Sebastião José da Conceição era um negro tão negro que refletia o céu e, embora o negro não reflita a luz, no caso de Tião refletia apenas o azul do céu. Por isso era chamado de Tião Azul, depois ficou Tião Zulú, simplesmente. Apesar de seu enorme sorriso, que estava sempre metros a sua frente, havia sempre uma tristeza em seu olhar. Perdera sua mãe em seu parto e seu pai, Crispim da Conceição, domador de burros, quando tinha 9 anos. Morava com sua avó, no interior de Minas Gerais e agora, aos dezoito anos, estava seguindo a profissão do pai. Corria o ano de 1957 quando um colega, também peão de boiada, lhe fez um convite para trabalhar em uma fazenda no interior de São Paulo. Na mesma semana tinha sido convidado a ir para Goiás ajudar na construção de Brasília, que na época era mencionada como Novacap. Sua avó, sua única parente, nasceu numa senzala em Minas e já era mocinha quando aconteceu a Abolição. Gostava de contar estórias sobre seu pai, avô de Tião, que havia sido trazido da África, na época que o tráfico de escravos já havia sido proibido. Repetia que ele era um homem altivo, inteligente e, principalmente, muito sábio. Teve apenas ela como filha já que a esposa também falecera no parto. Ele lhe dizia sempre que, quando tivesse um filho, lhe ensinasse a ter dignidade e que nunca se curvasse, mesmo que isso doesse muito. Dizia que a dignidade era o bálsamo da alma e com ela seria possível suportar muitas dores físicas. Tião queria convencer a avó a ir para a fazenda no interior de São Paulo. A vida em Minas não estava fácil e as fazendas de café de São Paulo estavam perdendo muitos trabalhadores que migravam para a colonização do norte do Paraná. A avó de Tião chamava-se Sebastiana da Conceição, devidamente arredondada para vó Tiana. Era quase noite de um janeiro quente e ela estava torrando café, no quintal, numa fogueira ladeada por dois tijolos onde se encaixavam o bico e o cabo do torrador. Agachada e girando o torrador ela segurava um pequeno cachimbo na outra mão. Era o seu pito, onde ela saboreava o seu fumo de corda, picado por ela mesma, pouquinho antes de começar a pitar.. Andava sempre com um pano na cabeça e parecia que, propositadamente, sua boca não tinha um dente de cima, onde ela encaixava a ponta do cachimbinho. Quando Tião chegou, ela já percebeu que ele queria lhe falar.
¬ Vó, vamos pra São Paulo?
¬ Fazer o que , menino?
¬ Trabalhar, vó.
¬ E largar tudo aqui?
¬ Tudo o que, vó? Nós não temos nada aqui!
¬ Temos nossa história, nossa gente enterrada aqui.
¬ No Finados a gente vem visitar, vó.
¬ Mas eu nunca saí daqui. Quase sessenta anos morando no mesmo lugar, quase que na mesma casa. Vamos deixar nossa casa?
¬ Mas, ela nem é nossa, vó. A gente nem tem documento dela.
¬ Mas ninguém mais tem também. E o governo não vai querer esse pedaço de terra que ninguém sabe onde fica.
¬ Mas aqui não tem futuro pra mim, vó. E eu não posso deixar a senhora sozinha. Eu tenho que continuar meus estudos, arrumar trabalho que me dê dinheiro pra eu pensar em formar família.
¬ Você já está pensando em mulher, menino?
¬ Não sou mais menino, vó. Não vou servir o exército por excesso de contingente, mas já sou homem.
¬ Não sei não. Pra ser homem é preciso mostrar atitude.
¬ Então, vó, é isso que eu quero fazer. Tomar atitude, mudar nossa vida.
¬ Não sei se me acostumo, não. Como será que é lá? O que será que tem lá? Como será o povo de lá?
¬ Se a senhora não se acostumar a gente volta, vó. Eu te prometo isso. A gente pede para os nossos vizinhos tomarem conta da casa enquanto isso. A gente faz assim, eu vou primeiro, vejo como é e, ser for bom, eu venho buscar a senhora, tá bom?
¬ Ah, se for assim, tá bom; pode ser.
E o café continuava sendo torrado. Envolto naquele odor forte e agradável, Tião saiu em busca de seu colega para dizer que iria com ele para São Paulo. Aí, ficou sabendo que era para trabalhar no cafezal, morar numa casa da colônia, e que ganharia um salário pago semanalmente para poder ir na cidade no sábado comprar mantimentos e o que mais quisesse. Seu colega lhe disse que lhe emprestaria o dinheiro das passagens que deveria ser devolvido assim que fosse recebendo. Ficou sabendo também que a fazenda era de italianos e que ficava na região noroeste do estado entre Lins e Getulina, quase as margens do Rio Feio. Embora nunca tivesse visto um cafezal Tião ficou encantado com a possibilidade. Ficar naquela cidade minúscula do sertão mineiro ou ser ajudante de pedreiro na construção de Brasília certamente seria muito pior. Tião voltou para casa, contou para sua avó a decisão de ir e nem dormiu direito naquela noite. Uma semana depois estava em um ônibus indo para uma cidade vizinha onde pegaria outro ônibus e três ônibus depois estava num ponto sem nada de uma estrada de terra entre duas pequenas cidades do interior de São Paulo aos pés de uma placa que dizia Fazenda São João a 4 km. E aí foi ele e a família de seu colega, que era ele, a mulher e dois meninos de 8 e 10 anos, com sacos e malas nas costas em direção ao seu futuro. Mas, não era bem assim. Quando chegaram na sede da fazenda já era quase noite e o colega de Tião foi sozinho se apresentar aos novos patrões. Voltou com a chave da casa e a promessa de uma refeição para a família. Ele deveria voltar depois de se acomodar, munido de uma vasilha para pegar sopa e pão. A casa era de madeira, tinha luz elétrica e dois quartos, sala e cozinha. O banheiro era no quintal e o WC era ao lado, também no quintal, uma espécie de fossa, carinhosamente, chamada de “casinha”, com um buraco no chão. O banheiro era um tipo de balde com um chuveiro que era abastecido com água morna ou fria e depois içado por uma corda sustentada por uma polia. Depois a corda era amarrada e a torneirinha do chuveiro era aberta. O chão era de taboas e a água escorria entre elas para a terra. Depois que todos tomaram banho, o colega de Tião foi buscar o jantar, que era uma sopa de macarrão com batata e cenouras e dois pães caseiros.
