo Grande, sem bagagem, e que deveria estar trabalhando o tempo todo. Não o achou na primeira passagem. Deveria estar no banheiro. Na verdade, estava mesmo é curioso para saber quem era o outro agente e se fariam o fragrante em Araçatuba, onde sempre havia mais agentes da policia federal. Mas nada. A viagem transcorria sem problema algum. Para Paquito, os federais estavam aproveitando a viagem pra passear e até mesmo chegar a Bauru, pra fazer algumas compras, ir na casa da Eny, um bordel famoso e voltar a Campo Grande sem remorso algum. A chegada em Bauru estava prevista pra 14:30h aproximadamente. Pouco atraso. Já era quase meio dia, Paquito entregava alguns PFs e o trem se aproximava de Lins. Um dos Pfs foi entregue ao agente e ao seu colega, que finalmente se juntou ao mesmo, desistindo de qualquer ação. Ainda faltavam quase duas horas para o trem chegar a Bauru e Paquito aproveitava para insistir em oferecer refrigerantes geladinhos. Ao percorrer os vagões de segunda classe notou algo muito estranho. O casal com o bebe estava discutindo em tom baixo, mas bem perceptivo. Passou por eles e sentiu um cheiro diferente. Na volta, parou na porta do banheiro para observar melhor, já que o casal estava na primeira poltrona do carro. Foi quando viu o rapaz tirar um spray do bolso da jaqueta e pulverizar o ar. Notou que o spray era um desodorante chamado Bom Ar e pode perceber o aroma de lavanda. Achou esquisito mas seguiu seu trabalho. Quando voltou pra recolher os vasilhames, notou que o rapaz continuava pulverizando o ar, mas que de vez em quando, pulverizava na direção do bebê. Revoltou- se. Isso era demais.

-Olha aqui rapaz, tá certo que no fim da viagem o cheiro dos banheiros começa incomodar,  mas não precisava jogar isso no nariz do teu filho, caramba!

–           Não te meta, companheiro…

–           Tá bem… mas isso faz mal pro bebê…e que mãe é a senhora que deixa isso?

–           Já disse, não te meta,… esse trem fede muito… fora daqui….

Paquito não teve outra alternativa. Resmungando saiu pisando forte. Instintivamente, acercou-se dos agentes federais e comentou o ocorrido.

–           Vocês poderiam dar uma dura no rapaz… ele é muito abusado.

–           Não podemos fazer isso… o problema da higiene é com vocês… embora eu reconheça que o cheiro dos banheiros agora é mesmo caso de policia…

Paquito voltou ao carro restaurante e comentou com o Barba e com Rodolfo. Estava realmente indignado com aqueles pais. Imagine; jogar spray em cima de um bebê!!? O trem já saira  de Pirajui, faltava pouco mais de  uma hora pra chegar a Bauru e o calor era infernal. Paquito resolveu fazer uma última checagem em busca de vasilhames ou qualquer coisa que precisasse ser recolhida. Foi quando viu o rapaz pulverizar bem em cima do bebe quase em seu rostinho. Não se conteve. Voltou ao carro de primeira e praticamente intimou os agentes.

–           Vocês tem que ver isso e fazer alguma coisa… ele vai matar o filho desse jeito…

Pra dar um aspecto mais oficial a reprimenda, Paquito pediu aos agentes que colocassem o colete da Policia Federal. Assim o rapaz não o ofenderia e talvez ouvisse a voz do bom senso. De cara fechada, seguiu firme pelos corredores, acompanhando de perto pelos agentes, que iam com muita má vontade, aliás. Quando entraram no vagão onde estava o casal e Paquito os apontou lá no fundo, a reação da moça foi surpreendente. Ela deu um grito, que não dava pra entender o que dizia e simplesmente jogou o bebe no peito do rapaz. Após isso, saiu desesperada pelos corredores dos outros vagões. Enquanto isso o rapaz, com o bebe no colo, via Paquito e os agentes se aproximarem rapidamente e, meio sem ação, por estar sozinho tomou uma decisão surpreendente.

Arremessou o bebe na direção dos três. Paquito se atirou e pegou o bebe em pleno ar, sem entender nada. Atordoado, caindo por cima de outros passageiros, pode ver o rapaz sacando uma arma e rapidamente Paquito levantou-se e quase vomitou ao sentir o cheiro que vinha do bebê. Num gesto paternal, delicado e preocupadíssimo, foi arrumar a manta que cobria a criança. Foi quando viu que o bebe não abria os olhos. E mais, que estava frio. E mais; é que estava mesmo mortinho. Quis gritar, a voz não saiu, quis chorar, não saiu, quis largar a criança mas só conseguia ficar olhando para aquele rostinho pálido. Os outros passageiros dos outros carros já faziam um pequeno tumulto ao seu redor, subindo por sobre as poltronas, querendo saber o que estava acontecendo. Apertou o bebe de encontro ao peito com tanta força que percebeu que algo estourara. O mal cheiro aumentou e num misto de asco e incompreensão procurou saber o que fizera com aquele corpinho. Levantou a manta e percebeu uma enorme costura cirúrgica na barriga do bebê. Alguns pontos se abriram. Um dos agentes pegou a criança, tirou o fio da sutura e do abdômen da criança, já sem as vísceras, bastante inchado, e tirou vários sacos de plásticos, cheios de cocaína.

Paquito não acreditava no que via. Uma passageira desmaiou e, ao cair, bateu a cabeça na lateral da poltrona e sangrou muito. Uma outra passageira vomitou muito, inicialmente no marido e depois pela janela. O outro agente conseguiu capturar a suposta mãe quando ela ameaçava se jogar do trem em movimento. Pouco tempo depois o trem apitava anunciando sua chegada na gare central da estação ferroviária de Bauru. Não havia ninguém esperando os agentes federais. Os passageiros desciam, seguiam seus destinos, talvez comentando, talvez não. Os agentes ficaram no trem, no vagão do chefe, esperando que viessem agentes de Bauru para configurar o fragrante. Paquito, saudoso de casa, sentou- se numa mesa do carro restaurante e observava a plataforma com todas as pessoas se cumprimentando e carregando suas malas. Precisava ainda fazer um acerto de caixa com Rodolfo e torcia pra não ser convocado como testemunha. Quando a plataforma se esvaziava, viu os agentes levarem o casal, algemado, pra fora da estação. Ai entrou num banheiro, vomitou muito e chorou como uma criança. Chegou em casa quase começo da noite, abraçou a ‘patroa’ como chamava a esposa, passou a mão na cabeça do menino, beijou a menina mais velha e abraçou longamente a menorzinha, magrinha como um bebê. Ai; tomou um gole de cachaça e comentou que a viagem tinha sido normal; como todas as outras… só a sua vida é que deixaria de ser normal; pois precisaria, sempre ao lembrar-se, de um ou dois goles de cachaça……..                                   

Cultíssimo

CULTÍSSIMO

Ouvi de uma senhora, professora universitária aposentada, duas frases instigantes. A primeira, referindo-se a seu marido diz que “ele é autodidata, lê de tudo, conhece tudo e hoje ele é cultíssimo”

Bem assim, nesse superlativo; “cultíssimo”.

No transcorrer da conversa, ouvi outra frase, também, referindo-se ao seu marido; “ ele anda cada vez mais fechado, desanimado, irritando-se com qualquer coisa”. Abri os olhos, franzi a testa, mas logo em seguida, voltei ao normal, já que a imagem do “cultíssimo” havia se dissolvido.

Produzi um documentário para o Instituto Yauaretê dentro do projeto Pontos de Cultura chamado A Identidade Cultural da Região de Bauru onde se perguntava “O Que Será a Cultura?” Personalidades das artes deram seus depoimentos e uma narrativa na voz da diretora do Instituto Yauaretê, Sandra Pereira, tentava unir os mais variados conceitos.

Não satisfeito , produzi um evento na Escola Ernesto Monte denominado Culturando, junto com a secretaria municipal de cultura. Foram 19 palestras sobre segmentos artísticos. ( Eram 20, mas o palestrante que iria falar sobre cinema, confundiu as datas e não apareceu, infelizmente) Os alunos do ensino médio foram o público alvo, mas algumas vezes, também compareceram classes do ensino fundamental. Eram palestras interativas, com a participação dos alunos, e onde havia uma exposição de materiais relacionados com o segmento artístico. Teatro, dança, música, literatura, arquitetura, artes gráficas, arte circense, escultura, pintura, entre outros segmentos. Palestras muito interessantes e educativas, como o hip hop, o artesanato e artes culinárias. Logicamente, gravei tudo e assisti a cada uma delas, pelos menos, duas vezes cada.

Ao ouvir, ali, as estórias e a história de artistas famosos como Puccini ou Rodin, Niemeyer, Pavarotti, Rembrant e tantos outros que deixaram suas mais puras emoções do jeito mais palpável possível, de forma que eu possa tocar ou que possam tocar meus ouvidos ou meus olhos, fiquei imaginando como a arte pacifica o ser humano.

Imaginei também que para entender a emoção contida em uma obra é preciso estudar essa obra de arte e procurar ter a mesma sensação do artista. É óbvio que não é fácil; os instintos nos impedem. Qualquer incômodo físico nos impede.

Fiz, então, uma correlação com a cultura agrícola, cultivando milho, por exemplo. Visualizei todo o processo de preparação da terra, a semeadura, a adubação e até a colheita antecipada do milho, ainda verde. Ele serve para se fazer a pamonha, ou o bolo, ou o curau, mas não se reproduz. O milho precisa estar maduro para se reproduzir.

Acho que a cultura do ser humano é mais ou menos assim, que precisa ser cultivado e estar suficiente maduro para se reproduzir. Um homem maduro conhece suas limitações porque tentou e errou, tentou e acertou,  mas provavelmente, mais errou que acertou. E, se um homem, ao perceber o sabor amargo do erro, procurar acertar, certamente estará evoluindo e, ao avançar, procurará o prazer, dará vazão aos sentimentos e entenderá a emoção.

Nessa hora ele deve procurar entender a intenção do artista, de qualquer gênero, ao ler um livro, assistir um filme ou observar uma pintura e sentir o que lhe toca, realmente.

Sobre si, então, passarão as lâminas do arado, revolvendo velhas camadas de vida. Sobre si cairão nutrientes e sementes e sobre elas as gotas de chuva que as germinarão. Assim, o homem se multiplicará e envelhecerá como o milharal, caindo ao chão para dar lugar ao novo. Um homem que se cultivou e generosamente dá seu lugar ao novo é um homem culto, presumivelmente, sábio, seguro, sereno, maduro. Não se irrita com o tempo, que lhe deu tempo suficiente para saborear a emoção em vários formatos.

De volta ao corpo

João morreu, sem perceber.

A viga de concreto, içada por um pequeno guindaste, soltou-se e atingiu a parte de trás da cabeça. Não ouviu e nem viu nada. Não sentiu qualquer dor.

Estava naquela construção por acaso, contrariando sua mãe que o queria em casa fazendo as tarefas da escola.

Foi acompanhando um amigo que fora levar um documento ao pai, que era um dos pedreiros da obra.

João era negro, muito pobre e tinha 16 anos.

João, então,  sentiu-se em um lugar diferente, aparentemente  vazio,  de infinita dimensão, mas nada via.

Aliás, pode perceber que não tinha mais o sentido da visão.

Por isso, era tudo muito escuro, mas de um negro brilhante, polido, aparentemente refletindo luzes.

Também percebia que se lembrava de seu corpo e de suas feições,  mas não sentia seus braços,  pernas, ou qualquer parte de seu antigo corpo. E nem as vontades, sempre gritantes, de seu antigo corpo..

Não havia mais a sensação de fome ou sede ou de qualquer lembrança do que fosse uma simples dor física, já que não havia mais a sua parte física.

Mas ele se lembrava de toda a sua história, de tudo o que fez em seus 16 anos e, aí sim,  sentia alegria ou uma tristeza angustiante.

Não via, mas sentia presenças, muitas presenças. Imaginou-se, então, um cego.

Mas, não era cegueira, era um modo diferente de perceber o que havia além dele, embora não houvesse nada.

Apenas aquelas  pequenas porções de luz branca, movendo-se lentamente no fundo negro,  sem forma alguma, diferenciando-se  apenas pela intensidade de seu brilho.

E foi uma dessas porções de luz, bem intensa, que se  aproximou dele. Não houve fala nem som da voz, mas puderam, serenamente, conversar.

–           Bem vindo, João.

–           Sabe o meu nome?

–           Sim,  estava te esperando. Meu último nome foi Ricardo e estava acompanhando tua vida.

–           Teu último nome foi Ricardo?  Como assim?

–           Neste plano guardamos o nome de nossa última fase terrena.

–           E como assim, acompanhando minha vida?

–           Sim, procurando evitar que você morresse

–           Eu morri? Porque eu morri?

–           Não podemos controlar a vida terrena de ninguém. Tudo depende do livre arbítrio de cada um. Você foi vítima de uma imprudência e quem a cometeu deverá responder por isso.

–           E agora?

–           Você ficará um tempo entre nós, ouvindo estórias, aprendendo e retornando para mais uma jornada física. Às vezes, você poderá voltar para a terra com uma missão

–           Missão?

–           Sim, cada fase terrena  tem um propósito e, dependendo do desenvolvimento da missão, esse propósito é atingido ou não.

–           Não entendi

–           É porque você ainda é um espírito jovem. É uma obra recente do Criador.

–           E onde Ele está?

–           Em um plano bem mais acima.

–           Eu vou para lá?

–           Vai demorar algum tempo, depois de muitas fases terrenas e toda a evolução possível,  quando você for uma  luz intensa,  tão intensa que se decomporá em todas as cores. Será uma maravilha!

–           E enquanto isso não acontece, o que faço eu?

–           Mova-se à vontade, conheça outras criações.

–           E como?

–           Basta chegar perto que a comunicação se fará.  Saiba também que o brilho da luz indica o grau de evolução do espírito.

–           Será que tem alguém que conheci por aqui?

–           É possível, mas não espere que te reconheçam.

–           Ah, não? Porque?

–           Porque aqui é possível identificar apenas a consciência. Se não havia ligação espiritual não haverá reconhecimento

Durante muito tempo João vagou por aquele ambiente. Conheceu muitas estórias e ,  também, muitas lamentações e arrependimentos. Ricardo, às vezes, falava sobre algumas atitudes que ele havia tomado e lhe dava alguns conselhos. Estava calmo e em paz, mas sentia uma vontade que não sabia identificar. Ficou deste jeito, sem saber por quanto tempo,  quando inesperadamente Ricardo se aproximou.

–           Prepare-se!

–           Para que?

–           Você vai voltar a um corpo a ser formado dentro do corpo de uma mulher que não quer ter filhos.

–           Ué, não entendi. Ah, já sei,  sou um espírito recente…

–           é  isso mesmo

–           Mas, se ela não quer ter filho o que eu vou fazer lá?

–           Servir a um propósito.

João  chegou no mesmo instante em que sentiu uma descarga elétrica.  Ficou por ali,  sentindo-se crescer,  mas logo tudo pareceu explodir. Logo estava de volta próximo a  Ricardo. Continuava ainda com  a consciência de João.

–           Porque estou de volta?

–           Porque ela provocou um aborto.

–           Foi ruim

–           Mas, prepare-se; você vai voltar para o mesmo corpo.

–           De novo?

–           Sim, mas desta vez vamos alterar a dosagem de hormônios. Você será uma menina. E continuarei por perto, procure perceber.

–           Mas, como posso perceber?

–           Fique tranqüilo, em paz, sem pensamentos ruins, que você vai me ouvir.

João ainda teve tempo de vagar um pouco e ouvir algumas estórias de outros abortados.  Pode compreender que a vida começa no embrião quando o coração pulsa e as células nervosas ficam prontas para se interligarem.

Pode entender também que é possível perceber o ambiente externo quando alguns sistemas orgânicos já estão formados. De repente, Ricardo estava  próximo, de repente não estava mais e João é que estava levando um choque.

E não era mais João. O desenvolvimento foi rápido e nove meses depois nascia como Maria, sem nenhuma lembrança de como era João.

A família de Maria era formada apenas pelos pais e com bons recursos financeiros,  mas a mãe era de uma personalidade fútil e superficial. E o pai, um homem de personalidade fraca e carente que sempre atendia a seus desejos.

Foram cinco anos de uma vida feliz. Maria era muito carinhosa, linda e bem humorada. Encantava a todos. Sua mãe já falava em trazer um irmãozinho para lhe fazer companhia, tão grande era a alegria que Maria havia trazido aquela casa. Ela já falava muito, conversava muito, dizia frases inteligentes.

Apoiava seu pai em tudo e o abraçava muito, dizendo sempre que ele era seu cavaleiro protetor,  forte e corajoso. Isso o deixava seguro e confiante. Sua mãe até que gostava disso. Muitas vezes, também o chamava de cavaleiro forte e corajoso.

No entanto, um dia Maria teve um desmaio e, levada ao um hospital, foi constatada uma grave doença degenerativa e por mais cinco anos, Maria agonizou.

Foi definhando a cada dia e apesar de todos os tratamentos possíveis, seu fim parecia inevitável. Mesmo assim, mantinha seu bom humor e uma coragem surpreendente.

Em uma de suas internações conheceu Luzia, também de sua idade que passava por uma quimioterapia. Gostaram-se e conversavam muito. E o câncer de Luzia era muito agressivo que ela também já se convencia que não teria muitas chances de continuar viva.

Maria gostava de se pentear e a mãe começou a passar pós e batom para que sua palidez não fosse muito notada. Ela gostava muito. Mas ao ver Luzia sem cabelos parou de se pentear e pediu que a mãe maquiasse as duas. Mas Luzia insistia em pentear os cabelos de Maria. E nesses momentos esqueciam suas dores falando, sorrindo, brincando com outras pessoas.