¬ E a minha casa?
¬ Calma Tião. Amanhã a gente vê isso.
Mas no dia seguinte Tião ficou sabendo que ele não teria uma casa. Seu colega o convidou apenas para aumentar sua família e ter mais mãos para o trabalho. Disse que sua família era muito pequena para ser contratada e que não se preocupasse pois iria tratá-lo como a um irmão. Tião irritou-se, sentiu-se traído e disse que iria embora. Quando foi alertado para as despesas da viagem ficou mais irritado ainda. Mas não tinha outra saída. Dormiu no chão, naquela noite. A casa não tinha nenhum móvel. No dia seguinte começaria a trabalhar no cafezal, juntaria o dinheiro necessário e iria embora. No seu primeiro dia nem conversou com seu colega, mas fez tudo o que lhe foi pedido. Tinha que capinar embaixo dos pés de café, um serviço relativamente fácil. Assustou-se com algumas cobras mas nada que ele não conhecesse, Até mesmo uma cobra dormideira enrolada nos galhos do cafeeiro tocou-lhe o braço mas ao ver que uma menina a pegou nas mãos e ficou brincando com ela não pode conter um sorriso. Assim foi até chegar sábado quando finalmente iria receber seu dinheiro. Mas, não recebeu nada. O pagamento era feito por família e foi seu colega quem recebeu. Este apenas lhe disse quanto era sua parte, que era muito pequena, mas mesmo assim seria abatida das suas despesas. Tião nem quis ir na carretinha do trator para a cidade. A colônia, que era formada por uma fileira de oito casas, ficou vazia, naquele final de manhã de sábado. Já era março de 1957 e as chuvas já começavam a rarear, mas deixando ainda o tempo bem úmido Aí sentou-se embaixo de uma enorme mangueira Bourbon e sentiu uma imensa vontade de chorar. Não tinha feito nenhuma amizade ainda já que pensava em ir embora, além do que estava muito chateado para ficar conversando. Lembrou de Minas e de Vó Tiana, com seu jeito manso de falar e aquelas palavras sempre repletas de paz. Sentiu o gosto da broa e da enorme quantidade de erva doce que ela colocava na receita. Lembrou de sua última doma que lhe causou duas quedas feias. Nunca conseguira esquecer que foi numa queda dessas que seu pai quebrara o pescoço. Como era muito criança lembrava-se pouco de seu pai mesmo porque ele vivia pelas fazendas de Minas e da Bahia formando tropas. O que ele sabia dele era o que sua avó lhe contara e uma das coisas que ele se lembrava é que ela sempre o comparava ao seu pai quando ficava angustiado do jeito que estava agora. Quieto, olhando para um vazio distante, parecia procurar um horizonte infinito. Parecia ver grandes, imensos campos, com o sol deitando suas cores em árvores disformes e animais fugazes. Sentia seu espírito vagar por savanas que ele nunca tinha visto com o peito estufado por um orgulho soberano, imperial. No fim, saía fortalecido daquela estranha letargia. Quase sempre era assim. Agora, despertou pelo farfalhar das folhas caídas da mangueira pisoteada pelas patas de cavalos. Levantou o olhar e viu seu novo patrão, rosto avermelhado, chapéu de feltro marrom, segurando um rebenque no punho da mão direita que balançou quando tocou a aba do chapéu num cumprimento.
¬ O que faz aqui, rapaz?
Tião levantou-se lentamente e explicou, educadamente sua estória, palavra por palavra. Só quando terminou é que percebeu que o patrão não estava sozinho; haviam mais dois cavalos e sobre eles, seu casal de filhos adolescentes.
¬ Tenho um potro “inteiro” na baia. Se você domar o animal para mim, eu te arrumo uma casa para você trazer a tua nona.
¬ Faço isso já!
¬ Então, vamos lá.
E pela tarde inteira Tião montou o potro; bravo, violento mesmo. Mas Tião sempre achava que amansar burro chucro era bem mais difícil do que aquele cavalo que ele nem conhecia a raça. Ficou sabendo depois que era mestiço de andaluz, comprado de um espanhol da região. Quando, no começo da noite, o colega de Tião voltou da cidade, já o encontrou diferente, mais calmo. E no domingo de manhã o filho do patrão veio chamar Tião, pois seu pai queria lhe falar.
¬ Você é mesmo bom. Quero lhe propor um acordo. Tenho um irmão que cria cavalos para montaria, num sitio aqui perto. Eu te dou a casa e um dinheiro para amansar os potros dele. Você vai ter que morar aqui porque lá não tem colônia. Interessa?
¬ Claro. Quando começo?
¬ Vou te levar lá. Fernando, leve Tião até as cocheiras. Arreie dois cavalos. Sele o Trovão pra mim. Para ele, empreste o teu baio.
¬ Tá bem, pai.
A vida de Tião começou a mudar a partir daí. Sua educação, sua coragem e seu olhar firme, apesar de sua pouca idade, impunham um respeito incontestável. Como falava baixo e respeitava a todos começou a ganhar fama e três meses depois já fazia serviço de doma para outros sitiantes, com a devida autorização de seu Francesco Quaglioto, o patrão. Com isso guardou algum dinheiro e logo em seguida comprou seu próprio animal. Sua casa era nova, com madeira recém cortada e um fogão a lenha do jeito que ele pediu. Ajudou até a puxar os fios para a instalação elétrica Finalmente poderia ir buscar sua avó. Quinze dias depois estava arrumando o colchão de crina que havia comprado especialmente para a avó, já que ela vivia reclamando do seu velho colchão de palha de milho, aliás, feito por ela mesma. Vó Tiana gostou muito da casa e só reclamava quando ela estalava, isso em virtude da madeira estar secando. Ela achava que eram espíritos. Tião pagou o empréstimo feito pelo seu colega peão e passou a cumprimentá-lo apenas formalmente. Não se cruzavam mais já que a atividade de ambos era distinta, mas a mulher de seu colega passou a ser a grande companheira de sua avó, já que as duas eram da mesma cidade. Tião foi alfabetizado em casa pela avó e com 19 anos não queria mais ir no grupo escolar. Mesmo assim foi para Lins e procurou saber nas escolas como poderia fazer para continuar os estudos. Conseguiu uma espécie de curso intensivo, chamado Madureza, onde estudava em casa e apenas fazia as provas. Assim conseguiu um diploma do ensino primário e festejou com os peões da fazenda que comemoravam o título de campeão mundial de futebol na Suécia. Agora queria fazer o ginasial onde a primeira serie tinha alunos de 11 anos. Matriculou-se numa escola em Getulina e cavalgava 12 km todo dia de manhã para freqüentar as aulas. A principio envergonhava-se, mas depois todos passaram a respeitá-lo pela sua dedicação e pela postura. Tinha um talento especial para escrever e era solicitado pelos colegas a ajudá-los quando a tarefa de português era redação. Passou a praticar esportes nas aulas de educação física e logicamente levava muita vantagem em virtude de sua força e principalmente, de sua idade. Parou de participar das equipes de vôlei, basquete e handebol. Achava injusto. Um dia foi surpreendido pelo Sr. Francesco que praticamente o obrigou a mudar de escola. Seus dois filhos estudavam em Lins em um colégio particular muito conceituado e Fernando, seu filho, estava sendo ameaçado por um grupo que tinha tentado se aproximar de Mariana, sua filha. A revista O Cruzeiro trazia reportagens de grupos cariocas de jovens classe média alta que praticavam a curra ou estupro em garotas na escola. Seu Francesco temia que isso acontecesse em Lins com sua filha. Tião estava na terceira serie, com 22 anos, mesma serie de Fernando, com treze anos. Mariana estava na segunda serie, já que só tinha 12 anos. Tião seria uma espécie de segurança dos dois. Tião nem se importou com a diferença entre escola pública e particular, já que ele nem conhecia essa diferença. Só sabia que na particular estudava quem tinha dinheiro. Seu olhar não permitia brincadeiras de ninguém e parecia ter a idade de alguns professores. Com isso, Tião teve que aprender a dirigir o Studbaker da família, tendo o Sr. Francesco como instrutor. Um mês depois arriscaram-se, os quatro, tendo Tião ao volante, a enfrentar os vinte quilômetros de terra até Lins. Uma semana depois Tião já fazia o trajeto sozinho com os dois. Na escola Tião não teve nenhum problema inicialmente. Devorava os livros e antecipava-se as aulas. Era muito curioso. Quando o professor começava a matéria, ele já tinha perguntas inteligentes referentes a trechos que ele não tinha compreendido. Eram pouquíssimos negros naquela escola. Eram quatrocentos alunos brancos e três alunos negros. Diziam que eram dois mulatos e um negro; ele. Mas isso não o incomodava. E Fernando vivia contando estórias a seu respeito, de como ele era forte e como montava touro bravo e amansava burro chucro. As ameaças a Fernando e a Mariana acabaram e um dia Tião ganhou um concurso interno de redação. Duas professoras de português estavam criando o jornal da escola e o convidaram a participar. Tião disse que só participaria se Fernando e Mariana também participassem. Era uma forma de ficarem juntos. Na fazenda Tião continuava a cuidar das cocheiras e domar burros e cavalos quando precisassem. A avó estava bem e passou a ser a benzedeira do lugar. Juntou as mulheres e fazia o Terço Cantado. Sua calma e sua educação deixavam as pessoas muito confiantes em suas rezas. Sua casa passou a ser freqüentada até por colonos de outras fazendas. Tião achava isso bom, porque não precisaria se preocupar em deixar Vó Tiana sozinha. Ela nunca ficava sozinha, e além disso Tião passou a melhorar a casa com móveis novos e seu primeiro jogo de sofá. Ainda lhe deu de presente um pequeno rádio transistor a pilha para que ela pudesse acompanhar sua rádio novela em qualquer lugar.Vó Tiana, que nunca tivera um rádio em toda a sua vida, não o largava em nenhum instante. Tião comprava caixas e caixas de pilhas, já que ela fazia questão de ouvir o rádio andando. Gostava de ouvir as rádios de Lins, que