Suas mães procuravam não chorar perto delas e, por mais dolorido que fosse pra elas,mães,  inventavam brincadeiras e cantavam pequenas canções.

Um dia, em que as duas estavam juntas num dos quartos, ouviram uma enfermeira cumprimentando outra enfermeira pelo aniversário naquele dia. Luzia também a cumprimentou a seu modo

–           Feliz Natal!

–           Como?

Perguntou a enfermeira, sem entender o cumprimento. E foi Maria quem completou;

–           Sim, feliz natal, feliz natalício, dia em que você nasce.

–           Ah, sim, obrigada. É que pensei que natal fosse só em dezembro.

–           É também em dezembro, intervém Luzia, quando todos se lembram de Deus

–           E se lembram também de como é fácil amar, como é simples perdoar Diz Maria

–          E como é gostoso um abraço, completa Luzia

–           Mas isso pode ser também no teu natal, não é?

( pergunta Maria, que continua)

O teu nascimento deve ser uma grande data também, como o natal de dezembro. Lembra como você fica no Natal de dezembro?

–           O nascimento e a vida de Jesus não é um exemplo, para  ser seguido? , pergunta Luzia.

–           Então teu aniversário deve ser celebrado como o Natal de dezembro, não é? pergunta Maria.

–           Ah, bem que eu gostaria, diz a enfermeira

–           Mas isso pode acontecer, basta você querer, diz Luzia

–           Mas eu quero..

–           então lembre-se do espírito do Natal em teu natal, lembra como é?

–           prepare sua festa de aniversário com o espírito do Natal, lembra como você se sente naquele dia? Pergunta Maria

–           sim, lembro, fico toda chorosa

–           é simples, não é? completa Luzia

–           é, Vou tentar

Quando estava perto de completar seus dez anos suas dores aumentaram muito e já não andava mais. Os médicos disseram a seus pais que não adiantaria mais levá-la ao hospital. Ficou tão fraca que quase não conseguia falar. Mesmo assim disse a sua mãe que ela ira embora,  mas  que ela teria outra filha.

–           Mas é preciso desejá-la  muito para poder tê-la.

A mãe lembrou-se de seu primeiro aborto e de toda a sua preocupação com seu corpo, achando que iria ficar deformado com uma gravidez. Sentiu um desconforto com tal lembrança.

–           Mamãe, eu queria que você  valorizasse a vida de qualquer ser. Mesmo que não seja gente como nós. Assim como os animais, entende?. Queria que você tivesse amor por todos. Você entende que, assim,  nunca estará sozinha?

Pouco tempo depois, Maria era uma pequena nuvem de luz um pouco mais brilhante e foi Ricardo quem a recebeu.

–           Bem vinda, Maria

–           Ah, que bom, não tenho mais dores.

–           Você suportou bem essas dores, Maria.

–           Que lugar é esse? O que aconteceu comigo?

–           Você foi mostrar o amor para um homem e uma mulher. Hoje eles são pessoas melhores depois de tua passagem pela vida deles. Agora, os filhos deles serão desejados e muito amados.

–           Não estou entendendo.

–           Não se preocupe, você não precisa entender. Mas saiba que você está mais fortalecida depois dessa jornada terrena.

–           Estou no céu? Porque não vejo ninguém?

–           Aqui é um dos níveis do céu, como se fala na terra. Mas, ainda não é o céu perfeito, aquele onde se encontra a felicidade eterna.

–           Não? E onde é?

–           É aqui mesmo, só que em outra dimensão

–           não entendi

–           é mais ou menos como um aparelho de TV onde você sintoniza estações diferentes. Ali, num só ponto estão muitas estações, não é? Aqui basta ser de nível de evolução diferente para encontrar sua própria estação.

–           E agora? Pra onde vou? O que vou fazer?

–           Você vai ser Maria ainda por algum tempo. Passeie e procure se aproximar de outros espíritos. Converse bastante. Procure aprender. É aqui neste nível que os espíritos se preparam para mais uma jornada evolutiva.

Ricardo estava gostando da evolução daquele jovem espírito que estava sob sua guarda e já o achava merecedor de uma vida mais longa.

Roberto era outro espírito de luz intensa que havia sido colocado como guardião na mesma época que Ricardo.

Roberto monitorava uma mulher já evoluída que havia se casado recentemente. Roberto estava procurando um espírito jovem para a primeira gravidez de sua protegida e procurou Ricardo para conversar.

Enquanto isso Maria vagava lentamente aproximando-se e afastando-se de outras nuvens de luz até que sentiu uma forte atração.

–           Luzia! É você?

–           Sim; Maria?

–           Sim, sim

–           que alegria te encontrar;

–           sinto a mesma alegria e não me sinto mais só agora

–           vamos voar? A gente pode voar

–           é mesmo, vamos, vamos

E aí, eram duas bolas de luz passando muito rapidamente para lá e para cá. Falaram-se muito, comentaram sobre os momentos ruins no hospital e sobre as brincadeiras que fizeram juntas.

Roberto ficou sabendo de Ricardo que Maria, sua protegida, iria voltar a um corpo, desta vez para ter uma vida bem longa. Perguntou então se ela não poderia ir para o ventre de sua protegida, que já era merecedora de uma filha que lhe fizesse feliz. Disse que era certo que seria a melhor mãe que ela poderia ter.

Ricardo chamou Maria e lhe disse que iria voltar a terra logo. Maria perguntou se Luzia não poderia ir com ela.

–           Gêmeas? Indagou Roberto

–           Porque não? Respondeu Ricardo. Vamos falar com o guardião dela.

Algum tempo depois, nasciam, lindas, saudáveis e bem diferentes uma da outra.

Walter Itajubá

Contos Quase Reais – O IDOSO

O Idoso
Contos Quase Reais

Flaviana gostava de morar no sítio, mesmo com todas as colegas de classe  tentando convencê-la a mudar-se para a cidade. Afinal fizera 13 anos e era hora de sair, passear, conhecer mais meninos alem daqueles da escola. Magrinha, loirinha, filha e neta de  italianos sempre preferiu a zona rural  e suas paisagens.

Leonardo, um primo distante de seu pai, era um dos empregados do sitio e perdera a mulher recentemente. Ela gostava de ficar com ele, não só conversando para consolá-lo, mas porque ele tinha um humor fino e gostava de mostrar tudo o que encontrava de belo, demonstrando a obra de Deus.
Ele não era de falar muito mas sabia o que falava.. Ela o ajudava nas tarefas do sitio, inclusive acordando de madrugada para ajudar na ordenha. Ele já tinha idade levemente avançada, pouco mais de 50 anos,  e não pensava mais em casar. Seu único filho morava em outra cidade, bem distante e raramente  se viam. Na verdade, em seus treze anos Flaviana  o vira apenas uma vez, justamente no velório da mãe.
Leonardo tinha fala mansa e também sempre vivera no campo sem  parecer um  camponês. Gostava de ler, desde que aprendera,  já rapaz. Acompanhou o crescimento de Flaviana e de seus três irmãos bem de perto, sempre pronto a ajudar seus pais.
Aconselhou Flaviana a atender o pedido de suas amigas e passar mais tempo na cidade, divertir-se, tomar sorvete que ela gostava tanto. Depois de alguns meses, Flaviana decidiu ficar na casa de uma tia, na cidade,  já que estava para terminar o ensino médio e logo prestaria um vestibular para um curso de zootecnia.
Mas sempre que podia, e conseguia alguma carona, voltava para o sítio. Os finais de semana eram todos passados com seus pais e, óbviamente, com Leonardo.  Já estava no terceiro ano de zootecnia quando apareceu no sítio apresentando Olivio, um colega de turma, como seu namorado, para surpresa do pai e felicidade da mãe.
Sua mãe esperava que ela se casasse logo para realizar um antigo sonho, vender a propriedade e morar na cidade, perto de um de seus filhos que tinha uma criança com Síndrome de Down.
Concluindo a faculdade aos 20 anos, Flaviana casou-se,  seus pais venderam o sítio mas ela dizia que não seria feliz se não resolvesse um problema; o destino de Leonardo. O sitio seria todo plantado com cana e não haveria lugar para ele, que na verdade, não sabia fazer mais nada além das coisas do campo.
Nem bem terminou a viagem de lua de mel, Flaviana e Olivio voltaram ao sítio e saíram com Leonardo em busca de um emprego nas chácaras e sítios da região. Não encontraram nada que agradasse Flaviana.  Leonardo até que gostou de um haras que estava precisando de alguém para limpar as cocheiras, mas Flaviana achou que ele merecia algo melhor.
Depois de uma semana procurando, Flaviana que iria morar num apartamento que uma tia lhe cedera, decidiu procurar uma casa, térrea, com quintal e que tivesse uma edícula. E para espanto de Oliivio, disse a Leonardo que ele iria ser seu “caseiro”.
A principio, Olivio até  achou que seria uma boa ideia,  já que os dois, ambos zootecnistas iriam procurar prestar serviços in loco, nas fazendas. Mas Leonardo não queria,  não entendia como um homem como ele poderia trabalhar em uma casa, na cidade.
Estava próximo dos 60 anos, mas sentia-se muito bem e tinha vigor suficiente  para ordenha, capina e até doma de potros. Não conseguiria viver de outra forma, mas Flaviana foi convincente ao falar de casa, comida, salário e amizade.
E Leonardo se desdobrou, procurava ajudar em tudo que pudesse e quando qualquer um dos dois tinha algum serviço em alguma fazendo ele se prontificava a ir junto para ajudar no que precisasse.
Mas, embora a edícula ficasse a quase dez metros da casa, a presença de Leonardo incomodava Olivio, principalmente porque Flaviana sempre ia vê-lo quando chegava em casa.
Sentavam-se em duas cadeiras em uma pequena varanda na frente da edícula e ficavam ali, conversando por quase uma hora.  Olivio, em mais de uma vez, foi chamá-la, não muito contente, mas procurando não demonstrar a sua contrariedade para Leonardo, já que ele estava se mostrando bastante útil.
Mas começou a não chamá-lo mais pelo nome,  tratando-o apenas como “o idoso”
No final do terceiro ano de casamento, Flaviana engravidou e estava voltando da maternidade com a filhinha Flavia nos braços quando Leonardo estava entrando no hospital.
Havia caído de uma escada quando arrumava uma luminária e teve uma lesão na coluna. A partir daí não pode mais fazer nenhum esforço físico. Essa condição o mantinha sentado em sua varanda, apoiado em uma bengala, olhar  passeando pelas plantas do jardim e só sorrindo quando Flaviana trazia Flavia para vê-lo.
No entanto, Leonardo, mais de uma vez ouviu  Flaviana e Olivio discutindo sobre a sua permanência ali. Ele queria que ele fosse para um asilo, mas ela era visceralmente contra.
Agora com Flavia, já prestes a fazer o primeiro aniversário, Flaviana ficava mais tempo em casa e procurava também ajudar Leonardo em sua edícula.  Começou até mesmo a arrumar sua cama e por sua roupa para lavar,  o que provocava mais irritação em Olivio quando ele presenciava essas atividades. Flaviana então pediu à diarista que fizesse a faxina também na edícula de Leonardo e pediu que ela viesse mais uma vez na semana.
Mas, pela manhã, Flaviana levava o primeiro cafezinho para Leonardo antes de sentar-se para tomar café com Olivio, que quando percebeu esse cuidado com Leonardo deixou de tomar o café da manhã com Flaviana. Esta não se importou.
. Nem mesmo quando Olivio reclamou com os pais de Flaviana,  quando estes vieram conhecer a netinha,  fez com que ela mudasse seu comportamento.
 Flavia havia acabado de comemorar seu terceiro aniversário quando começou a passar mal e o médico foi muito direto ao dar o diagnóstico.
Era um tipo de leucemia agressiva e que se preparassem para dias difíceis.  Depois,  idas e vindas ao hospital, longas sessões de tratamento, pouco avanço e o médico dizendo ser necessário um transplante de medula.
A busca pela medula ideal começou com exames em todos os parentes e resultou negativo.
O médico disse que iria acessar o banco nacional de medula e ver se encontrava alguma compatível, mas isso poderia demorar mais que o necessário.
Flaviana estava definhando a cada dia e, não fossem as conversas diárias com Leonardo, entraria em colapso nervoso.
Leonardo queria saber tudo e disse que iria até o hospital para visitar Flavia e ver se sua medula poderia servir.
 Olivio estava trabalhando mais que podia e ficava até alguns dias nas fazendas, tentando esquecer o problema,  o que só aumentava quando chegava no hospital e olhava para os olhinhos de Flavia, já com olheiras bem acentuadas.
Numa das visitas Olivio foi chamado pelo médico que perguntou quem era Leonardo Moreira de Souza. Olivio  disse que era o caseiro, velho conhecido da família e, se não se enganava, tinha um leve parentesco com o pai de Flaviana.
O médico disse, então,  que pelos exames de sangue de Leonardo era possível verificar que  sua saúde era razoável para a idade que tinha e que era possível sim extrair um pouco de sua medula para verificar uma possível compatibilidade, já que todas as alternativas tinham que ser tentadas.
Disse também que estava atendendo o pedido de Leonardo, que insistiu muito mesmo em doar sua medula.
Olivio ia negar mas apenas deu de ombros e avisou Flaviana que o médico autorizou Leonardo, apesar de seus quase setenta anos, a doar medula.
No final da tarde, para surpresa geral,  a medula de Leonardo estava sendo transplantada para Flavia. A noite  o médico confirmara que Flavia já apresentava alguma melhora em seu quadro clínico e que tinha certeza que os exames posteriores já iam ser diferentes, prenunciando uma cura.
Pela primeira vez, depois de vários meses, Flaviana e Olivio tiveram uma noite de sono profundo e levantaram-se muito bem, quase ao mesmo tempo.
Olivio recebeu uma  xícara de café de Flaviana mas disse que ia levar aquela  xícara para Leonardo.
Minutos depois voltou com a xícara na mão,  trêmula, olhos bem abertos,  murmurando que  Leonardo estava sentado na varanda, apoiado na bengala, morto.
Flaviana empalideceu, sentiu suas pernas balançarem, seus lábios iam se abrir para emitirem um som de dor, mas de repente, saiu em direção a casa de Leonardo, quase correndo. Realmente, parecia morto, olhos entreabertos, a boca levemente torta e os braços caídos ao lado da cadeira de balanço. Flaviana abaixou-se, ajoelhando-se, procurando abraçá-lo, fazendo um afago em suas costas com as duas mãos. Ficou assim por longos minutos sob o olhar entristecido de Olivio. Não demorou nada para que Leonardo acordasse, pois era isso que acontecia; um sono cataplético, tão profundo que nem parecia respirar. Devagar foi abrindo os olhos e só assim pode sentir o calor de Flaviana e perceber as lágrimas de Olivio, logo à sua frente. Mas, mesmo assim, estendeu a mão direita para pegar a xícara de café que ainda estava na mão de Olívio.

Crônicas das 100 cidades – Bariri

Não sei em que filme americano tinha uma personagem, moradora de rua, que  era sempre acompanhada por pombas. Nem era bem uma moradora de rua, pois tinha seu “dormitório” no sótão de um teatro em Nova York. Caricata, tinha um chapéu estilo século passado, ligeiramente obesa, maçãs do rosto avermelhadas e um sorriso conformado mostrando um dente mal cuidado. Tinha uma função bem pequena no filme, acho que, de conselheira de um jovem , ou coisa parecida, mas sua imagem ficou em mim. Hoje eu a revi, em Bariri. Seus pombos era quatro enormes cachorros que a seguiam e a obedeciam como crianças bem educadas.. Por quatro ou cinco quarteirões acompanhei seus passos e seus pequenos comandos para manter os animais bem próximos. Atravessou ruas como quando um grupo de alunos vai passear, em fila indiana. Não me contive e parei o carro na sua frente e a abordei. ” Esses cachorros não avançam em alguem ou mesmo em outro cachorro?” A pergunta não era uma reprimenda, era admiração mesmo. A resposta foi tão simples como sua vida ” porque fariam isso?” “Porque são animais” respondi . Ela me  respondeu, parecendo não entender a minha observação,  “Sou irmã da Tia Ninha”  e sem que que eu perguntasse quem era a tal tia, já foi completando. ” é uma que anda por aí” Desconcertado, ainda perturbei mais um pouco “você tambem anda por aí?”  ” ando porque a gente tem que trabalhar, né?” E, diminuido, voltei para o carro e vi Sonia caminhar, lentamente,  escoltada pela sua guarda de honra.