tocavam desde valsas de Straus a Caruso e Yma Sumac, Mas, pelas ondas curtas ouvia também emissoras de São Paulo, e principalmente a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Ouvia tanto que até Tião, que nunca se interessara por rádio passou a ouvir a programação junto com ela. Gostava muito de um cantor mexicano chamado Miguel Aceves Mejia. Quando Tião estava por perto e o tal cantor soltava a voz, vó Tiana corria a passar o rádio para Tião ouvir mais de perto. No ano seguinte a seleção brasileira de futebol foi novamente campeã no Chile e Tião e Fernando se formaram. Tião fez questão de levar sua avó ao baile de formatura. Ela nunca tinha ido a um baile em toda a sua vida de quase setenta anos. Tião procurou o seu patrão e disse que voltaria a escola pública para fazer o colegial, que não precisava que gastasse mais com ele, pois Fernando já não precisava mais de proteção. O Sr. Francesco nem deixou que terminasse de falar e praticamente exigiu que continuasse naquela famosa escola particular. Dizia que Fernando melhorou muito com a sua companhia e que Mariana se sentia muito protegida com ele por perto. Mesmo dizendo que só estava trabalhando meio dia, na parte da tarde, Tião continuou ganhando até mais que no começo. Pode começar a fazer uma poupança que, em principio, guardava em casa. Depois procurou um banco e abriu uma conta. Lá sentiu que era pouco o que tinha. Mas era seu e ia aumentar. O jornalzinho da escola era um sucesso, voltado para as coisas da juventude e falando do rock’n roll de Elvis Presley e Celi Campello. Mariana , agora também no colegial, gostava de escrever sobre as coisas da estrada de ferro Noroeste do Brasil que ajudava muito na economia da cidade, inclusive transportando o café da fazenda de seu pai. Visitava a estação ferroviária com freqüência e numa dessas visitas pode ver grande movimentação de soldados do exercito. Aí ficou sabendo de uma revolução que havia acontecido. Na época ficou conhecida como “Revolução de Rádio” porque ninguém sabia de nada, só pelo rádio. Final de 1964 e o Sr. Francesco sofre um derrame cerebral ao discutir com o guarda livros da fazenda. Esse contabilista prestava serviço a várias fazendas da região e era muito conceituado. Mas um dia o Sr. Francesco quis conferir saca por saca de café e venda por venda e aí pode perceber que estava sendo roubado. Uma discussão violenta e uma veia estourou. Tião colocou o patrão no carro e junto com dona Antonella , sua patroa correu para o hospital em Lins. Isso salvou sua vida mas o colocou em uma cadeira de rodas para sempre. Embora Afonso, o irmão do Sr. Francesco procurasse ajudar, seus negócios o impediam de ficar na fazenda. Por isso Dona Antonella a toda hora chamava Tião para resolver os mais variados problemas. Inclusive Tião foi a caça do contador e com ajuda de um advogado conseguiu recuperar parte do dinheiro desviado. Tião parou de domar e colocou outro colono para tomar conta das cocheiras que tinha pelo menos uma dúzia de bons cavalos. Um dia Tião pegou o Sr. Francesco no colo e o colocou sobre Trovão, simplesmente. O animal permaneceu imóvel, mas foi o suficiente para o Sr Francesco esboçar um leve sorriso. E assim, todo dia de manhã, Tião repetia o ritual; e por alguns minutos o Sr. Francesco parecia feliz. Dona Antonella insistia para Tião concluir o colegial, afinal era o último ano, mas este achava que era hora de devolver o que o Sr. Francesco fizera por ele. Até um professor da instituição onde eles estudavam veio visitar a fazenda tentando fazer com que Tião voltasse, mas foi em vão, pararia mesmo ao concluir o segundo ano do colegial. No final do ano de 65, na festa de formatura de Fernando, o Sr. Francesco teve uma parada cardíaca. Mesmo estando a alguns quarteirões do hospital em Lins e chegando em minutos, nada adiantou. A família nem voltou para a fazenda. O velório foi em Lins e ali ele foi enterrado. A fazenda ficou de luto por oito dias. Nada faziam. Os colonos se preocuparam e procuraram Tião. Na sede da fazenda,dona Antonella, Fernando e Mariana não queriam falar com ninguém. Tião pegou o carro e foi até o sitio do Sr Afonso Quagliotto , irmão do Sr. Francesco buscar uma orientação. Este deu um dinheiro para Tião pagar os colonos e pedir que todos voltassem ao trabalho. O café precisava terminar de ser secado e ensacado. A tulha estava cheia. Era final de ano, tempo de chuvas. Tião fez isso e, aos 26 anos, passou a ser mais respeitado pelos colonos. Começou a ser chamado de capataz e até mesmo de administrador da fazenda. Dona Antonella dependia dele para tudo e isso tomava todo o seu tempo, afastando-o de sua avó. E ele sentia muita falta dela, principalmente em momentos como esses. Na frente de sua casa, que era a última da fileira de casas da colônia, em relação a casa de dona Antonella, ele construiu um banco de madeira usando dois troncos de árvore e uma taboa. Sua avó encheu a frente da casa com plantas de todo tipo, principalmente as que ela usava para suas rezas. Isso dava um aroma gostoso a quem se sentava ali, principalmente no finalzinho da tarde. E numa dessas tardes Tião chegou e nem entrou em casa; sentou-se ali e ficou. Como era a última casa ninguém passava por ali e as crianças da colônia ficavam num campinho de futebol a uns 500 metros dali, jogando bola ou brincando de qualquer outra coisa. De dentro de sua casa vinha um agradável cheiro de sopa de feijão com macarrão. Dali viu sua avó jogando umas cascas de legumes para as galinhas, mas não a chamou. Já era noite quando sua avó percebeu sua presença. Ela saiu querendo ver se ele chegava, mas ele já estava ali fazia um bom tempo.