Contos Quase Reais/Tião Zulú

Sebastião José da Conceição era um negro tão negro que refletia o céu e, embora o negro não reflita a luz, no caso de Tião refletia apenas o azul do céu. Por isso era chamado de Tião Azul, depois ficou Tião Zulú, simplesmente. Apesar de seu enorme sorriso, que estava sempre metros a sua frente, havia sempre uma tristeza em seu olhar. Perdera sua mãe em seu parto e seu pai, Crispim da Conceição, domador de burros, quando tinha 9 anos. Morava com sua avó, no interior de Minas Gerais e agora, aos dezoito anos, estava seguindo a profissão do pai. Corria o ano de 1957  quando um colega, também peão de boiada, lhe fez um convite para trabalhar em uma fazenda no interior de São Paulo. Na mesma semana tinha sido convidado a ir para Goiás ajudar na construção de Brasília, que na época era mencionada como Novacap. Sua avó, sua única parente, nasceu numa senzala em Minas e já era mocinha quando aconteceu a Abolição. Gostava de contar estórias sobre seu pai, avô de Tião, que havia sido trazido da África, na época que o tráfico de escravos já havia sido proibido. Repetia que ele era um homem altivo, inteligente e, principalmente, muito sábio. Teve apenas ela como filha já que a esposa também falecera no parto. Ele lhe dizia sempre que, quando tivesse um filho, lhe ensinasse a ter dignidade e que nunca se curvasse, mesmo que isso doesse muito. Dizia que a dignidade era o bálsamo da alma e com ela seria possível suportar muitas dores físicas. Tião queria convencer a avó a ir para a fazenda no interior de São Paulo. A vida em Minas não estava fácil e as fazendas de café de São Paulo estavam perdendo muitos trabalhadores que migravam para a colonização do norte do Paraná. A avó de Tião chamava-se Sebastiana da Conceição, devidamente arredondada para vó Tiana. Era quase noite de um janeiro quente e ela estava torrando café, no quintal, numa fogueira ladeada por dois tijolos onde se encaixavam o bico e o cabo do torrador. Agachada e girando o torrador ela segurava um pequeno cachimbo na outra mão. Era o seu pito, onde ela saboreava o seu fumo de corda, picado por ela mesma, pouquinho antes de começar a pitar.. Andava sempre com um pano na cabeça e parecia que, propositadamente,  sua boca não tinha um dente de cima, onde ela encaixava a ponta do cachimbinho. Quando Tião chegou,  ela já percebeu que ele queria lhe falar.

¬          Vó, vamos pra São Paulo?

¬         Fazer o que , menino?

¬         Trabalhar, vó.

¬         E largar tudo aqui?

¬         Tudo o que, vó? Nós não temos nada aqui!

¬         Temos nossa história, nossa gente enterrada aqui.

¬         No Finados a gente vem visitar, vó.

¬          Mas eu nunca saí daqui. Quase sessenta anos morando no mesmo lugar, quase que na mesma casa. Vamos deixar nossa casa?

¬         Mas, ela nem é nossa, vó. A gente nem tem documento dela.

¬         Mas ninguém mais tem também. E o governo não vai querer esse pedaço de terra que ninguém sabe onde fica.

¬         Mas aqui não tem futuro pra mim, vó. E eu não posso deixar a senhora sozinha. Eu tenho que continuar meus estudos, arrumar trabalho que me dê dinheiro pra eu pensar em formar família.

¬         Você já está pensando em mulher, menino?

¬          Não sou mais menino, vó. Não vou servir o exército por excesso de contingente, mas já sou homem.

¬         Não sei não. Pra ser homem é preciso mostrar atitude.

¬         Então, vó, é isso que eu quero fazer. Tomar atitude, mudar nossa vida.

¬         Não sei se me acostumo, não. Como será que é lá? O que será que tem lá? Como será o povo de lá?

¬          Se  a senhora não se acostumar a gente volta, vó. Eu te prometo isso. A gente pede para os nossos vizinhos tomarem conta da casa enquanto isso. A gente faz assim, eu vou primeiro, vejo como é e, ser for bom, eu venho buscar a senhora, tá bom?

¬         Ah, se for assim, tá bom; pode ser.

E o café continuava sendo torrado. Envolto naquele odor forte e agradável, Tião saiu em busca de seu colega para dizer que iria com ele para São Paulo. Aí, ficou sabendo que era para  trabalhar no cafezal, morar numa casa da colônia, e que ganharia um salário pago semanalmente para poder ir na cidade no sábado comprar mantimentos e o que mais quisesse. Seu colega lhe disse que lhe emprestaria o dinheiro das passagens que deveria ser devolvido assim que fosse recebendo. Ficou sabendo também que a fazenda era de italianos e que ficava na região noroeste do estado entre Lins e Getulina, quase as margens do Rio Feio. Embora nunca tivesse visto um cafezal Tião ficou encantado com a possibilidade. Ficar naquela cidade minúscula do sertão mineiro ou ser ajudante de pedreiro na construção de Brasília certamente seria muito pior. Tião voltou para casa, contou para sua avó a decisão de ir e nem dormiu direito naquela noite. Uma semana depois estava em um ônibus indo para uma  cidade vizinha onde pegaria outro ônibus e três ônibus depois estava num ponto sem nada de uma estrada de terra entre duas pequenas cidades do interior de São Paulo aos pés de uma placa que dizia Fazenda São João a 4 km. E aí foi ele e a  família de seu colega, que era ele, a mulher e dois meninos de 8 e 10 anos, com sacos e malas nas costas em direção ao seu futuro. Mas, não era bem assim. Quando chegaram na sede da fazenda já era quase noite e o colega de Tião foi sozinho se apresentar aos novos patrões. Voltou com a chave da casa e a promessa de uma refeição para a família. Ele deveria voltar depois de se acomodar, munido de uma vasilha para pegar sopa e pão. A casa era de madeira, tinha luz elétrica e dois quartos, sala e cozinha. O banheiro era no quintal e o WC  era ao lado, também no quintal, uma espécie de fossa, carinhosamente, chamada de “casinha”, com um buraco no chão. O banheiro era um tipo de balde com um chuveiro que era abastecido com água morna ou fria e depois içado por uma corda sustentada por uma polia. Depois a corda era amarrada e a torneirinha do chuveiro era aberta. O chão era de taboas e a água escorria entre elas para a terra. Depois que todos tomaram banho,  o colega de Tião foi buscar  o jantar, que era uma sopa de macarrão com batata e cenouras e dois pães caseiros.

¬          E a minha casa?

¬         Calma Tião.  Amanhã a gente vê isso.

Mas no dia seguinte Tião ficou sabendo que ele não teria uma casa. Seu colega o convidou apenas para aumentar sua família e ter mais mãos para o trabalho. Disse que sua família era muito pequena para ser contratada e que não se preocupasse pois iria tratá-lo como a um irmão. Tião irritou-se, sentiu-se traído e disse que iria embora. Quando foi alertado para as despesas da viagem ficou mais irritado ainda. Mas não tinha outra saída. Dormiu no chão, naquela noite. A casa não tinha nenhum móvel.  No dia seguinte começaria a trabalhar no cafezal, juntaria o dinheiro necessário e iria embora. No seu primeiro dia nem conversou com seu colega, mas fez tudo o que lhe foi pedido. Tinha que capinar embaixo dos pés de café, um serviço relativamente fácil. Assustou-se com algumas cobras mas nada que ele não conhecesse, Até mesmo uma cobra dormideira enrolada nos galhos do cafeeiro tocou-lhe o braço mas ao ver que uma menina a pegou nas mãos e ficou brincando com ela não pode conter um sorriso. Assim foi até chegar sábado quando finalmente iria receber seu dinheiro. Mas, não recebeu nada. O pagamento era feito por família  e foi seu colega quem recebeu. Este apenas lhe disse quanto era sua parte, que era muito pequena, mas mesmo assim seria abatida das suas despesas. Tião nem quis ir na carretinha do trator para a cidade. A colônia, que era formada por uma fileira de oito casas, ficou vazia, naquele final de manhã de sábado. Já era março de 1957 e as chuvas já começavam a rarear, mas deixando ainda o tempo bem úmido Aí sentou-se embaixo de uma enorme mangueira Bourbon e sentiu uma imensa vontade de chorar. Não tinha feito nenhuma amizade ainda já que pensava em ir embora, além do que estava muito chateado para ficar conversando. Lembrou de Minas e de Vó Tiana, com seu jeito manso de falar e aquelas palavras sempre repletas de paz. Sentiu o gosto da broa e da enorme quantidade de erva doce que ela colocava na receita. Lembrou de sua última doma que lhe causou duas quedas feias. Nunca conseguira esquecer que foi numa queda dessas que seu pai quebrara o pescoço. Como era muito criança lembrava-se pouco de seu pai mesmo porque ele vivia pelas fazendas de Minas e da Bahia formando tropas. O que ele sabia dele era o que sua avó lhe contara e uma das coisas que ele se lembrava é que ela sempre o comparava ao seu pai quando ficava angustiado do jeito que estava agora. Quieto, olhando para um vazio distante, parecia procurar um horizonte infinito. Parecia ver grandes, imensos campos, com o sol deitando suas cores em árvores disformes e animais fugazes. Sentia seu espírito vagar por savanas que ele nunca tinha visto com o peito estufado por um orgulho soberano, imperial. No fim, saía fortalecido daquela estranha letargia. Quase sempre era assim. Agora, despertou pelo farfalhar das folhas caídas da mangueira pisoteada pelas patas de cavalos. Levantou o olhar e viu seu novo patrão, rosto avermelhado, chapéu de feltro marrom, segurando um rebenque no punho da mão direita que balançou quando tocou a aba do chapéu num cumprimento.

¬          O que faz aqui, rapaz?

Tião levantou-se lentamente e explicou, educadamente sua estória, palavra por palavra. Só quando terminou é que percebeu que o patrão não estava sozinho; haviam mais dois cavalos  e sobre eles,  seu casal de filhos adolescentes.

¬          Tenho um potro “inteiro”  na baia. Se você domar o animal  para mim, eu te arrumo uma casa para você trazer a tua nona.

¬          Faço isso já!

¬         Então, vamos lá.

E pela tarde inteira Tião montou o potro; bravo, violento mesmo. Mas Tião sempre achava que amansar burro chucro era bem mais difícil do que aquele cavalo que ele nem conhecia a raça. Ficou sabendo depois que era mestiço de andaluz, comprado de um espanhol da região. Quando, no começo da noite, o colega de Tião  voltou da cidade, já o encontrou diferente, mais calmo. E no domingo de  manhã o filho do patrão veio chamar Tião, pois seu pai queria lhe falar.

¬          Você  é mesmo bom. Quero lhe propor um acordo. Tenho um irmão que cria cavalos para montaria, num sitio aqui perto. Eu te dou a casa e um dinheiro para amansar os potros dele. Você vai ter que morar aqui porque lá não tem colônia. Interessa?

¬         Claro. Quando começo?

¬         Vou te levar lá. Fernando, leve Tião até as cocheiras. Arreie dois cavalos.  Sele o Trovão pra mim. Para ele, empreste o teu baio.

¬         Tá bem, pai.

A vida de Tião começou a mudar a partir daí. Sua educação, sua coragem e seu olhar firme, apesar de sua pouca idade, impunham um respeito incontestável.  Como falava baixo e  respeitava a todos começou a ganhar fama e três meses depois já fazia serviço de doma para outros sitiantes, com a devida autorização de seu Francesco Quaglioto, o patrão. Com isso guardou algum dinheiro e logo em seguida comprou seu próprio animal. Sua casa era nova, com madeira recém cortada e um fogão a lenha do jeito que ele pediu.  Ajudou até a puxar os fios para a instalação elétrica  Finalmente poderia ir buscar sua avó.  Quinze dias depois estava arrumando o colchão de crina que havia comprado especialmente para a avó, já que ela vivia reclamando do seu velho colchão de palha de milho, aliás, feito por ela mesma. Vó Tiana gostou muito da casa e só reclamava quando ela estalava, isso em virtude da madeira estar secando. Ela achava que eram espíritos. Tião pagou o empréstimo feito pelo seu colega peão e passou a cumprimentá-lo apenas formalmente. Não se cruzavam mais já que a atividade de ambos era distinta, mas a mulher de seu colega passou a ser a grande companheira de sua avó, já que as duas eram da mesma cidade. Tião foi alfabetizado em casa pela avó e  com 19 anos não queria mais ir no grupo escolar. Mesmo assim foi para Lins e procurou saber nas escolas  como poderia fazer para continuar os estudos. Conseguiu uma espécie de curso intensivo, chamado Madureza, onde estudava em casa e apenas fazia as provas. Assim conseguiu um diploma do ensino primário e festejou com os peões da fazenda que comemoravam o título de campeão mundial de futebol na Suécia. Agora queria fazer o ginasial onde a primeira serie tinha alunos de 11 anos. Matriculou-se numa escola em Getulina  e cavalgava 12 km  todo dia de manhã para freqüentar as aulas. A principio envergonhava-se, mas depois todos passaram a respeitá-lo pela sua dedicação e pela postura. Tinha um talento especial para escrever e era solicitado pelos colegas a ajudá-los quando a tarefa de português era redação. Passou a praticar esportes nas aulas de educação física e logicamente levava muita vantagem em virtude de sua força e principalmente,  de sua idade. Parou de participar das equipes de vôlei, basquete e handebol. Achava injusto. Um dia foi surpreendido pelo Sr. Francesco que praticamente o obrigou a mudar de escola. Seus dois filhos estudavam em Lins em um colégio particular muito conceituado  e Fernando, seu filho, estava sendo ameaçado por um grupo que tinha tentado se aproximar de Mariana, sua filha. A revista  O Cruzeiro trazia reportagens de grupos cariocas de jovens classe média alta que praticavam a curra ou estupro em garotas na escola. Seu Francesco temia que isso acontecesse em Lins com sua filha. Tião estava na terceira serie, com 22 anos,  mesma serie de Fernando, com treze anos. Mariana estava na segunda serie, já que só tinha 12 anos. Tião seria uma espécie de segurança dos dois. Tião nem se importou com a diferença entre escola pública e particular, já que ele nem conhecia essa diferença. Só sabia que na particular estudava quem tinha dinheiro. Seu olhar não permitia brincadeiras de ninguém  e parecia ter a idade de alguns professores. Com isso, Tião teve que aprender a dirigir o Studbaker da família,  tendo o Sr. Francesco como instrutor. Um mês depois arriscaram-se,  os quatro, tendo Tião ao volante,  a enfrentar os vinte quilômetros  de terra até Lins. Uma semana depois Tião já fazia o trajeto sozinho com os dois. Na escola Tião não teve nenhum problema inicialmente. Devorava os livros e antecipava-se as aulas. Era muito curioso. Quando o professor começava a matéria,  ele já tinha perguntas inteligentes  referentes a trechos que ele não tinha compreendido.  Eram pouquíssimos negros naquela escola. Eram quatrocentos alunos brancos e três alunos negros. Diziam que eram dois mulatos e um negro; ele. Mas isso não o incomodava.  E Fernando vivia contando estórias a seu respeito, de como ele era forte e como montava touro bravo e amansava burro chucro.  As ameaças a Fernando e a Mariana acabaram e um dia Tião ganhou um concurso interno de redação. Duas professoras de português estavam criando o jornal da escola e o convidaram a participar. Tião disse que só participaria se Fernando e Mariana também participassem. Era uma forma de ficarem juntos. Na fazenda Tião continuava a cuidar das cocheiras e domar burros e cavalos quando precisassem. A avó estava bem e passou a ser a benzedeira do lugar. Juntou as mulheres e fazia o Terço Cantado. Sua calma e sua educação deixavam as pessoas muito confiantes em suas rezas.  Sua casa passou a ser freqüentada até por colonos de outras fazendas. Tião achava isso bom, porque não precisaria se preocupar em deixar Vó Tiana sozinha. Ela nunca ficava sozinha, e além disso Tião passou a melhorar a casa com móveis novos e seu primeiro jogo de sofá. Ainda lhe deu de presente um pequeno rádio transistor a pilha para que ela pudesse acompanhar sua rádio novela em qualquer lugar.Vó Tiana, que nunca tivera um rádio em toda a sua vida, não o largava em nenhum instante. Tião comprava caixas e caixas de  pilhas, já que ela fazia questão de ouvir o rádio andando. Gostava de ouvir as rádios de Lins, que tocavam desde valsas de Straus a Caruso e Yma Sumac, Mas, pelas ondas curtas ouvia também emissoras de São Paulo, e principalmente a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Ouvia tanto que até Tião, que nunca se interessara por rádio passou a ouvir a programação junto com ela. Gostava muito de um cantor mexicano chamado Miguel Aceves Mejia. Quando Tião estava por perto e o tal cantor soltava a voz, vó Tiana corria a passar o rádio para Tião ouvir mais de perto.   No ano seguinte a seleção brasileira de futebol foi novamente campeã no Chile e Tião e Fernando se formaram.  Tião fez questão de levar sua avó ao baile de formatura. Ela nunca tinha ido a um baile em toda a sua vida de quase setenta anos. Tião procurou o seu patrão e disse que voltaria a escola pública para fazer o colegial, que não precisava que gastasse mais com ele,  pois Fernando já não precisava mais de proteção. O Sr. Francesco nem deixou que terminasse de falar e praticamente exigiu que continuasse naquela famosa escola particular. Dizia que Fernando melhorou muito com a sua companhia e que Mariana se sentia muito protegida com ele por perto. Mesmo dizendo que só estava trabalhando meio dia, na parte da tarde, Tião continuou ganhando até mais que no começo. Pode começar a fazer uma poupança que, em principio, guardava em casa. Depois procurou um banco e abriu uma conta. Lá sentiu que era pouco o que tinha. Mas era seu e ia aumentar. O jornalzinho da escola era um sucesso, voltado para as coisas da juventude e falando do rock’n  roll de Elvis Presley e Celi Campello. Mariana , agora também no colegial,  gostava de escrever sobre as coisas da estrada de ferro Noroeste do Brasil que ajudava muito na economia da cidade, inclusive transportando o café da fazenda de seu pai. Visitava a estação ferroviária com freqüência e numa dessas visitas pode ver grande movimentação de soldados do exercito. Aí ficou sabendo de uma revolução que havia acontecido. Na época ficou conhecida como “Revolução de Rádio” porque ninguém sabia de nada, só pelo rádio. Final de 1964 e o Sr. Francesco sofre um derrame cerebral ao discutir com o guarda livros da fazenda. Esse contabilista prestava serviço a várias fazendas da região e era muito conceituado. Mas um dia o Sr. Francesco quis conferir saca por saca de café e venda por venda e aí pode perceber que estava sendo roubado.  Uma discussão violenta e uma veia estourou. Tião colocou o patrão no carro e junto com dona Antonella , sua patroa correu para o hospital em Lins. Isso salvou sua vida mas o colocou em uma cadeira de rodas para sempre. Embora Afonso, o irmão do Sr. Francesco procurasse ajudar, seus negócios o impediam de ficar na fazenda. Por isso Dona Antonella  a toda hora chamava Tião para resolver os mais variados problemas. Inclusive Tião foi a caça do contador e com ajuda de um advogado  conseguiu  recuperar parte do dinheiro desviado. Tião parou de domar e colocou outro colono para tomar conta das cocheiras que tinha pelo menos uma dúzia de bons cavalos. Um dia Tião pegou o Sr. Francesco no colo e o colocou sobre Trovão, simplesmente. O animal permaneceu imóvel,  mas foi o suficiente para o Sr Francesco esboçar um leve sorriso.  E assim, todo dia de manhã, Tião repetia o ritual;  e por alguns minutos o Sr. Francesco parecia feliz. Dona Antonella insistia para Tião concluir o colegial, afinal era o último ano, mas este achava que era hora de devolver o que o Sr. Francesco fizera por ele. Até um professor da instituição onde eles estudavam veio visitar a fazenda tentando fazer com que Tião voltasse, mas foi em vão, pararia mesmo ao concluir o segundo ano do colegial. No final do ano de 65, na festa de formatura de Fernando, o Sr. Francesco teve uma parada cardíaca. Mesmo estando a alguns quarteirões do hospital em Lins e chegando em minutos, nada adiantou.  A família nem voltou para a fazenda. O velório foi em Lins e ali ele foi enterrado. A fazenda ficou de luto por oito dias. Nada faziam. Os colonos se preocuparam e procuraram Tião. Na sede da fazenda,dona Antonella, Fernando e Mariana não queriam falar com ninguém. Tião pegou o carro e foi até o sitio do Sr Afonso Quagliotto , irmão do Sr. Francesco buscar uma orientação. Este deu um dinheiro para Tião pagar os colonos e pedir que todos voltassem ao trabalho. O café precisava terminar de ser secado e ensacado. A tulha estava cheia.  Era final de ano, tempo de chuvas. Tião fez isso e, aos 26 anos, passou a ser mais respeitado pelos colonos. Começou a ser chamado de capataz e até mesmo de administrador da fazenda. Dona Antonella dependia dele para tudo e isso tomava todo o seu tempo, afastando-o de sua avó. E ele sentia muita falta dela, principalmente em momentos como esses. Na frente de sua casa, que era a última da fileira de casas da colônia,  em relação a casa de dona Antonella, ele construiu um banco de madeira usando dois troncos de árvore e uma taboa. Sua avó encheu a frente da casa com plantas de todo tipo, principalmente as que ela usava para suas rezas. Isso dava um aroma gostoso a quem se sentava ali, principalmente  no finalzinho da tarde. E numa dessas tardes Tião chegou e nem entrou em casa; sentou-se ali e ficou. Como era a última casa ninguém passava por ali e as crianças da colônia ficavam num campinho de futebol a uns 500 metros dali, jogando bola ou brincando de qualquer outra coisa.  De dentro de sua  casa vinha um agradável cheiro de sopa de feijão com macarrão. Dali viu sua avó jogando umas cascas de legumes para as galinhas, mas não a chamou. Já era noite quando sua avó percebeu sua presença. Ela saiu querendo ver se ele chegava, mas ele já estava ali fazia um bom tempo.

¬          Uai, menino, pensando aí?

¬         É isso, vó.  

¬         Tem tempo que você está aí?

¬         Era sol ainda, vó.

¬         Nem tomou banho. A janta está pronta.

¬         Tenho fome não.

¬          Ô, menino, o  que te azucrina as idéias?

¬         Essa vida, vó. Senta aqui juntinho.

¬         Então, fale.

¬         Faço tudo direitinho, vó. Sou homem pra caramba, não minto, sou justo, comecei a juntar dinheiro. E porque esse aperto no meu peito? É direto assim.

¬          Sempre tive medo de você ser como seu pai. Ele nunca se conformou com a viuvez, mas nem era só por isso. Ele sumia no mundo querendo achar um pouco de paz. Um dia ele me disse isso. Ele também ficava num canto, pensando, olhar perdido. Que nem você fica agora.

¬         Essa tristeza é de nascença, então?

¬          Como pode ser? Como alguém pode nascer triste? Todo dia a gente ganha um dia. Quando benzo digo pra mãe que a benção maior é viver. E viver sem o mal; não enganar ninguém e ensinar o filho a viver direito. Rir das coisas, entende? Mas as pessoas vivem só as coisas ruins, ficam curtindo a mágoa, lembrando do mal feito dos outros. E como você pode ser triste? Se você só faz as coisas certas?

¬          As vezes parece que eu não existo. Só sirvo pra trabalhar, ajudar os outros. A senhora lembra da minha formatura?  A senhora não sabe, mas quase eu não vou. O clube em Lins não queria que eu levasse a senhora por causa da minha cor. Aí o patrão brigou e conseguiu o convite pra senhora. Quando o Fernando e a Mariana iam no clube eu tinha que esperar do lado de fora. O patrão disse que ia me colocar como sócio, mas o clube disse que não podia. As pessoas me aceitam mas não me querem como amigo. Como eu posso rir das coisas, vó?

¬          É que nós somos de outras terras, menino. Viemos da África, temos outros costumes, outro jeito de pensar.

¬         Não acho não, vó! Eu nasci aqui, em Minas Gerais. Sou brasileiro como o Fernando,  que o pai veio da Itália. Não é igual, vó? E o meu pai também nasceu aqui. Então sou mais brasileiro que o Fernando, se é que alguém pode ser mais brasileiro que o outro.

¬          É que parecemos diferentes deles, menino.

¬          Ah, não, vó! Diferente é aquela japonesada da Primeira Aliança, ali perto de Guaimbê. Eles nem se misturam com a gente. Na escola é difícil fazer amizade com eles.

¬          É por causa da língua japonesa. É difícil pra eles.

¬         Quando eu cheguei aqui, todo mundo percebia que eu era mineiro, por causa do jeito de falar, mas ninguém recusava uma conversa.

¬         Mas não compare assim. O que é que te incomoda de verdade?

¬         Quer saber mesmo, vó? É essa solidão. Só saio com mulher da vida,  pra poder ter companhia. E tenho que ir pra Lins,  naquelas casas lá. Na escola não consegui nenhuma namorada, nem feia nem gorda, nem  zarolha, nada. Já vou fazer 27 anos, vó! Todo mundo diz que converso bem, que sou educado, respeitador.

¬          Tudo tem sua hora, Tião. Tenha paciência e continue sendo do jeitinho que você é. Eu pensei que seu problema de tristeza fosse igual de seu pai. Mas não é não

¬         Não?

¬         Teu pai era um peixe fora d’água. Sabe que ele dizia que tinha saudade da Guiné?

¬         Nós viemos da Guiné, vó?

¬          Daquela região. Mas como seu pai podia ter saudade de um lugar que ele nem conhecia?  Se nunca tinha ido lá?

¬         Acho que isso eu aprendi na escola, vó, numa aula de biologia. É memória genética.

¬         O que é isso, menino?

¬          Explico. Depois eu fui à biblioteca do colégio pesquisar com mais dois colegas. Conforme a gente vai vivendo, os fatos vão ficando gravados em nossa memória e passam de pai para filho. Foi um padre trabalhando com ervilhas que descobriu isso. Ele provou direitinho, vó. Um pouco do que a gente é,  passa para quem vem. Essas lembranças também ficam e passam para os filhos. Deve ter sido isso.

¬         Ah, muito complicado. Vai tomar seu banho, já é tarde. A sopa está secando, de tanto tempo que tá pronta.

Nos meses seguintes pouca coisa mudou. A não ser a presença de Tio Afonso que foi rareando cada vez mais até se tornar ausência. Dona Antonella não tinha jeito para o comercio, nem mesmo para administrar a cultura do café, onde o seu conhecimento era bastante básico.  Fernando entrou na Faculdade de Odontologia e passava o dia inteiro em Lins. E nos finais de semana também ficava em Lins. Não queria saber da fazenda. Mariana não quis continuar os estudos, preferiu  ser dona de casa, fazendo companhia para a mãe. Mesmo com  o seu tio Afonso e Tião falando muito para que ela freqüentasse uma faculdade fez com que ela pensasse nisso. Na verdade, ela tinha o apoio da mãe para continuar em casa. Além de caseira, Mariana, nos  seus dezoito anos, era muito festeira. Todo mês tinha uma festa na fazenda e pelo menos um bailinho na tulha. E era Mariana quem organizava tudo.  Vinha gente de todo lugar. Entre seus colonos tinha violeiro, sanfoneiro, cantor e todos gostavam muito de dançar. Na colônia moravam aproximadamente 50 pessoas, entre adultos e crianças. Em dia de festa esse número chegava a mais de quinhentas pessoas. Vó Tiana era quem puxava o terço cantado e Tião era quem organizava os torneios de futebol cinco ou seis vezes  por ano. Esses torneios foram criados pelo Sr. Francesco e Tião deu seqüencia. E nesses quase dez anos nunca teve nenhum problema mais grave de violência.  Eram sempre dez equipes de Lins e Getulina e das fazendas vizinhas em busca de um simples troféu e muitas horas de brincadeiras e gargalhadas. Tião acabou montando um pequeno bar perto do campo e aumentando o seu “pé de meia”. Vendia cervejas, refrigerantes, doces e principalmente pedaços do pão de torresmo feito pela vó Tiana, aliás o único salgado do bar;.E Mariana era quem o ajudava, inclusive servindo no pequeno balcão. Mariana era baixinha, , estava engordando um pouco e gostava muito de ficar perto de Tião. Gostava tanto que acabaram namorando e se casando dois anos depois. Foi uma das maiores festas da  região e uma união nem um pouco contestada. Todos achavam que era o que tinha que acontecer. Só Fernando que sentiu um pouco de ciúmes, mais  tarde explicado quando revelou sua opção pela homossexualidade. E assim que se formou foi clinicar em São Sebastião, uma cidade da baixada santista em sociedade com um colega. Dona Antonella, então fez questão de dar o seu quarto para Mariana e Tião e ir para o quarto de Fernando que era maior que o de Mariana; isso contra a vontade de Tião,  mas com a imensa concordância de Mariana. Já era final de tarde de um novembro de 1968 quando Tião e Mariana, brincando  com Marciano, o primeiro filho já com quase um ano, na área da casa, viram um carro chegar. Era Fernando que, apesar da barba,  foi rapidamente reconhecido por Mariana que o saudou com um grito. Dona Antonella veio correndo da cozinha com a mamadeira ainda sem tampa e entregou a Mariana. Desceu os quatro degraus da escada de frente da casa num salto só e correu para abraçar Fernando. Aí percebeu que haviam mais três pessoas, dois rapazes e uma moça e que estavam com uma aparência suja, cansada, preocupada. Convidados a entrar, pediram por água e comida. Sentados os quatro na mesa da cozinha e ladeados por Tião Mariana e dona Antonella comeram como se fosse a última refeição. Dona Antonella  começou a perceber que não era uma simples visita quando viu Fernando chorando.

¬          O que foi, meu filho? Porque o choro?

¬         Nada não, mãe. É de emoção por estar em casa. A gente viajou muito pra chegar aqui.

¬          E porque seus amigos estão assim tão  sérios? Vocês não estão contentes, por estarem aqui?

¬         Claro, senhora, disse Regina , a moça. A gente está assim porque estamos muito cansados.

¬         É, mãe, daqui a pouco vamos estar melhor

¬         É que faz tanto tempo que a gente não se vê que esperava que você iria  ficar mais contente. Mas, muito bem, se é cansaço, então o melhor é vocês tomarem um bom banho e caírem na cama.  “Domani”  a gente se fala, “va bene”?

Depois de alguns  instantes e muita conversa entre Tião e Dona Antonella decidiram trazer Vó Tiana para dormir no antigo quarto de Mariana e os quatro iam dormir na casa de Vó Tiana. Lá tinha mais espaço, com dois sofás e uma cama. Dona Antonella queria que Fernando dormisse com ela, mas ele preferiu ficar com os amigos. Depois de muita arrumação por Mariana , vó Tiana e dona Antonella, a casa ficou em condições e foram todos dormir sob o suave aroma da flor de beladona e a cabeça cheia de pensamentos difusos. Tião, sempre muito curioso,  estava sempre ligado a todos os acontecimentos , tanto locais como nacionais. Trocou algumas frases com Mariana antes que ela “pegasse” no sono. Por isso ela não entendeu  nada quando ele falou de alguns cartazes de “Procurados”  que ele tinha visto nas paredes do banco onde ele movimentava sua conta.

Na manhã seguinte, na hora do café, eles ainda continuavam dormindo. Dona Antonella demonstrava não ter dormido bem.  Estava silenciosa e Tião começou a brincar com ela, usando Marciano como motivação.  Mariana não percebeu nada e tomava seu café tranquilamente quando vó Tiana sentou-se a mesa.

¬          Os meninos ainda não acordaram?

¬         Ainda não, dona Tiana. Eu quero tanto conversar com o  meu Fernando.

¬          A senhora quer que vá chamá-los,  mama? (Era assim que Tião passou a chamar Dona Antonella depois do casamento, copiando a fala de Mariana). Eu acho que pra eles é cedo ainda, mas se a senhora quiser…

¬         Cedo? Já passa das sete…

¬         Na cidade o horário é outro, mama

¬         Nem perguntei quanto tempo eles vão ficar, se eles vieram pra cá ou se estão de passagem. Não deu para conversar ontem.

¬          O jeito é deixar a mesa do café pronta. Na hora que eles acordarem certamente virão aqui. Vou ter que sair. Acho que vou ter que arrancar mais pés de café, viu mama,  o governo não vai dar financiamento para o café nessa região. Eles querem mesmo que a gente mude a cultura.

¬          Mas mudar pra qual cultura? Tá tudo sem preço! O amendoim deu certo?

¬         Comparando com o café de hoje até que deu. O problema são esses sujeitos que vem comprar a safra aqui na roça. Eles estão pondo o preço que eles querem. Não tem preço mínimo.

¬         Per la Madona! E o que você está fazendo?

¬          Estou indo vender fora,  na indústria, lá em Bauru,  na Sanbra. Por isso pegou um preço melhor. Agora não sei se aumento o amendoim ou começo o algodão. O milho deu bem. Estou vendendo direto para duas granjas de Lins. Mas os colonos estão querendo ir pra cidade. Vai faltar gente pra colheita.

¬         Mas eu confio em você, meu filho. Confio que você vai arrumar um jeito de tocar nossas terras da melhor maneira possível.

¬         Ah, pode ficar certa que sim, mama!

Mariana, que estava dando banho de sol em Marciano, na área da casa, gritou lá de fora:

¬          Mama, tem um dos rapazes sentado lá na beira do campo. Não é o Fernando.

Dona Antonella, saiu, esfregando as mãos no avental e viu, lá ao longe, a mais ou menos mil metros,  um dos amigos de Fernando, sentado na grama. Sem nada falar com os outros foi andando até ele. Ficou,  então, conhecendo Antenor, também descendente de italianos, da região de Piracicaba, também dentista e conhecido de Fernando por serem do mesmo partido político.

¬          Partido político?  Mas Fernando nunca gostou de política!

¬         Mas agora ele gosta. E participa das atividades do partido.

¬         E aquela mocinha? Parece tão novinha. É sua irmã?

¬         Não. È minha namorada.

¬         Namorada? E os pais dela deixam ela viajar com o namorado? Mas, hoje é tudo tão moderno, não é mesmo?

¬          Ah, sim.

¬         E ela também é dentista?

¬         Não; ela é estudante de Letras.

¬         Você está melhor hoje, com a barba feita.

¬         Obrigado. E os outros também estão fazendo a barba. Logo estarão aqui.

¬          Mas se já estão acordados eu posso ir lá, não é mesmo? Quero ver meu filho Fernando.

¬         É que eles já estão mesmo vindo. Mas se a senhora quiser ir lá, posso até acompanhá-la.

¬         Olha eles lá, já estão vindo. Agora sim, é o meu menino, sem aquela barba horrível.

A casa de Vó Tiana ficava a mais 500 metros a frente do campo e ela não esperou. Foi ao encontro de Fernando e abraçados caminharam até a mesa do café. Falaram sobre amenidades. Tomaram leite e comeram muito queijo com pão caseiro. Vó Tiana passou outro café e continuaram conversando. O companheiro de Fernando era Zé Lucio, um rapaz magrinho,  de cabelos longos que manteve o bigode bem aparado. Zé Lucio falava com muita fluidez e era muito agradável, muito diferente de Fernando, mais introspectivo mas não menos agradável. Apenas era mais quieto, mas continuava muito educado. Fernando havia prometido a eles  uma cavalgada e, sem Tião para providenciar as  montarias, foi ele mesmo encilhar os animais. Passearam pela fazenda e depois foram até a estrada que estava terminando de ser asfaltada e estava sendo preparada para chegar até Marilia.

¬          Vocês repararam?  Tem telefone na fazenda.

¬         Claro. O Tião providenciou duas linhas. Uma, ele colocou na casa da avó dele.

¬          E esse Tião? Você não falou dele.

¬         Como não? Comentei que era meu cunhado.

¬         Mas você não falou que era um negro.

¬         Precisava?

¬         Na verdade, não. Aliás, foram as diferenças que nos uniu.