¬ Uai, menino, pensando aí?
¬ É isso, vó.
¬ Tem tempo que você está aí?
¬ Era sol ainda, vó.
¬ Nem tomou banho. A janta está pronta.
¬ Tenho fome não.
¬ Ô, menino, o que te azucrina as idéias?
¬ Essa vida, vó. Senta aqui juntinho.
¬ Então, fale.
¬ Faço tudo direitinho, vó. Sou homem pra caramba, não minto, sou justo, comecei a juntar dinheiro. E porque esse aperto no meu peito? É direto assim.
¬ Sempre tive medo de você ser como seu pai. Ele nunca se conformou com a viuvez, mas nem era só por isso. Ele sumia no mundo querendo achar um pouco de paz. Um dia ele me disse isso. Ele também ficava num canto, pensando, olhar perdido. Que nem você fica agora.
¬ Essa tristeza é de nascença, então?
¬ Como pode ser? Como alguém pode nascer triste? Todo dia a gente ganha um dia. Quando benzo digo pra mãe que a benção maior é viver. E viver sem o mal; não enganar ninguém e ensinar o filho a viver direito. Rir das coisas, entende? Mas as pessoas vivem só as coisas ruins, ficam curtindo a mágoa, lembrando do mal feito dos outros. E como você pode ser triste? Se você só faz as coisas certas?
¬ As vezes parece que eu não existo. Só sirvo pra trabalhar, ajudar os outros. A senhora lembra da minha formatura? A senhora não sabe, mas quase eu não vou. O clube em Lins não queria que eu levasse a senhora por causa da minha cor. Aí o patrão brigou e conseguiu o convite pra senhora. Quando o Fernando e a Mariana iam no clube eu tinha que esperar do lado de fora. O patrão disse que ia me colocar como sócio, mas o clube disse que não podia. As pessoas me aceitam mas não me querem como amigo. Como eu posso rir das coisas, vó?
¬ É que nós somos de outras terras, menino. Viemos da África, temos outros costumes, outro jeito de pensar.
¬ Não acho não, vó! Eu nasci aqui, em Minas Gerais. Sou brasileiro como o Fernando, que o pai veio da Itália. Não é igual, vó? E o meu pai também nasceu aqui. Então sou mais brasileiro que o Fernando, se é que alguém pode ser mais brasileiro que o outro.
¬ É que parecemos diferentes deles, menino.
¬ Ah, não, vó! Diferente é aquela japonesada da Primeira Aliança, ali perto de Guaimbê. Eles nem se misturam com a gente. Na escola é difícil fazer amizade com eles.
¬ É por causa da língua japonesa. É difícil pra eles.
¬ Quando eu cheguei aqui, todo mundo percebia que eu era mineiro, por causa do jeito de falar, mas ninguém recusava uma conversa.
¬ Mas não compare assim. O que é que te incomoda de verdade?
¬ Quer saber mesmo, vó? É essa solidão. Só saio com mulher da vida, pra poder ter companhia. E tenho que ir pra Lins, naquelas casas lá. Na escola não consegui nenhuma namorada, nem feia nem gorda, nem zarolha, nada. Já vou fazer 27 anos, vó! Todo mundo diz que converso bem, que sou educado, respeitador.
¬ Tudo tem sua hora, Tião. Tenha paciência e continue sendo do jeitinho que você é. Eu pensei que seu problema de tristeza fosse igual de seu pai. Mas não é não
¬ Não?
¬ Teu pai era um peixe fora d’água. Sabe que ele dizia que tinha saudade da Guiné?
¬ Nós viemos da Guiné, vó?
¬ Daquela região. Mas como seu pai podia ter saudade de um lugar que ele nem conhecia? Se nunca tinha ido lá?
¬ Acho que isso eu aprendi na escola, vó, numa aula de biologia. É memória genética.
¬ O que é isso, menino?
¬ Explico. Depois eu fui à biblioteca do colégio pesquisar com mais dois colegas. Conforme a gente vai vivendo, os fatos vão ficando gravados em nossa memória e passam de pai para filho. Foi um padre trabalhando com ervilhas que descobriu isso. Ele provou direitinho, vó. Um pouco do que a gente é, passa para quem vem. Essas lembranças também ficam e passam para os filhos. Deve ter sido isso.