¬         Vamos voltar? Estou com fome.

¬         Está comendo, heim,  Regininha?

¬         É o ar do campo..

¬          Tá bom… Vamos lá, no galope!

¬         Não! Não corre, tenho medo de cair.

¬         Pelo menos,  vamos apertar o passo.

O cheiro de assado estava forte quando se aproximaram da sede da fazenda. Como a casa da Vó Tiana era longe da sede resolveram ir direto, não resistindo ao cheiro que parecia ter aumentado o apetite. Vó Tiana estava assando uma leitoa e ia fazê-la a pururuca. Mariana estava lavando as verduras para a salada  e dona Antonella estava terminando de dar o ponto no molho do talharine.Sentaram-se a mesa no mesmo instante que Tião chegava para o almoço.  Comeram elogiando o tempo todo e uma hora após  estavam na varanda, nas redes e nas espriguiçadeiras.  Era começo de uma tarde quente de verão.  Tião já ia voltar ao trabalho mas uma pergunta de dona Antonella o fez ficar para escutar a resposta.

¬          Que negócio é esse de partido político, meu filho?

¬         Como a senhora está sabendo, mama?

¬         Seu amigo Antenor me contou.

¬         Foi até bom, mama. É por isso que nos estamos aqui. Nosso partido é pela legalidade, mama. O governo atual  deu um golpe na democracia e nos somos contra.

¬         Golpe? Como assim?

¬          Eu imaginei que a senhora não soubesse de nada, mama. Nem soubesse o que aconteceu em março de 64, quando, também eu,  ainda era um alienado.

¬         Alienado? Você era um alienado? O que é um alienado? O que você está dizendo?

¬          Estou dizendo que eu não era um cidadão brasileiro, consciente de meus direitos e deveres. Eu era apenas mais um que só vivia para trabalhar e pagar meus impostos e nem me incomodar com o que faziam os governantes.

¬         Mas, o que aconteceu? Porque você está dizendo isso? Que golpe?

¬          A senhora lembra do Jânio, que a senhora gostava tanto?

¬         Claro, o da vassourinha.

¬         Esse mesmo, mama. Esse cara quis aplicar um “golpe branco”,  renunciando para conseguir mais poderes. Mas o congresso nacional aceitou a renuncia dele e deu posse ao vice que é o João Goulart.

¬         Ah, o Jango?

¬          Esse aí. Mas o Jango quis ser muito popular de uma vez  só e se juntou ao um monte de sindicatos. Era uma opção de governo. Pode-se concordar ou não, mas nunca impedi-lo de tomar posse.

¬         Impediram? Quem impediu?

¬         O Adhemar e os militares

¬         O Adhemar de Barros? Nosso governador?

¬         Ele mesmo. E o Magalhães, lá de Minas Gerais.

¬          Mas eles não estavam contra os comunistas? Não fizeram aquela marcha da família lá em São Paulo? Ou foi no Rio?  Na época, eu escutei na Rádio Nacional, no repórter Esso.  Mas o que isso tem a ver com vocês?

¬         Nosso partido luta contra esse golpe, mama.

¬          Como assim, luta!?

¬         Nosso partido foi colocado na ilegalidade. Por eles, o nosso partido não pode existir. Então a gente é obrigado a agir na clandestinidade..

¬         Eu não estou entendendo nada do que você está falando, meu filho. Porque você é obrigado a agir na clandestinidade?  Aliás, o que é “agir na clandestinidade”?

¬         Eles nos chamam de “terroristas”,  dona Antonella.

¬         Regina!!!

¬         Também de subversivos. E somos procurados pela policia!

¬         Regina, pare com isso!!

¬          E somos do Partido Comunista

¬         É verdade isso, Fernando?

¬         Sim, é verdade, mama.

¬         Ah, Dio mio!!

¬         Vocês estão se escondendo aqui, então?

¬         Sim, Tião. É isso. Viemos de São Paulo, devagarzinho, parando em várias cidades para despistar, Saímos de lá há três dias.

¬          Mas, comunista, meu filho? Você era tão católico antes. O que foi que te fez mudar tanto?

¬         Eu continuo católico, mama. Aliás, a igreja tem ajudado muito a gente.

¬         Eu não acredito que a igreja católica tem ajudado os comunistas

¬          Tem ajudado e muito. As comunidades eclesiais de base são núcleos de jovens que também são contra os militares que, na verdade estão implantando uma ditadura no Brasil. Todos os partidos políticos foram extintos e só existem dois lados agora. Quem é a favor e quem é contra o governo. A Aliança Renovadora Nacional ou Arena e o Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, que acredita que pode fazer alguma coisa.  Os militares precisavam de uma oposição oficial para não parecer uma ditadura aos estrangeiros.  Mas existem os brasileiros de verdade que não aceitam uma imposição dessa e nos estamos entre eles.

¬         Mas você tem que pensar na tua mama, já sofro tanto pela tua ausência e agora vou sofrer também com a tua presença?

¬          Porque com a minha presença?

¬         Eu respondo, mama. É que é óbvio que virão te procurar aqui. A essa hora os colonos que forem a cidade vão comentar que você veio e trouxe  três amigos.  Em Lins tem quartel do exército, basta um rádio entre eles e logo estarão aqui.

¬         Mas, pra isso, Tião, terão que identificar a gente.

¬         E você acha que eles não tem a tua ficha? Só o fato de vocês terem parado com suas atividades normais é motivo suficiente para terem seus nomes anotados pela policia comum. Vocês sabem que hoje é assim.

¬         Eu falei isso, lembra,  Antenor?

¬          Eu também falei. Tenho certeza que  fui seguida várias vezes.

¬         E agora, será que não foram seguidos?

¬         Tomamos muitos cuidados. Acho que não fomos seguidos  porque não vimos ninguém até agora. Fizemos uma escala de observação da retaguarda. Não deixamos de olhar para trás e para os lados por nenhum segundo, nesses três dias.

¬         Isso é vida, meu filho?

¬         Eu tinha que fazer uma escolha, mama. Aceitar ou lutar. Preferi lutar. 

¬          Lutar contra o exercito inteiro? Nem se você tivesse outro exercito inteiro é garantia de vitória. Porque  um grupo de moços acha que pode vencer o exercito?

¬          Porque a razão é nossa.

¬         Razão? Lembra de La Fontaine? Da fábula do lobo e da ovelha?

¬         Mas se você acha que está certo,  e desiste,  você não merece nada.  Eu lembro quando você foi atrás daquele contador que roubou o papai. Você recuperou o dinheiro porque você estava certo, lembra?

¬         Lembro

¬         Nos achamos que estamos certos porque acreditamos que nenhum grupo armado pode impor sua vontade ao nosso povo. Lutamos pela democracia, pela igualdade de direitos. Direitos iguais comuns, por isso somos comunistas, entendeu, mama?

¬          Eu não entendo porque vocês estão fugindo. O que vocês fizeram de errado? Que crime vocês cometeram? Vocês mataram alguém? Roubaram?

¬          Não, dona Antonella. A gente tem feito reuniões onde a gente discute a atual situação. É isso que é proibido.

¬         Mas, só isso? Não acredito!

¬         Alguns de nosso grupo estão na luta armada, querem organizar grupos de guerrilha urbana, Nós queremos a mobilização, queremos falar aos operários nas fábricas para que boicotem a produção para protestar por esse estado de coisas.  Trabalhamos com a inteligência, queremos mostrar que ninguém pode mandar em ninguém sem ter autorização para isso. Autorização das urnas.

¬         Não seria mais fácil vocês se inscreverem no MDB?

¬         Isso seria oficializar o golpe. Dar um aval aos militares e dizer que eles estão certos.

¬         Mas antes de 64 a política estava uma bagunça. Tinha partido pra dar e vender, literalmente.

¬         Mas isso é o que conta, Tião. Em um país heterogêneo como o Brasil é natural que existam muitas correntes de pensamento, que são, então, representadas por partidos políticos.

¬          Faz sentido, Mas como vocês são de um partido que não existe mais?

¬         Não existe pra eles

¬         E como você entrou nessa?

¬         Fomos, Zé Lucio e eu, num congresso de odontologia em Ilhabela e conhecemos Antenor. Aí fomos tomar um chopp e acabamos tomando uma aula de cidadania. Hoje ele é o comandante da nossa célula.

¬         “Célula”?

¬          É. O partido foi dividido em grupos chamados células e cada célula tem o seu “aparelho”.

¬          Aparelho?

¬         Isso. É o  lugar onde a gente se reúne.

¬         E vocês querem  fazer da fazenda o seu “aparelho”?

¬         Não, Tião. O motivo da nossa vinda é outro. Viemos buscar dinheiro.

¬         Como é?

¬          É isso. Vim buscar a minha parte na fazenda. Cada membro do partido tem que colaborar para as nossas atividades. Ainda mais agora que vamos mobilizar os estudantes e vamos fazer enormes passeatas no centro de São Paulo.

¬         Quer dizer que é por isso que vocês são chamados de “terroristas”?

¬         Por enquanto, Tião. Futuramente teremos mais ação.

¬         Que é isso, Antenor?

¬         É isso mesmo, Zé. Já falamos sobre isso.

¬         Sim, já falamos. Mas não concordamos.

¬          Agora não é hora nem lugar, companheiros. Mas voltando ao assunto do dinheiro..

¬          Não temos dinheiro em casa. E o que tem no banco é pra tocar a fazenda. A situação tá difícil

¬         Então, dê um jeito. Fale aí com sua mãe, Fernando, temos pouco tempo, você sabe disso.

¬         Calma,  Antenor. É isso, mama. Você pode me ajudar?

¬          Ajudar você a ir embora? A fugir da policia? A lutar contra um exercito inteiro? Dio Mio, você não acha que está pedindo demais? E tanta coisa agora na minha cabeça. Mas você tem razão numa coisa; você tem direitos aqui. Não é Tião?

¬         Claro. Vou providenciar o que for possível. Com licença.

No começo da noite Tião chegou de Lins e entregou o correspondente a dois   mil dólares a Fernando. Os quatro ficaram mais dois dias na  fazenda e dona Antonella procurava ficar o máximo do tempo com Fernando. Passeavam de braços dados por todos os lugares, a maior parte do tempo em silêncio e no resto do tempo  Fernando falava de suas atividades tentando convencer sua mãe de que estava fazendo a coisa certa. Dona Antonella gostava muito do moinho de fubá, movido por uma roda d’água, ao lado de uma pequena cachoeira. Fernando também gostava muito desse lugar. Todos nadavam ali, quando ele era uma criança. Enquanto isso,  Antenor ficava o tempo todo tentando fazer ligações telefônicas sem dizer a quem. Finalmente foram-se e todos na fazenda passaram a acompanhar todas as notícias referentes ao movimento contra revolucionário. Dona Antonella chegou a se apropriar do rádio da Vó Tiana para poder acompanhar as noticias. Tiveram noticias de Fernando quase dois meses depois. Ele ligou reclamando de Antenor que queria passar para a luta armada. As passeatas organizadas por eles estavam sofrendo muita repressão e os estudantes participantes estavam temerosos. E muitos estavam desistindo. Antenor cobrava novas atitudes do grupo e isso estava incomodando Fernando e Zé Lucio. Dona Antonella ouviu tudo e quando desligou teve a impressão de que talvez tivesse seu filho de volta, longe daquela confusão toda. Os cartazes de procurados pelo Dops se espalhavam por todo o interior e Tião evitava levar Dona Antonella a cidade temendo que ela encontrasse o rosto de Fernando estampado em algum deles. Enquanto isso Tião procurava vender os cavalos do tio Afonso que decidira ir para a região amazônica em busca de terras baratas.

¬          Lá tem terra até de graça.

¬         É mesmo, tio?

¬         É.  Nisso o governo militar tem razão; é preciso ocupar para não entregar. É a nova fronteira agrícola do Brasil.

¬         E como funciona?

¬         Simples. Você chega lá, derruba a mata e faz uma casinha. Depois vai num cartório mais próximo e diz que a terra é tua.

¬         Não acredito.

¬         Mas pode acreditar, Tião. No norte de Goiás tem muita terra boa pra pastagem. É só derrubar e colocar umas cabeças de gado e deixar. O problema é a chuva, falta de estrada, falta de luz, muito bicho, onça, essas coisas. Mas todo começo é assim, você sabe. Quando chegamos aqui, em 42, tudo era mato também. Olha como está ficando hoje. Tem até asfalto na porteira da fazenda.

¬         É verdade, tio.

¬         Lá também vai ser assim. Já estão construindo uma estrada chamada Transamazônica. Aquilo lá vai ficar bom.

¬         E a tia vai se acostumar?

¬         Claro, ela se acostuma com tudo. Depois que perdemos nosso filho, ela não pensa em mais nada.

¬         Como assim? Vocês perderam um filho? Eu não sabia.

¬         É. Ninguém comenta, porque foi uma grande tragédia. E o pior, meu filho foi o responsável pela morte de um colega também. Por isso ninguém comenta.

¬         Como foi? O senhor quer falar?

¬         Agora que estou pra ir embora posso falar. Meu filho, único filho, com treze anos,  foi construir uma caverna num barranco, no pasto. Ficaram fazendo isso por uns dez dias e numa tarde ele não retornou pra casa. No dia seguinte encontramos a caverna desabada e, dentro dela, os dois corpo cobertos de terra.

¬         Que triste. Faz tempo?

¬         Uns dez anos. Ela não quis mais filhos e a dor parece não passar. Penso que se a gente sair daqui a coisa pode mudar

¬         Entendo. Pode ser.

¬         Mas fica combinado assim. Depois de vender todos os animais, eu vou pra Cuiabá. Você procura uns corretores pra vender a fazenda, tá certo?

¬         Claro. É o preço do alqueire; deixo com eles?

¬         Sim, e é por isso que precisa vários corretores. Como não tem plantação e as benfeitorias são para criação de animais, só vai pegar o que vale,  se vender pra alguém que vai explorar o mesmo negócio. Se não, vai pegar só o valor do terreno.

¬         A casa é boa..

¬         É, mas quem compra, vai reformar de qualquer jeito. Isso não conta. O que vale é o preço do alqueire paulista.  Lá no norte eles também usam o alqueire paulista e não o mineiro.

¬         Mas dá pra comparar?

¬         Nem de longe. O valor de um alqueire aqui dá pra comprar 5 a 10 alqueires lá.  Isso se eu conseguir fazer documento da terra. Se aqui eu tenho 100 alqueires lá eu quero 500 alqueires pelo mesmo valor.

¬         Quanta terra! Fazer o que com tanta terra?

¬         Criar boi, rapaz. Se eu fosse você, convencia a Antonella a fazer a mesma coisa. E a fazenda de vocês tem o dobro da minha, daria pra comprar muita terra no sul do Pará.

¬         Por mim, fico aqui. Acho que por ela, também. Essa região está ficando boa.

¬         Você é quem sabe. Mas  nos dois vamos nos falar por rádio amador. Lá em Getulina tem um amigo meu, o Mário Coruja, conhece?

¬         Já ouvi falar.

¬         Ele é rádio amador. Ele me ensinou a mexer no aparelho que eu comprei. Uma vez por semana você vai lá e ele te põe em contato comigo. Aí a gente vê como as coisas estão andando. Está bem assim?

E Afonso Quagliotto foi desmatar a Amazônia com incentivos do governo. E Tião nunca mais viu Afonso Quagliotto,  que morreu de tristeza, alguns anos depois que a mulher morreu de Chagas, depois de quatro malárias. O Brasil inteiro comemorava a conquista do tricampeonato de futebol, no México. A euforia era tanta que até Dona Antonella, torcedora da Itália, soltou alguns fogos. Não havia mais colonos na fazenda. Além da casa de Vó Tiana, só duas casas permaneciam ocupadas, por moradores que eram considerados funcionários da fazenda. Por isso a festa acabou logo. E se não tivesse acabado, acabaria pela chegada de um jeep do exército do quartel de Lins, onde um tenente procurava pela mãe de Fernando.

¬          Seu filho quis abandonar o seu grupo e foi morto pelos próprios companheiros. Lamentamos pela senhora e por seus familiares.

Ainda havia cheiro de pólvora dos fogos de artifícios no ar quando Dona Antonella recobrou a consciência, embora houvesse se passado mais de uma hora. Deitada em sua cama, com Mariana esfregando álcool em seus punhos, ela abriu seus olhos pequenos  e aí pode soltar um grito de dor. E aí chorou. Alto, forte, compulsiva e descompassadamente. Chorou como se todo o seu  corpo fosse dor. E toda sua dor invadiu o quarto tomando a todos como reféns. E assim, Tião, Mariana, Vó Tiana e até Marciano, choraram, nem sabem eles por quanto tempo. E tempo depois, já no crepúsculo, canto dos grilos e o piar da coruja, quando Dona Antonella quebrou o silêncio.

¬          Tião, como foi isso?

¬         O tenente falou pouco, Mama. Quando a senhora desmaiou tive que deixá-lo para carregar a senhora pra dentro. Depois voltei lá e ele me explicou pouca coisa. E disse que eu comparecesse a Lins para ver as providencias que terão que ser tomadas.

¬          Só isso?

¬         Só. Ele disse que Fernando tinha procurado ajuda na policia para deixar a clandestinidade. Quando ficaram sabendo, mataram ele, no centro de São Paulo. Tudo isso, num só dia. O amigo dele também sumiu, mas não sabem se ele também foi morto. Vieram aqui por causa do depoimento que ele deu para a polícia. Se ele fosse no Dops teria ficado detido, mas como ele foi num distrito policial comum, pode sair. Ele não andou nem três quarteirões. Foi isso. Amanhã vou a Lins e fico sabendo mais.