¬ Ah, muito complicado. Vai tomar seu banho, já é tarde. A sopa está secando, de tanto tempo que tá pronta.
Nos meses seguintes pouca coisa mudou. A não ser a presença de Tio Afonso que foi rareando cada vez mais até se tornar ausência. Dona Antonella não tinha jeito para o comercio, nem mesmo para administrar a cultura do café, onde o seu conhecimento era bastante básico. Fernando entrou na Faculdade de Odontologia e passava o dia inteiro em Lins. E nos finais de semana também ficava em Lins. Não queria saber da fazenda. Mariana não quis continuar os estudos, preferiu ser dona de casa, fazendo companhia para a mãe. Mesmo com o seu tio Afonso e Tião falando muito para que ela freqüentasse uma faculdade fez com que ela pensasse nisso. Na verdade, ela tinha o apoio da mãe para continuar em casa. Além de caseira, Mariana, nos seus dezoito anos, era muito festeira. Todo mês tinha uma festa na fazenda e pelo menos um bailinho na tulha. E era Mariana quem organizava tudo. Vinha gente de todo lugar. Entre seus colonos tinha violeiro, sanfoneiro, cantor e todos gostavam muito de dançar. Na colônia moravam aproximadamente 50 pessoas, entre adultos e crianças. Em dia de festa esse número chegava a mais de quinhentas pessoas. Vó Tiana era quem puxava o terço cantado e Tião era quem organizava os torneios de futebol cinco ou seis vezes por ano. Esses torneios foram criados pelo Sr. Francesco e Tião deu seqüencia. E nesses quase dez anos nunca teve nenhum problema mais grave de violência. Eram sempre dez equipes de Lins e Getulina e das fazendas vizinhas em busca de um simples troféu e muitas horas de brincadeiras e gargalhadas. Tião acabou montando um pequeno bar perto do campo e aumentando o seu “pé de meia”. Vendia cervejas, refrigerantes, doces e principalmente pedaços do pão de torresmo feito pela vó Tiana, aliás o único salgado do bar;.E Mariana era quem o ajudava, inclusive servindo no pequeno balcão. Mariana era baixinha, , estava engordando um pouco e gostava muito de ficar perto de Tião. Gostava tanto que acabaram namorando e se casando dois anos depois. Foi uma das maiores festas da região e uma união nem um pouco contestada. Todos achavam que era o que tinha que acontecer. Só Fernando que sentiu um pouco de ciúmes, mais tarde explicado quando revelou sua opção pela homossexualidade. E assim que se formou foi clinicar em São Sebastião, uma cidade da baixada santista em sociedade com um colega. Dona Antonella, então fez questão de dar o seu quarto para Mariana e Tião e ir para o quarto de Fernando que era maior que o de Mariana; isso contra a vontade de Tião, mas com a imensa concordância de Mariana. Já era final de tarde de um novembro de 1968 quando Tião e Mariana, brincando com Marciano, o primeiro filho já com quase um ano, na área da casa, viram um carro chegar. Era Fernando que, apesar da barba, foi rapidamente reconhecido por Mariana que o saudou com um grito. Dona Antonella veio correndo da cozinha com a mamadeira ainda sem tampa e entregou a Mariana. Desceu os quatro degraus da escada de frente da casa num salto só e correu para abraçar Fernando. Aí percebeu que haviam mais três pessoas, dois rapazes e uma moça e que estavam com uma aparência suja, cansada, preocupada. Convidados a entrar, pediram por água e comida. Sentados os quatro na mesa da cozinha e ladeados por Tião Mariana e dona Antonella comeram como se fosse a última refeição. Dona Antonella começou a perceber que não era uma simples visita quando viu Fernando chorando.
¬ O que foi, meu filho? Porque o choro?
¬ Nada não, mãe. É de emoção por estar em casa. A gente viajou muito pra chegar aqui.
¬ E porque seus amigos estão assim tão sérios? Vocês não estão contentes, por estarem aqui?
¬ Claro, senhora, disse Regina , a moça. A gente está assim porque estamos muito cansados.
¬ É, mãe, daqui a pouco vamos estar melhor
¬ É que faz tanto tempo que a gente não se vê que esperava que você iria ficar mais contente. Mas, muito bem, se é cansaço, então o melhor é vocês tomarem um bom banho e caírem na cama. “Domani” a gente se fala, “va bene”?
Depois de alguns instantes e muita conversa entre Tião e Dona Antonella decidiram trazer Vó Tiana para dormir no antigo quarto de Mariana e os quatro iam dormir na casa de Vó Tiana. Lá tinha mais espaço, com dois sofás e uma cama. Dona Antonella queria que Fernando dormisse com ela, mas ele preferiu ficar com os amigos. Depois de muita arrumação por Mariana , vó Tiana e dona Antonella, a casa ficou em condições e foram todos dormir sob o suave aroma da flor de beladona e a cabeça cheia de pensamentos difusos. Tião, sempre muito curioso, estava sempre ligado a todos os acontecimentos , tanto locais como nacionais. Trocou algumas frases com Mariana antes que ela “pegasse” no sono. Por isso ela não entendeu nada quando ele falou de alguns cartazes de “Procurados” que ele tinha visto nas paredes do banco onde ele movimentava sua conta.