Fernando foi enterrado perto do pai, em Lins. Dona Antonella fechou-se em seu quarto e só foi sair em janeiro de 71 porque Mariana começou a passar mal por causa de sua segunda gravidez. E nem mesmo quando a menina nasceu ela voltou a rir como fazia. Apenas sorria. Tião achou que podia chamar a menina de Fernanda pra que ela se sentisse mais próxima do filho. Mas pouco adiantou. Ela andava sozinha pela fazenda, ia até a cachoeira, a pé, e ficava lá por horas. Vó Tiana, sentava-se nas pedras e ficava observando, em silêncio, enquanto pitava.  E, no final da tarde, a imagem daquelas duas mulheres parecia fazer parte da cachoeira e da roda d’água, que não rodava mais. Quase todo dia era assim e assim foi, por vários anos, mesmo depois do falecimento de Vó Tiana, em 76, uma semana depois dela ter completado 80 anos. Tião e Mariana tiveram outro filho e o chamaram de Francisco, em homenagem ao avô, Francesco. Tião vivia as voltas com problemas na fazenda. O “Milagre Brasileiro” estava se acabando e a inflação começava a afetar a todos. Ele tentava vários tipos de culturas e até mesmo tentou a criação de bicho da seda. Às vezes dava, às vezes não dava. Ele sentia que grande parte das terras estavam improdutivas e resolveu arrendar grande parte delas. Dividiu em vários sítios e fez correr a noticia. Da produção dos meeiros ele tinha de trinta a cincoenta por cento, dependendo da plantação. Ficou com setenta alqueires dos quais cincoenta ainda tinham café e os outros vinte eram a reserva de mata. Tião estava para fazer quarenta anos e continuava com o aspecto de um jovem. Parecia não envelhecer. Mariana, dez anos mais nova, engordara um pouco mais e parecia ter dez anos a mais. Dona Antonella, que perto de fazer sessenta anos é quem parecia ter muito mais. E além disso, desistira completamente da fazenda. Tudo já estava sob controle de Tião e isso às vezes o incomodava. Quando ia a Lins, ou mesmo a Getulina, no banco, na escola dos filhos, ou fazer compras, sentia que o olhavam com certa curiosidade. Ele era conhecido justamente por isso mesmo; ter-se tornado um fazendeiro pelo casamento com a filha do fazendeiro. Por isso evitava ir a cidade. E na fazenda não tinha com quem conversar. Mariana, agora com televisor em casa só queria saber de novelas, Marciano com onze anos, Fernanda com sete e Francisco com três anos eram a sua companhia enquanto assistia os jogos da seleção brasileira de futebol disputando a Copa do  Mundo na Argentina. Enquanto isso lia muito, comprava revistas, jornais, livros, parecendo que com isso não se sentia tão só.  Quando as crianças cresceram mais é que ele pode ter pessoas diferentes a sua volta. A pedido de Marciano, agora com 18 anos, construiu uma piscina perto da casa e fez uma boa área de lazer, enchendo a casa de jovens nos finais de semana. Pode reativar o haras, comprando novos animais, e dando um pouco de alegria a Dona Antonella que voltou a cozinhar e fazer companhia a Mariana na frente da televisão. Pode perceber que Francisco gostava muito de cavalos. Entretanto, os planos econômicos do governo deixavam Tião muito preocupado. Aceitou um conselho de um gerente de banco e investiu um pouco em dólares e em barrinhas de ouro. Desmembrou uma parte da fazenda, dividiu em três sítios de 15 alqueires cada e colocou cada um no nome de cada filho. O dinheiro do arrendamento de cada sitio ia para a conta bancária de cada filho Mesmo assim a fazenda ainda ficou com quase 150 alqueires, embora parte dela ainda continuasse arrendada. Conversava sobre o futuro, sempre que podia, com Marciano, 20 anos, e Fernanda, com 17, ambos numa faculdade de direito, em Bauru. Percebia que seguiriam o caminho de Fernando; não iam tocar a fazenda. Restava Francisco, com 13 anos e ainda no ensino médio. Marciano herdou os traços negróides do pai, Fernanda era mais clara, mas ainda com nariz largo e lábios grossos, embora tivesse o cabelo apenas levemente crespo. Mas Francisco herdou quase todos os traços da mãe. E principalmente, da avó. Dona Antonella, que parecia “ter”  Fernando novamente, readquiriu a vontade de viver e, quando podia juntar a família, contava estórias de sua infância na Itália. No inicio da década de 90 Tião teve vários problemas econômicos. A inflação desestabilizava qualquer planejamento e, se ele não tivesse ouro e dólares guardados, teria passado mais dificuldades ainda. Um dos planos do governo reteve todo o dinheiro da população que estava em contas bancárias, impedindo sua movimentação. Apenas uma pequena quantia podia ser sacada, o que possibilitava, apenas, a cobertura das despesas diárias. O plano, obviamente, não deu certo e Tião teve que repensar a administração da fazenda. As condições mudavam rapidamente e havia uma efervescência política no ar. Bastava ligar o rádio ou a televisão que as palavras mais ouvidas eram “Impeachment” e “Inflação”. Marciano, já formado, conseguira o registro na entidade da sua categoria e instalou um escritório de advocacia em Bauru com mais dois colegas, entre eles, Bruna, sua namorada. Bruna era filha de ferroviários, também negra e muito ativa politicamente. Seu pai era sindicalista que, para cuidar de sua mãe doente, abandonou a luta sindical. Mas Bruna pregava o socialismo, era grande fã de Gonzaguinha e vivia cantando suas músicas. Marciano era encantado por ela. Fernanda, concluindo a faculdade, estava namorando um colega de classe que era “obreiro” de uma igreja evangélica. Tião e Mariana iam a Bauru, distante um pouco mais de 100 km, pelo menos uma vez por semana. E todo final de semana, os dois tinham que voltar para a fazenda. Era um combinado entre eles. Marciano, é claro, levava Bruna. Mas Fernanda não trazia Roberto, seu namorado. Ele sempre tinha muitas  atividades na sua igreja. E todo final de semana, a casa da fazenda enchia-se de vida. Marciano convidava seus amigos de Lins e no sábado a noite sempre tinha muito samba, cerveja e frango frito. Dona Antonella esperava a semana toda para poder cozinhar e rir muito. E como ria. E também falava muito. Procurava deixar a todos muito a vontade, principalmente no grande almoço de domingo. E no final da tarde, antes da partida, Tião procurava conversar bastante com Marciano e Fernanda. Caminhavam apenas os três pelos caminhos entre as mangueiras. Tião começou a perceber que Marciano tinha muito a ensiná-lo, principalmente quanto as novas tecnologias. Celulares, computadores, novas técnicas de plantio. Fernanda falava das novas leis e de como a vida nas cidades estavam mudando. Havia chegado o momento de Tião mais ouvir do que falar. E Tião ouvia. E perguntava muito. Questões não respondidas ali, teriam que ser respondidas no próximo final de semana. E a cada segunda feira Tião sentia-se remoçado. Num desses finais de semana, Fernanda trouxe Roberto que queria pedir a mão dela em casamento diretamente a Tião. Ela já tinha terminado a faculdade mas não tinha passado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil para adquirir o registro, necessário para exercer a profissão. Enquanto isso, Fernanda ajudava Marciano em seu escritório. Roberto nem prestou o exame, seu objetivo era ser pastor evangélico e montar sua própria igreja. Tião, Dona Antonella e Mariana ouviam tudo isso e sentiam que era uma nova realidade. Não sabiam muito bem como tratar o assunto. E por isso, em principio, concordavam com tudo. Afinal, Marciano já havia dito que o rapaz era de bem, correto até demais. Ficaram noivos em Bauru, na casa dos pais de Roberto na noite do domingo que a seleção brasileira de futebol conquistara o tetracampeonato de futebol nos Estados Unidos. De presente de casamento Tião comprou uma casa em Bauru e a mobiliou completamente Casaram-se no final do ano, na fazenda numa festa que reuniu as duas famílias e teve um casamento católico e um evangélico. Dona Antonella não admitia não ter um padre no casamento e o mesmo padre que casara Tião deslocou-se de Marília, para onde fora  transferido, para realizar o casamento. Sábado a noite, o casal partiu para a lua de mel em Araxá. Depois disso foi uma festa que durou o final de semana todo. Marciano aproveitou e anunciou seu casamento com Bruna e convocou todos os seus amigos para a festa, que a principio seria em Bauru, na casa da noiva. Mas como a mãe de Bruna ainda continuava doente, resolveram fazer o casamento na fazenda também. Dona Antonella, nem bem a fazenda ficou vazia, no domingo a noite, já começou a preparar a festa que viria. Tião, antes de se deitar, pediu licença a Mariana e foi sozinho até a casa de Vó Tiana, que ele mantinha intacta. Lá, sentou-se no sofá e pegou o rádio. Ligou, mas não havia som. As pilhas estavam descarregadas. Mas ele imaginou ouvir uma música. E a ouviu inteira, com as lágrimas caindo lentamente enquanto olhava pra sua vó sentada a sua frente. O sol da manhã da segunda feira o pegou dormindo ali. Assustado saiu correndo a se desculpar com Mariana que o recebeu com um sorriso e um café. Os preparativos do casamento de  Fernanda fizeram com que Tião adiasse algumas providencias que teria que tomar em relação a fazenda. Uma delas era uma proposta de arrendamento para o plantio de cana por uma usina que havia se instalado na região. A reunião era no meio da semana e como se tratava de um prazo relativamente longo preferiu chamar Marciano para participar da reunião na usina. Tião avisou que pagaria pela assessoria. Aí Marciano trouxe Bruna e o outro sócio. A reunião ficou tensa em vários momentos porque a usina queria desmatar tudo, quase 100 alqueires e os jovens advogados começaram a falar de biodiversidade, microbacias hidrográficas, sustentabilidade, preservação ambiental e outros assuntos que Tião nem ouvira falar. Chegou a ficar temeroso que a usina desistisse do negócio mas Marciano fez um sinal para que se acalmasse. Interromperam a reunião para o almoço e foram até Lins. Lá Tião teve uma aula da nova visão sobre meio ambiente e perguntaram a ele se ele queria botar um preço nas nascentes da fazenda. Disseram também que eles analisaram a região e concluíram que a usina precisava das terras da fazenda  para se tornar rentável. Éra uma área muito grande que eles não podiam abrir mão. Voltaram a reunião só para marcar outra reunião onde mostrariam as áreas que poderiam ser cultivadas e as que permaneceriam como estavam. A usina disse que ficaria difícil, então, fechar o contrato de arrendamento, que tinha outra área em vista, etc, etc. Os advogados disseram que estava bem, então, encerrando a reunião. No começo da outra semana a usina ligou para Bauru marcando outra reunião. Marciano pediu um prazo maior para fazer o levantamento das microbacias  e depois disso fechou o contrato. Tião pensou em arrendar o restante da área cultivável, quase 50 alqueires,  para uma família japonesa de Lins plantar laranjas. Assim não teria com  que se preocupar. Foi surpreendido por Francisco que pediu para tocar as terras. Afinal tinha acabado de fazer 18 anos e fora dispensado do serviço militar.  Não queria ficar apenas ajudando a cuidar dos cavalos. Francisco não quis fazer faculdade e Tião respeitou. Sugeriu então que fizesse um curso técnico de agricultura. Perto de Marília tinha uma escola. No inicio de 95 foram ver e Francisco ficou. A escola tinha até alojamento com refeitório e tudo. Aí só viria para casa aos finais de semana. Como Marciano e Bruna só iriam se casar em maio, Tião fez um convite para Dona Antonella e Mariana. Visitar a Itália, principalmente a região de Benevento, onde ela nascera.  Claro que ela concordou. Aí Tião pediu ajuda a Marciano, que contratou os serviços de uma agência, e após um mês de preparativos, desembarcaram em Roma. Dona Antonella parecia uma criança de tão ansiosa. Tião chegou a preocupar-se com seu estado emocional, embora ela tivesse feito um chek up completo da saúde antes do embarque e, apesar dos 68 anos, ela estava muito bem. No hotel, em Roma, Tião decidiu deixar o roteiro da agência de lado e propôs a Dona Antonella alugar um  carro  e sair dirigindo até a região de Benevento. Ela concordou de imediato e após a legalização da documentação, os três estavam pronto pra cair na estrada.

¬         Mas nem conhecemos Roma  ainda, Tião.

¬         Calma, Mariana. Primeiro vamos ver onde a Mama nasceu. Nos vamos ficar por aqui 14 dias. Dá tempo da gente ir lá e depois passear aqui em Roma.

¬         É bom mesmo. Quero conhecer a Cinecittá. Quero ver e por meus pés por onde caminharam  Sofia Loren, Claudia Cardinalle e Marcelo Mastroiani.

¬         Ainda bem que esse carro é um Fiat, quase igual ao meu. Muito bem, Mama, por onde a gente vai?

¬         Hei! Eu nunca vim a Roma. Eu morava no campo, bem longe daqui, vocês vão ver. Pergunte para o moço, na portaria, qual o melhor caminho.

¬         É a senhora que tem que perguntar, Mama. Eu não sei falar em italiano. Eu só sei que estamos no bairro de Trastevere porque a senhora queria ficar perto do Vaticano.  Foi o que pedi para o Marciano. Parla lá, Mama.

¬         Va bene. ¿Hei ragazzo, vienen fatto io por la mirada en Benevento?

¬         è semplice, signora. Farò una piccola mappa. Siamo qui, a Villa Rosa Hotel in via Giovanni Prati. Rendere la curva qui, all’inizio dell’hotel e prendere la Via Giuseppe Panni e andare avanti fino a trovare la via Cesare Pascarella. Attraversare la strada e si sarà in Via Carlo Porta. È la comprensione del disegno, signora?

¬         Molto bene.

¬         Dopo aver immesso la centocelle, tra il diritto e il contorno della War Cimitery, cimitero di guerra, e individuare il Viale Marco Polo che cambierà il nome di Via Cilicia, accanto alla ferrovia. Verrà rinominare in Via Acaia e andare a Piazza Re di Roma.  Nella piazza è basta chiedere come immettere Via Tuscolana. Prendere a destra e proseguite diritto. Prendere la Circonvallazione Orientale Cinecittá e uscire a Stroppiana Roma Sud e seguire dritto fino alla città di San Cesareo. Prendere l’autostrada Del Sol e seguire a Caserta ai. Benveneto è a sinistra. Capisco la signora? Seguente è così che si arriva a destinazione.

¬         Grazie

¬         E aí, Mama?

¬         Ele fez um mapa e me explicou. Só temos que seguir. Então vire o carro, pegue aquela rua ali; é a Giuseppe Panni.

¬         Vá em frente. Vamos atravessar uma avenida chamada Via Cesare Pascarella e essa rua que nos estamos vai se chamar Via Carlo Porta.

¬         Se as estradas forem como aquela  que sai do aeroporto e vem até aqui, vai ser muito bom.

¬         Olha lá, temos que atravessar aquela ponte. É a ponte Testaccio. Dá um jeito aí, Tião. Sabe de uma coisa Mariana? Vamos passar do lado da Cinecittá.

¬         É vero, Mama?

¬         Sim, claro. Olha aqui o mapa que o moço do hotel desenhou. Está vendo aqui?

¬         Passamos a ponte, Mama. E agora?

¬         Pegue a esquerda. Vamos encontrar um cemitério, contorne e vamos entrar numa avenida. É a Viale Marco Polo. É só seguir em frente. Olha ali, a ferrovia, a direita. Em frente, Tião. Estamos no caminho certo.

¬         Que cidade, heim, Mama? Tudo tão limpo. Parece tudo tão organizado.

¬         É verdade, Mariana. Quando eu era menina, nunca pensei em conhecer Roma. Era um outro mundo per me. Parece tão grande, não?

¬         Sua cidade qual era mesmo, Mama?

¬         Nem era cidade Tião. Foglianise era um povoado com algumas casas. É na província de Benevento. A gente morava numa casa com dois andares.

¬         Dois andares, Mama? Chic, heim?

¬         Era comum por aqui. Em cima morava gente. Em baixo, os animais.

¬         Como é que é?

¬         É isso mesmo, galinhas, cavalo.

¬         Nossa, Mama!!

¬         E o cheiro, heim Mama?

¬         Bem forte, Tião. Mas a gente se acostuma com tudo sabia?

¬         Caramba, essa avenida não acaba?

¬         Veja você que agora ela se chama Via Cilicia, está vendo lá? Daqui a pouco vamos entrar na Via Acaia e vamos até chegar na Piazza di Re di Roma. Um quarteirão depois pegamos a direita entrando na Via Tuscolana. Essa é longa, segundo o mapa. Sabia que lá em Foglianise a gente plantava batatas?

E assim atravessaram Roma e metade do sul da Itália. Dormiram em Caserta, foram a Benevento, chegaram a Floglianise , descobriram ainda uns primos que moravam por lá e Dona Antonella descobriu uma nova Itália que em nada lembrava a “sua” Itália, pobre e destroçada pela guerra.  Foram a Nápoli e depois foram passear em Roma. Duas semanas depois Marciano estava esperando por eles no aeroporto em Campinas. Tião abraçou longamente Marciano. Parecia não vê-lo há anos.   No caminho para Lins, pararam em Bauru para rever Fernanda e fazer umas compras para a fazenda. Tião tocava a fazenda com muito carinho e experimentava varias culturas para experimentar o solo. Dividiu os 50 alqueires em seções e fazia rotatividade entre cultura e criação de gado, cavalos e ovelhas. Marciano casou-se mesmo em maio e a festa repetiu-se, mais intensa e com mais gente. Francisco contava a todos suas experiências no “internato” da escola agrícola e dizia que estava aprendendo a tocar viola. A família reunida aumentava a saudade de Tião por Vó Tiana  e a saudade enorme de Fernando e Francesco por Dona Antonella. A família só foi reunir-se novamente 3 anos depois na formatura de Francisco, que recebeu o apelido de Chicão na escola mas pediu muito para a família não tratá-lo assim. E foi atendido. Francisco voltou para a fazenda e pediu para Tião montar uma criação de porcos. Antes ele já tinha pedido para intensificar a cultura do milho e do feijão. Agora seus planos incluíam o consorciamento e a sustentabilidade. Dividiu os 50 alqueires em 10 seções de 5 alqueires cada começou uma rotatividade de cultura. Era a virada do milênio e Francisco convidou dois amigos que se formaram com ele para trabalharem juntos num sistema de parceria, já que os dois não tinham terras. Deu a cada um uma das casas da colônia, devidamente reformadas. Um deles queria a casa de Vó Tiana, o que foi prontamente recusado. Aliás, o mesmo que Francisco fez questão de convidar, com segundas intenções, já que o mesmo tinha uma irmã que lhe interessava muito.  Casaram-se dois anos depois, assim que a casa que Tião mandou construir na fazenda, ficou pronta. Aí a família reuniu-se mais uma vez, com Fernanda e seu filho de dois anos e com Bruna grávida do primeiro filho. Findava o ano de 2002 e a seleção brasileira de futebol acabara de se tornar pentacampeã mundial. Tião passou a ser grande parceiro de Francisco, querendo saber tudo que ele tinha aprendido na escola. Qualquer novidade interessante aplicavam imediatamente. A primeira delas, uma horta orgânica substituiu a estufa de pimentão e o cultivo hidropônico. Tião, melhor comerciante do que agricultor, vendeu toda a produção para a merenda escolar  da região, com um contrato de um ano. Instalou antena parabólica na fazenda, gostou tanto da imagem que instalou também nas casas dos funcionários, de Francisco e dos amigos de Francisco. Passou a se interessar muito pela internet e buscava conhecer toda novidade tecnológica que surgia, em qualquer área, não apenas na área de comunicação. Procurava ir a Bauru pelo menos uma vez por semana visitar Fernanda e os dois netinhos e Marciano, já pai de uma menina.  Marciano e Bruna participavam de Ongs como assessores jurídicos, voluntariamente. Eram muito entusiasmados com essa atividade e no final de 2005 fundaram sua própria Ong a qual deram o nome de Instituto Almirante Negro, voltado ao resgate das tradições africanas. Tião não podia deixar de comparar a vida de Marciano com a de Fernanda, sempre tão meiga e incapaz de desagradar alguém. Marciano enfrentava o que viesse e sempre agia com muita inteligência, dificilmente perdendo um confronto, fosse ele de idéias ou jurídico. Fernanda tomava aula de canto e preparava-se para integrar o coral da igreja e era uma das responsáveis pelas crianças nos dias de culto. Procurava ajudar Roberto em todas as atividades em que o mesmo estivesse envolvida,  atendendo uma das determinações da igreja; que dizia que a esposa devia submeter-se ao marido. E ela fazia isso conscientemente, sem nenhuma contestação.  Quando voltava para a fazenda, transitando pela Rodovia Marechal Rondon, conversava muito com Mariana sobre essas diferenças. Mariana então respondia que, mesmo não sendo de nenhuma igreja, ela também fazia a mesma coisa. Seguia o marido. E Tião calava-se. Quando chegava à fazenda, encontrava Francisco e via o seu jeito extrovertido introvertido, pensava que talvez estivesse errando ao permitir seus filhos tão separados um dos outros e de seus pais. Era uma situação nova, fora de seu controle, e como ele era muito voltado a família isso o incomodava um pouco. Enquanto isso, viajava. Ia a São Paulo com Mariana e dona Antonella, assistiam a algum espetáculo em cartaz, ou alguma peça teatral,  depois desciam até Praia Grande onde Tião comprou um apartamento, onde passavam dias  conversando e rindo muito.  A fazenda rendia mais do que precisavam e dona Antonella procurava ajudar o trabalho de Fernanda em sua igreja, mesmo sendo católica fervorosa. Começou a ajudar Bruna em sua Ong, financiando alguns projetos que ela achava interessante. Marciano, anteriormente já assessorava uma entidade que ajudava os Sem \Terra e dona Antonella era visceralmente contra esse movimento. Mas começou a ajudar Marciano também. Tornou-se uma boa amiga de Bruna que mantinha os cabelos africanizados, motivo de muitas brincadeiras por parte dela e de Mariana também. Bruna era muito bonita, altiva, sorriso largo e quando ela e Tião sorriam, ou riam, não havia quem não sorrisse também. A tradição de se encontrarem na fazenda todo final de semana fora deixada de lado ao longo dos anos. Combinaram passar o réveillon de 2008 na fazenda e por todo o ano de 2009, sem faltar nenhuma vez, todos se reuniam em todo final de semana. Roberto às vezes não ia, mas Fernanda pegava carona com Marciano e comparecia. Marciano e Fernanda entendiam que o tempo estava contra os pais e principalmente contra a avó. Dona Antonella já caminhava com alguma dificuldade, embora continuasse com uma lucidez absoluta. Tião vivia reclamando que seus músculos abdominais não resistiram à boa comida feita por Mariana. Ficou com uma bela barriga e seu bigode estava ficando grisalho. Sabiam também  que o ambiente da fazenda era importante para seus filhos,  que adoravam Tião. A festa de aniversário dos 70 anos de Tião foi feita um mês e meio  antes para coincidir  com a festa de aniversário de 82 anos de dona Antonella. Esta era encantada pelos bisnetos e vivia surpreendendo os filhos de Fernanda com seus conhecimentos de informática. Tinha seu próprio notebook e pagou uma boa soma para puxar um cabo óptico até a fazenda São João. Embora os limites da fazenda chegassem até a estrada, a distância do poste na estrada até a casa  sede era de quase quatro mil metros. Dona Antonella, então, plugou-se ao mundo, principalmente a Itália. E isso a remoçou ainda mais. Sua conversa era sempre atualizada o que agradava muito a Tião e a Mariana, para que pudessem viajar falando muito sobre qualquer assunto. Chegou a assinar jornal on-line e, logo no começo, passava grande tempo nas salas de bate papo. Depois se cansou. No final de 2009, Bruna e Marciano convidaram Tião para uma festa na sede de sua Ong em Bauru comemorando a Semana da Consciência Negra. Tião foi sozinho, numa das poucas vezes que não se fez acompanhar de Mariana ou Dona Antonella. Tião gostou da decoração, das músicas, das danças, do estilo dos jovens e, numa forma de agradecimento pelo convite, convidou toda a diretoria da Ong para um almoço na fazenda. Alguns dias depois Marciano ligou confirmou o almoço, dizendo que iriam em 12 pessoas, inclusive ele e Bruna, Era um domingo ensolarado de dezembro e os quatro veículos saíram de Bauru por volta de 8 horas  da manhã. As dez, todos já estavam em traje de banho a beira da piscina.  Tião resolveu fazer um leitãozinho a pururuca que era o prato preferido de sua vó Tiana. Ele tinha tentado algumas vezes e nunca conseguira fazer do jeito certo. Sempre rasgava o couro e o recheio vazava. É que todas as vísceras e, principalmente, todos os ossos, menos os da cabeça e patas, eram retirados com uma faquinha pelo ânus do animal. Por ali também eram inseridos o tempero e o recheio, normalmente uma farofa de milho. Depois de assado, era só jogar o óleo muito quente e esperar pururucar. Ele lembrava da avó fatiando o leitão como se fosse um belo pão caseiro. Desta vez, conseguira. Não via a hora de levá-lo a mesa, aliás, já forrada de saladas, frutas, pão, vinhos e temperos. Na beira da piscina Marciano e os amigos bebiam cervejas, inclusive as mulheres. Francisco montou uma mesa no gramado para comportar as quase 20 pessoas que iriam almoçar. Seus dois amigos ainda estavam solteiros e queriam saber se haveria moças disponíveis entre as visitantes e se convidaram. Mas não havia, e mesmo assim ficaram;  já que normalmente almoçavam na casa de Francisco.  Eram quase três horas da tarde quando, satisfeitos, começaram a se levantar da mesa. Dona Antonella já estava em sua cadeira de balanço na varanda e observava Tião ajudando Mariana e as duas empregadas “tirarem” a mesa e levarem tudo para a cozinha. Como o sol estava forte todos os jovens começaram a sentar-se também na varanda, onde pudessem. Tião chegou e pediu a sua cadeira também de balança a um amigo de Marciano que, apesar de ter que sentar-se no chão não cansava de elogiar o leitão a pururuca. Bruna e Marciano quase dormiam numa das redes. Francisco apareceu com a viola e com seus dois amigos cantaram alguns clássicos caipiras. Um dos amigos de Marciano, membro da diretoria de sua entidade, disse que nunca tinha ouvido uma viola, assim, ao vivo, logo ele, que era um “fazedor de cultura”. Tião, desde a festa em Bauru, não conseguia entender o que isso queria dizer.

¬          Como assim, “fazedor de cultura”?

¬          É que hoje o conceito é “empoderar” os agentes culturais através da transversalidade cultural

¬          …………

¬          Entendeu “seu” Tião?

¬          Não

¬          Eu explico, papai. Há uma nova consciência no âmbito da cultura. O Ministério da Cultura tem alguns programas de incentivo a projetos culturais, dando poder a quem faz cultura e incentivando a ligação entre vários grupos, por todo o Brasil,  com as mais variadas tendências culturais   

¬         Sim, “seu” Tião, a tendência da nossa entidade é resgatar a nossa ancestralidade, dentro da Matriz Africana, procurando uma equidade em todos os aspectos de nossa sociedade. Simples?

¬         Não

¬         Não é tão difícil de entender, meu sogro. Desenvolvemos projetos voltados para a raça negra, principalmente para a sua juventude, criando ferramentas para sua inserção no complexo mundo social em que vivemos. Queremos recuperar séculos de exploração da raça negra, ocupando o espaço que é nosso, por direito.

¬         Então, o que vocês fazem não é cultura, é um movimento social. Porque cultura não se faz, cultura se cultiva.

¬         Não concordo, papai. Cultura se faz mantendo a tradição e impedindo que ela seja corrompida por interesses externos.

¬         Não! Ao manter a tradição, você está mantendo uma cultura, que já está feita. O que vocês fazem é tentar impor uma tradição que nem existe mais em seu berço.

¬         Extrapolou, meu sogro..

¬         Não! E explico porque. Tenho três filhos, cada um seguiu um caminho. Os três, ao nascerem estavam aqui, na fazenda, comendo a broa de milho de minha Vó Tiana e a “pasta” de minha mama Antonella. Os três ouviam as mesmas estórias, os mesmos conselhos, as mesmas músicas. Vestiam-se quase do mesmo jeito. Foram a missa, fizeram a “primeira comunhão”, tinham o hábito de “pedir a benção” às duas avós e até a mim, antes de se deitarem. Naquele tempo, meus filhos achavam aquilo normal e até necessário. Mas se eu quisesse manter isso eu teria que impor a minha vontade, que não é mais a deles. Podia até ser bonita mas não se aplica mais hoje.

¬         Mas o que isso tem a ver com cultura?

¬         Tudo. O que vocês chamam de fazer cultura e organizar um movimento social voltado para a cultura. Vocês confundem cultura com arte.

¬         Ah, não!

¬         Ah, sim! O que vocês apresentaram na festa lá em Bauru são manifestações artísticas. O que o Francisco fez agora há pouco aqui é uma manifestação artística. Isso não é cultura.

¬         Como não, papai?

¬         Seria cultura se vocês vivenciassem a viola e tudo o que orbita em torno dela. Seria cultivado em vocês um novo modo de vida através dessa manifestação artística. Daria vontade de aprender tocar viola, ter e até mesmo construir uma viola. Daria vontade de conhecer quem toca viola, participar dos festivais e cantar ao som de uma viola. Mesmo assim poderia não ser uma cultura completa, mas,  sim,  o conhecimento completo de uma arte. Para ser cultura você teria que viver dentro do mundo da viola,  de forma natural, todos os dias, sendo feliz com isso.

¬         Então, não estou entendendo mais nada

¬         É que o erro é de origem.

¬         Erro de origem?

¬         Sim. A cultura é como você age de acordo com o que você pensa. Veja você, Marciano. Foi pra Lins, fez um bom colégio, conheceu novos amigos, da mesma forma que Fernanda. Depois os dois foram para Bauru fazer advocacia e os caminhos foram diferentes. Você, através de seus amigos, entrou no mundo tecnológico e organizacional. Fernanda conheceu apenas uma pessoa e entrou no mundo dele. Sentiu-se segura, confiante, canta no coro de sua igreja, mas vocês não conseguem conversar, um sobre o assunto do outro. Ela cultivou em si, um modo de vida. Isso atendia suas necessidades afetivas. Você, aliado a Bruna, pensou em ações comunitárias procurando ajudar o próximo. Isso também atende suas necessidades afetivas. Os dois não se sentem carentes. E Francisco? Olhem pra ele. Sei que vocês acham que ele também deveria ter ido para a cidade, ser mais urbano. Mas o que ele decidiu foi da vontade dele. Da mesma forma que vocês, ele também está feliz.

¬         Mas, “seu” Tião, eu só não entendo o que isso tem a ver com a nossa entidade, de que não somos fazedores de cultura. Acho que somos sim e principalmente da cultura afro.

¬         Está tão difícil você entender que não é possível “fazer cultura afro”?  A cultura africana, a que você se refere, são sons e imagens de tradições que há muito se perderam na própria África. Você deve pensar como brasileiro, simplesmente.

¬         O senhor não vai querer  nos convencer que tudo está uma maravilha para os negros brasileiros. Os escravos africanos fizeram esse país o que ele é hoje

¬         Você conhece a África? Você conhece algum país da África?  Você sabe como está Angola, Moçambique, a Guiné, de onde meus avós vieram?  Está uma droga. Uma pobreza só. Entre na internet, pesquise, procure saber como está a Mama África. Você vai ver que é melhor ter vindo pra cá

¬         Epa! Espere aí. Quer dizer que devemos agradecer por nossos ancestrais terem sido trazidos pra cá como animais e vivido nas senzalas, também como animais de carga?

¬         Claro que não. Foi um erro de uma outra época, cometido por outras pessoas.

¬         Para o senhor é fácil falar. Desculpe eu falar viu, Marciano, mas seu pai não passou dificuldades, é um fazendeiro conceituado. Não tem idéia da realidade dos negros brasileiros.

¬         Permitem eu entrar na conversa, Tião?

¬         Claro, mama

¬         Estou ouvindo vocês e fiquei até comovida. Sempre admirei esse meu genro. E agora admiro um pouquinho mais. Tião passou por muitas dificuldades sim. Tem as mãos calejadas pelo cabo da enxada. Aproveitou as oportunidades porque é inteligente e continuou conosco porque é correto e tem muito caráter. Isso pode acontecer com qualquer um. E a propósito, sempre achei também que o Ministério da Cultura devia se chamar Ministério das Artes, sendo um mecenas, ajudando artistas a desenvolverem seus trabalhos sem se preocupar com mais nada. E nós, não artistas, seríamos os beneficiados pelas belezas de suas criações.

¬         A senhora quer dizer que o Ministério da Cultura devia patrocinar diretamente os artistas e não as entidades que abriga os artistas?

¬         Sim, é obvio isso, não?

¬         E quem formaria esses artistas, senão essas entidades?

¬         Oras, o Ministério da Educação. Não tem lá os professores de Educação Artística.

¬         Ah, não! Esses caras só sabem ensinar a fazer bichinhos de papel ou pintura com guache.

¬         Mas é só capacitar melhor. E pagar  um pouco mais.Aí o Ministério da Cultura passaria a ser o Ministério das Artes. Por isso que digo que a história é a mãe da cultura. Não dá para fazer cultura na hora. É preciso o tempo.

¬         É isso, mama. Realmente, cultura é imaterial, não se administra. Como administrar sensações de aceitações e  rejeições  sobre uma expressão em qualquer formato, escrita, esculpida ou pintada?

¬         Mas as expressões podem ser “gerenciadas”, assim como faz o ministério dos esportes quando descobre algum talento esportivo. O que o Ministério da Cultura deveria fazer é descobrir onde estão os artistas e suprir todas as suas necessidades para que eles possam  fazer a sua arte. Por isso deveria ser Ministério das Artes.

¬         Muito bem, mama. E o povo, ao ter acesso a essas artes, interagia com a que mais lhe emocionasse. Se uma comunidade interagisse mais com o teatro, teríamos mais atores, diretores, coreógrafos, etc,  naquela comunidade. Isso seria um exemplo de uma cultura.

¬         Ora, meu sogro, isso é muito bonito de se dizer mas na prática é outra coisa. A nossa luta é por uma sociedade mais justa e não por mais circo. Usamos a música e a dança para unir a comunidade negra, que um dia terá o poder nesse país, já que somos a grande maioria do povo.

¬         Então é isso o que vocês querem?

¬         É isso, dona Antonella. Vamos nos organizar e formar uma grande Teia, ensinando a cultura afro nas escolas e exigindo os direitos que nossos ancestrais conquistaram com seu sangue.