Na manhã seguinte, na hora do café, eles ainda continuavam dormindo. Dona Antonella demonstrava não ter dormido bem. Estava silenciosa e Tião começou a brincar com ela, usando Marciano como motivação. Mariana não percebeu nada e tomava seu café tranquilamente quando vó Tiana sentou-se a mesa.
¬ Os meninos ainda não acordaram?
¬ Ainda não, dona Tiana. Eu quero tanto conversar com o meu Fernando.
¬ A senhora quer que vá chamá-los, mama? (Era assim que Tião passou a chamar Dona Antonella depois do casamento, copiando a fala de Mariana). Eu acho que pra eles é cedo ainda, mas se a senhora quiser…
¬ Cedo? Já passa das sete…
¬ Na cidade o horário é outro, mama
¬ Nem perguntei quanto tempo eles vão ficar, se eles vieram pra cá ou se estão de passagem. Não deu para conversar ontem.
¬ O jeito é deixar a mesa do café pronta. Na hora que eles acordarem certamente virão aqui. Vou ter que sair. Acho que vou ter que arrancar mais pés de café, viu mama, o governo não vai dar financiamento para o café nessa região. Eles querem mesmo que a gente mude a cultura.
¬ Mas mudar pra qual cultura? Tá tudo sem preço! O amendoim deu certo?
¬ Comparando com o café de hoje até que deu. O problema são esses sujeitos que vem comprar a safra aqui na roça. Eles estão pondo o preço que eles querem. Não tem preço mínimo.
¬ Per la Madona! E o que você está fazendo?
¬ Estou indo vender fora, na indústria, lá em Bauru, na Sanbra. Por isso pegou um preço melhor. Agora não sei se aumento o amendoim ou começo o algodão. O milho deu bem. Estou vendendo direto para duas granjas de Lins. Mas os colonos estão querendo ir pra cidade. Vai faltar gente pra colheita.
¬ Mas eu confio em você, meu filho. Confio que você vai arrumar um jeito de tocar nossas terras da melhor maneira possível.
¬ Ah, pode ficar certa que sim, mama!
Mariana, que estava dando banho de sol em Marciano, na área da casa, gritou lá de fora:
¬ Mama, tem um dos rapazes sentado lá na beira do campo. Não é o Fernando.
Dona Antonella, saiu, esfregando as mãos no avental e viu, lá ao longe, a mais ou menos mil metros, um dos amigos de Fernando, sentado na grama. Sem nada falar com os outros foi andando até ele. Ficou, então, conhecendo Antenor, também descendente de italianos, da região de Piracicaba, também dentista e conhecido de Fernando por serem do mesmo partido político.
¬ Partido político? Mas Fernando nunca gostou de política!
¬ Mas agora ele gosta. E participa das atividades do partido.
¬ E aquela mocinha? Parece tão novinha. É sua irmã?
¬ Não. È minha namorada.
¬ Namorada? E os pais dela deixam ela viajar com o namorado? Mas, hoje é tudo tão moderno, não é mesmo?
¬ Ah, sim.
¬ E ela também é dentista?
¬ Não; ela é estudante de Letras.
¬ Você está melhor hoje, com a barba feita.
¬ Obrigado. E os outros também estão fazendo a barba. Logo estarão aqui.
¬ Mas se já estão acordados eu posso ir lá, não é mesmo? Quero ver meu filho Fernando.
¬ É que eles já estão mesmo vindo. Mas se a senhora quiser ir lá, posso até acompanhá-la.
¬ Olha eles lá, já estão vindo. Agora sim, é o meu menino, sem aquela barba horrível.
A casa de Vó Tiana ficava a mais 500 metros a frente do campo e ela não esperou. Foi ao encontro de Fernando e abraçados caminharam até a mesa do café. Falaram sobre amenidades. Tomaram leite e comeram muito queijo com pão caseiro. Vó Tiana passou outro café e continuaram conversando. O companheiro de Fernando era Zé Lucio, um rapaz magrinho, de cabelos longos que manteve o bigode bem aparado. Zé Lucio falava com muita fluidez e era muito agradável, muito diferente de Fernando, mais introspectivo mas não menos agradável. Apenas era mais quieto, mas continuava muito educado. Fernando havia prometido a eles uma cavalgada e, sem Tião para providenciar as montarias, foi ele mesmo encilhar os animais. Passearam pela fazenda e depois foram até a estrada que estava terminando de ser asfaltada e estava sendo preparada para chegar até Marilia.
¬ Vocês repararam? Tem telefone na fazenda.
¬ Claro. O Tião providenciou duas linhas. Uma, ele colocou na casa da avó dele.
¬ E esse Tião? Você não falou dele.
¬ Como não? Comentei que era meu cunhado.
¬ Mas você não falou que era um negro.
¬ Precisava?
¬ Na verdade, não. Aliás, foram as diferenças que nos uniu.
¬ Vamos voltar? Estou com fome.
¬ Está comendo, heim, Regininha?
¬ É o ar do campo..
¬ Tá bom… Vamos lá, no galope!
¬ Não! Não corre, tenho medo de cair.
¬ Pelo menos, vamos apertar o passo.