¬         Você não sabe o que diz, Bruna. Para se fazer um país é preciso unir, conviver com as diferenças e aceitar algumas regras gerais. Nasci num país várias vezes invadido, conquistado, retalhado. A Itália perdeu grande parte de seu território para a Áustria, foi difícil reconquistar. Perdemos várias guerras, tivemos soldados estrangeiros passando na frente de nossas casas, tivemos nossas cidades saqueadas, Vivi todo o horror da Segunda Grande Guerra, o terror do fascismo e o controle de grupos mafiosos.

¬         A senhora vivenciou isso?

¬         Claro, eu tinha vinte anos quando saí da Itàlia. Saí de lá em 47 para vir para o Brasil. Eu me casei um dia antes do embarque.  Poderia ter ido para a Austrália, ou para a América. Mas os soldados brasilianos deixaram uma boa impressão na Itália.. Ainda lembro do cheiro da terra da minha Benevento, quando eu arrancava as batatas que a gente plantava e eu estava no campo quando meu Francesco chegou com uma carta nas mãos, vinda do Brasil, com dinheiro e um recado de seu irmão chamando a gente. Ele tinha vindo para ser mestre em uma indústria em São Paulo, antes da guerra, em 1937. Com pouco dinheiro comprou umas terras, percebeu que precisava cavalos para a lavoura e começou uma criação. Deu certo e nos chamou. Quando chegamos, isso aqui era uma floresta. Ficamos na casa dele por quase  três anos até formarmos esta fazenda. Aí, foi uma luta que nem dá pra contar. Agora vocês vem e querem dividir o país  em brancos e negros?

¬         Não, dona Antonella, a gente não falou isso. Queremos recuperar séculos de exploração da raça negra, ocupando o espaço que é nosso, por direito.

¬         Como assim, por direito? Que direito? O que tiraram de você, Bruna, que você quer agora?

¬         O espaço que não nos permitem ocupar. Não luto por mim, mas por todo o povo negro, aquele mesmo que foi trazido pra cá e deram o resto de vida que tinham pra enriquecer seus senhores.

¬         E enriqueceram os senhores deles na África também, porque quem os vendia eram os seus  reis ou seus  chefes de tribos. Uma sucessão de erros que também aconteceu na Europa, onde na época,  haviam muitos escravos brancos.

¬         Mas estou falando do aqui e agora. Queremos lutar pelas cotas nas universidades e pela igualdade nas oportunidades.

¬         Mas não é pelo confronto que vocês vão conseguir isso. Duvido que seu sogro iria aceitar entrar numa universidade pelo sistema de cotas. Ele é muito digno pra isso. Entraria pelos seus méritos.

¬         Será, Dona Antonella?

¬         Nem preciso perguntar pra ele, tenho certeza absoluta disso. Como tenho certeza de que ele acha que um país deve ser feito pela união e não por divisões de identidade  raciais.

¬         Mas não queremos dividir nada

¬         Mas é o que vai acontecer se vocês não entenderem o que é um país, o que é uma nação. Não se faz um país pensando apenas no passado, mas pensando no passado, de olho no futuro. Em todo processo de construção de um país há muitas lutas e com isso sobram muitas feridas. Um país forte é um país orgulhoso de suas feridas. Elas são o testemunho das lutas para formar um país. Eu dei um filho pra construir esse país. Ele morreu tentando manter a liberdade nesse país.

¬         Essa estória eu não conheço.

¬         Ah! Uma hora qualquer Marciano te conta isso.

Já escurecia. Marciano lembrou seus amigos que eles tinham uma estrada com mais de 100km pela frente. Foram todos se levantando, se despedindo, sem que Tião e dona Antonella se levantassem de suas cadeiras de balança. Mariana é quem ia ajudando a quem quisesse levar alguma coisa para comer. Francisco que ficou o tempo todo abraçado a sua viola, levantou, deu um beijo no pai e na avó e também se foi com a família e os amigos. Tião com um sorrisão nos lábios, mãos  cruzadas na barriga, balançando-se levemente, olhava para dona Antonella. Esta, tirou os olhos da direção da cachoeira, olhou para Tião e pareceu murmurar

¬          eles estão pensando o que?

 E Tião sorria, ouvindo o canto dos grilos que só aumentava

Contos Quase Reais/Carrapicho

       

   Já era noite quando os quatro irmãos chegaram ao abrigo. Era um sobrado, de grades altas e linhas clássicas. Na entrada, um pequeno balcão. Depois, um salão que parecia um refeitório porque, logo em seguida, via-se  um cômodo que parecia uma cozinha. Ao lado, um quarto grande cheio de beliches. Era onde ficavam os meninos. Subindo as escadas, logo uma pequena sala com uma TV e outro grande quarto, também cheio de beliches. Era onde ficavam as meninas. No quintal, no fundo do sobrado, tinha um galpão onde ficavam várias oficinas. Os quatro chegaram conduzidos por dois policiais, uma assistente social e uma conselheira tutelar. Apenas Edilberto, o mais velho com 9 anos, não chorava abertamente, preocupado, que estava agora, com seus irmãos. Via a assistente social conversando com o responsável pelo abrigo e pode perceber que tinha que se separar das irmãs. Simultaneamente, tocou as duas fortemente e sentiu que Maria Isabel tremia muito. Além de mais nova ela sempre foi a mais frágil. Apertou-a um pouquinho mais. Quando o assistente social e o monitor do abrigo vieram em sua direção, com este pedindo que as meninas o acompanhasse, Edilberto as empurrou levemente. Já tinha ouvido falar de abrigos e albergues. Instantes depois o monitor desceu e o levou, junto com Mário, para o quarto dos meninos. Apontou-lhes um beliche e deu-lhes uma espécie de pijama para cada um. Deu também um sabonete, uma escova de dente, uma toalha e pediu que fossem tomar um banho. O banheiro era grande, com quatro chuveiros e, enquanto o de Mário esquentava muito, o seu não esquentava nada. Trocaram algumas palavras com o monitor e entre si. Edilberto queria mesmo era saber como estavam as meninas. Não se arriscou a perguntar; e fez bem porque, instantes depois, estavam os quatro no refeitório tomando um prato de sopa e um pedaço de pão. Receberam, então, orientação para se deitarem, embora todos as outras crianças ainda estivessem lendo ou  assistindo televisão. Edilberto olhou para Camila e apontou Maria Isabel com o olhar, pedindo que a cuidasse. Camila, quase 8 anos, entendeu e levou Maria Isabel pelos ombros. Teriam que dormir. O dia seguinte, o primeiro dia do ano,  seria o primeiro dia de suas vidas sem a mãe. Cansados, dormiram. O dia amanheceu novamente chuvoso e havia uma hora certa para que todos se levantassem. Edilberto ouviu  o chamado do monitor e chacoalhou Mario, que dormia na  cama de cima do beliche. Naquele abrigo eram também recebidos  alguns meninos e meninas de rua que iam  apenas para dormir, embora a direção esperasse que eles ficassem. Mas, assim que se levantavam, mal se lavavam, tomavam um café, duplicado, e saiam para a rua. Alguns voltavam a noite, outros voltavam dias depois e outros nunca mais voltavam. O comportamento desses era típico e Edilberto pode perceber isso. Os internos eram mais calmos e, davam a vez, do que quer que fosse para aqueles. Quando a hora do café terminou, pouco depois das oito horas, Edilberto e Mario foram chamados por um outro assistente social da prefeitura. Queria saber detalhes da suas vidas. Logo chegou uma conselheira tutelar. Conversaram, mas Edilberto sentia muita preocupação enquanto Mario sentia muito medo. Edilberto  lembrou  das irmãs e perguntou sobre elas. Ficou sabendo que elas também estavam conversando com algumas pessoas. Os assistentes  ficaram sabendo que Edilberto já cursava a segunda série e Camila , a primeira série, embora a freqüência não fosse a ideal. Mas tinham alguma noção de escrita e de leitura. Depois da conversa foram para um pátio onde foram cercados por várias  crianças que já sabiam de sua estória. O fato da  morte da mãe havia passado na televisão e todos queriam saber como tinha ocorrido. Edilberto falou pouco, Camila menos ainda. Maria  Isabel e Mário, assustados, começaram a chorar. Um dos meninos chegou perto de Edilberto e mostrou um jornal, desses sensacionalistas, que mostrava na primeira página a foto de sua mãe estendida na calçada, numa poça de sangue. Ao seu lado, o corpinho de Maria Rosa, também ensangüentado. E os quatro em volta, enquanto algumas pessoas passavam. Alguém tinha feito a foto do décimo andar de um prédio vizinho. Edilberto chocou-se, mas não deixou que seus irmãos vissem o jornal. Pediu a primeira página, dobrou e a guardou num bolso. O menino que lhe mostrara o jornal chamava-se Bernardo, tinha dez anos e já estava há mais de dois anos no abrigo. Era negro e tinha uma pequena mecha de cabelos brancos começando bem no meio da testa. Um monitor dizia que era um penacho, começaram a chamá-lo de Nacho e assim ficou. Como ao seu irmão, Anderson, de cinco anos, que chamavam de Carrapicho, porque “grudava” muito nas visitas. Andava mesmo agarrado nas pernas de quem vinha  conhecer as crianças em busca de alguma para adoção. Carrapicho, olhos grandes e grandes dentes, que pareciam aumentar quando sorria. E como sorria. Edilberto e Nacho logo se tornaram amigos. Passaram a fazer os mesmos serviços, freqüentar as mesmas aulas nas oficinas, tanto de elétrica como de marcenaria. Edilberto gostava mais das aulas de elétrica, que aconteciam quando tinha algum aparelho do abrigo para consertar. Nacho gostava mais da marcenaria e gostava de ajudar o monitor a consertar os móveis do abrigo. Gostava muito de desenhar. Além disso, começaram a freqüentar a mesma escola regular, só que em series diferentes já que Nacho estava um ano na frente. Camila também começou a ir para a mesma escola além de freqüentar as oficinas. Evitavam  falar da mãe, até mesmo como auto defesa. Mario e Maria Isabel apenas brincavam. E, os quatro, esperavam. Passaram a conhecer as estórias de cada um dos internos.  Bernardo e seu irmão Anderson foram mandados para o abrigo porque a avó que os tutelava, morreu. Não tinham para onde ir. Nem conheceram os pais e a avó não lhes contava nada sobre isso. Conheceram Rodrigo, o Perneta, que mancava de uma perna porque havia sido atropelado por uma moto num cruzamento quando fazia malabares. Revoltou-se. Era briguento, encrenqueiro e ainda tinha dois outros meninos que o seguiam sem questionar. Tinha apenas onze anos e sabia se impor. Sempre dizia que ia todo dia no abrigo porque tinha certeza que sua mãe viria buscá-lo, um dia. Enquanto isso, destratava a todos; principalmente Carrapicho a quem também chamava de  “mala”, criticando-o por sua insistência em agradar os visitantes. Carrapicho dizia apenas que estava procurando uma “mãe”. Já haviam se passado mais de quatro meses desde o dia em que chegaram no abrigo quando a assistente social chamou Camila dizendo que havia uma família querendo adotá-la. Havia se apaixonado por ela só pelas fotografias que o abrigo disponibiliza para os interessados. Camila chamava a atenção pela beleza e pela meiguice. Era natural que a família a quisesse. Ela chorou muito quando o casal veio visitá-la e simplesmente disse que não queria ir. Disse também que não gostava deles embora não tivesse sentimento algum. O casal foi embora, chateado. O assistente social voltou a conversar longamente com Camila, que conversou com Edilberto e falou com Mario e com Maria Isabel que talvez tivesse que ir embora. Choraram, mas pouco havia a ser feito. A situação deles era essa mesma; “disponível para adoção”. O abrigo era uma casa temporária e era muita sorte ser escolhido para adoção, já que a idade não ajudava. Eram “velhos” demais. Camila também achava que Maria Isabel ia sentir muito a sua falta e por isso falou a assistente social que ela teria que ir junto. Já bastava ter que se separar de seus dois irmãos. Quando o casal voltou, dois domingos depois, Camila já estava mais receptiva. Conversou e respondeu a todas as perguntas. Ficou sabendo que Maria Isabel não poderia ir e, constrangida, aceitou. Achava que a veria sempre. Sentia também que era mesmo questão de sorte ter sido escolhida. Embora sua angústia não fosse pela necessidade de ter uma nova mãe, aquela que poderia ser, lhe agradava. Pela janela  do escritório pode olhar  para o pátio e ver as outras crianças, todas com o olhar misturando curiosidade e inveja. Viu Carrapicho, espreitando na porta, olhos enormes e sorriso contido e imaginou-se diferente, privilegiada. Perguntou novamente sobre como seria sua nova vida e, após escutar atentamente, concordou em ir. Foi ter com os irmãos, garantiu que voltaria para vê-los todos os dias e se foi. Nunca mais voltou. Edilberto recebia noticias dela através de um monitor das oficinas chamado “seu” Pereira. Depois de pouco tempo nem Pereira recebia mais notícias. Edilberto, Bernardo “Nacho”, Ânderson “Carrapicho” e Mario estavam sempre juntos. Falavam de muitas coisas; descobriam outras tantas coisas. Eram importunados por Rodrigo “Perneta” mas sabiam revidar as provocações. Rodrigo não gostava de Anderson, mas gostava de Mario que era quieto e bravo. Mario também começou a destratar Anderson, chamando-o sempre de Carrapicho, que, aliás, continuava o mesmo, com a energia de seus quase seis anos; procurando mãe!. Carrapicho, às vezes, tinham uns desmaios. Os monitores diziam tratar-se de verminose, já que o mesmo mexia em tudo e vivia um pouco sujo. Mas sua alegria espontânea cobria tudo isso. Passaram-se algumas semanas e uma mulher apareceu, interessada em conhecer Maria Isabel. Edilberto achou que, desta vez, poderia participar da conversa. Queria até mesmo interferir. Não pode. A assistente social  veio lhe dizer que ela ficaria muito bem, que a família era rica e que ele não atrapalhasse. Quieto, chorou baixinho. Sentou-se num canto do pátio com Mario e segurou-lhe as mãos. Aí, desabou num choro incontido, acumulado desde a morte da mãe. Mario o olhava quase impassível, talvez porque guardasse no peito o espírito resignado da mãe. Nacho chegou perto e pediu que Edilberto se segurasse. As coisas eram assim. Tinham que ser assim. Carrapicho quis brincar com a situação e Nacho lhe deu uma sacudida. Maria Isabel se foi, como Camila, e sumiu. Como Camila. As semanas se passavam e um dia Rodrigo “Perneta” quis tomar o pão de Carrapicho no café da manhã. Deu-lhe um tapa. Nacho e Edilberto partiram para cima e os amigos de Perneta arrumaram a maior confusão. Quando os monitores acalmaram a situação Carrapicho estava no chão, desacordado. Pegaram-no e o levaram para a enfermaria. Passa isso, cheira aquilo e ele, finalmente, se reanimou. Disseram que o tapa fora muito forte e logo ele estava correndo e brincando. Num domingo de visitas, uma senhora ficou conversando bastante tempo com ele. Ela se divertia muito. Quando, a tarde ela se foi, Carrapicho achou que ela poderia ser sua nova mãe. Esperou ansiosamente pelo domingo seguinte, mas a senhora queria mesmo era uma menina. E foi o que levou. Mas Carrapicho não perdia a esperança. Mais de onze meses se passaram e já estava perto do Natal quando Mario foi embora. Disseram a Edilberto que foi um casal de idade que o levara. Edilberto já esperava que Mario também  sumisse. Mas não foi o que aconteceu, Mário foi devolvido porque era muito rebelde Nem bem Mario retornou, entrou no abrigo um garoto muito esperto. Chamava-se Ricardo e era negro. Tinha 7 anos e logo se aproximou de Nacho e Edilberto. Ricardo era quieto e inteligente. Sua estória passava por espancamentos, alcoolismo e outras drogas usadas por seus pais. Ele, preso, e ela, prostituta e viciada. Formaram um grupo bastante unido, sempre ligados no “seu” Pereira, ouvindo seus ensinamentos. Pereira tomava conta dos cinco de forma diferenciada, cuidando para que não se envolvessem em nenhuma coisa errada. Mas, todo esse cuidado não impediu que, num domingo a noite, Carrapicho fosse levado urgentemente para um pronto socorro de um hospital público. Havia desmaiado mais uma vez e não recobrara a consciência. Foi tratado no corredor mesmo. Seu corpinho franzino estirado na maca,em nada lembrava aquele garoto alegre e esperto como um cãozinho brincando. De repente, começou a se mexer, os olhinhos se abriam e se fechavam, seus bracinhos pareciam querer pegar alguma coisa, seus lábios pareciam querer dizer algo. Os enfermeiros disseram ser um convulsão. Recebeu injeção disso e mais aquilo, mas não adiantou. Faleceu de madrugada.

Problemas do coração, disseram…

Contos Quase Reais/Zé Bandinha

Estavam assim, entristecidos, os cincos nordestinos cortadores de cana, na porta do bar, ouvindo pelo rádio, os comentários finais sobre a derrota de seu time de futebol, quando chegou um fanático torcedor do time vencedor, abrindo um largo e debochado sorriso….. E riu deles!

Era o negro Zé Bandinha, chamado assim por causa de uma doença venérea que havia tirado metade de seu pênis…..

Bateram-lhe tanto que o  coitado, ensangüentado, chegou a desfalecer, jogando no pó vermelho da calçada.

Foram- se então, os agressores; e nem bem chegaram na esquina,  já se arrependeram.

Voltaram, pegaram- no com jeito e o colocaram numa cadeira vazia e pediram uma cerveja.

Estavam assim, condoídos, a pedir desculpas quando Zé Bandinha, copo na mão, abriu seu largo e avermelhado sorriso, já sem dois dentes e desabou a grande cabeça sobre a fórmica da mesa.

Morreu ali mesmo, daquele jeito!