O cheiro de assado estava forte quando se aproximaram da sede da fazenda. Como a casa da Vó Tiana era longe da sede resolveram ir direto, não resistindo ao cheiro que parecia ter aumentado o apetite. Vó Tiana estava assando uma leitoa e ia fazê-la a pururuca. Mariana estava lavando as verduras para a salada e dona Antonella estava terminando de dar o ponto no molho do talharine.Sentaram-se a mesa no mesmo instante que Tião chegava para o almoço. Comeram elogiando o tempo todo e uma hora após estavam na varanda, nas redes e nas espriguiçadeiras. Era começo de uma tarde quente de verão. Tião já ia voltar ao trabalho mas uma pergunta de dona Antonella o fez ficar para escutar a resposta.
¬ Que negócio é esse de partido político, meu filho?
¬ Como a senhora está sabendo, mama?
¬ Seu amigo Antenor me contou.
¬ Foi até bom, mama. É por isso que nos estamos aqui. Nosso partido é pela legalidade, mama. O governo atual deu um golpe na democracia e nos somos contra.
¬ Golpe? Como assim?
¬ Eu imaginei que a senhora não soubesse de nada, mama. Nem soubesse o que aconteceu em março de 64, quando, também eu, ainda era um alienado.
¬ Alienado? Você era um alienado? O que é um alienado? O que você está dizendo?
¬ Estou dizendo que eu não era um cidadão brasileiro, consciente de meus direitos e deveres. Eu era apenas mais um que só vivia para trabalhar e pagar meus impostos e nem me incomodar com o que faziam os governantes.
¬ Mas, o que aconteceu? Porque você está dizendo isso? Que golpe?
¬ A senhora lembra do Jânio, que a senhora gostava tanto?
¬ Claro, o da vassourinha.
¬ Esse mesmo, mama. Esse cara quis aplicar um “golpe branco”, renunciando para conseguir mais poderes. Mas o congresso nacional aceitou a renuncia dele e deu posse ao vice que é o João Goulart.
¬ Ah, o Jango?
¬ Esse aí. Mas o Jango quis ser muito popular de uma vez só e se juntou ao um monte de sindicatos. Era uma opção de governo. Pode-se concordar ou não, mas nunca impedi-lo de tomar posse.
¬ Impediram? Quem impediu?
¬ O Adhemar e os militares
¬ O Adhemar de Barros? Nosso governador?
¬ Ele mesmo. E o Magalhães, lá de Minas Gerais.
¬ Mas eles não estavam contra os comunistas? Não fizeram aquela marcha da família lá em São Paulo? Ou foi no Rio? Na época, eu escutei na Rádio Nacional, no repórter Esso. Mas o que isso tem a ver com vocês?
¬ Nosso partido luta contra esse golpe, mama.
¬ Como assim, luta!?
¬ Nosso partido foi colocado na ilegalidade. Por eles, o nosso partido não pode existir. Então a gente é obrigado a agir na clandestinidade..
¬ Eu não estou entendendo nada do que você está falando, meu filho. Porque você é obrigado a agir na clandestinidade? Aliás, o que é “agir na clandestinidade”?
¬ Eles nos chamam de “terroristas”, dona Antonella.
¬ Regina!!!
¬ Também de subversivos. E somos procurados pela policia!
¬ Regina, pare com isso!!
¬ E somos do Partido Comunista
¬ É verdade isso, Fernando?
¬ Sim, é verdade, mama.
¬ Ah, Dio mio!!
¬ Vocês estão se escondendo aqui, então?
¬ Sim, Tião. É isso. Viemos de São Paulo, devagarzinho, parando em várias cidades para despistar, Saímos de lá há três dias.
¬ Mas, comunista, meu filho? Você era tão católico antes. O que foi que te fez mudar tanto?
¬ Eu continuo católico, mama. Aliás, a igreja tem ajudado muito a gente.
¬ Eu não acredito que a igreja católica tem ajudado os comunistas
¬ Tem ajudado e muito. As comunidades eclesiais de base são núcleos de jovens que também são contra os militares que, na verdade estão implantando uma ditadura no Brasil. Todos os partidos políticos foram extintos e só existem dois lados agora. Quem é a favor e quem é contra o governo. A Aliança Renovadora Nacional ou Arena e o Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, que acredita que pode fazer alguma coisa. Os militares precisavam de uma oposição oficial para não parecer uma ditadura aos estrangeiros. Mas existem os brasileiros de verdade que não aceitam uma imposição dessa e nos estamos entre eles.
¬ Mas você tem que pensar na tua mama, já sofro tanto pela tua ausência e agora vou sofrer também com a tua presença?
¬ Porque com a minha presença?
¬ Eu respondo, mama. É que é óbvio que virão te procurar aqui. A essa hora os colonos que forem a cidade vão comentar que você veio e trouxe três amigos. Em Lins tem quartel do exército, basta um rádio entre eles e logo estarão aqui.
¬ Mas, pra isso, Tião, terão que identificar a gente.
¬ E você acha que eles não tem a tua ficha? Só o fato de vocês terem parado com suas atividades normais é motivo suficiente para terem seus nomes anotados pela policia comum. Vocês sabem que hoje é assim.
¬ Eu falei isso, lembra, Antenor?
¬ Eu também falei. Tenho certeza que fui seguida várias vezes.
¬ E agora, será que não foram seguidos?
¬ Tomamos muitos cuidados. Acho que não fomos seguidos porque não vimos ninguém até agora. Fizemos uma escala de observação da retaguarda. Não deixamos de olhar para trás e para os lados por nenhum segundo, nesses três dias.
¬ Isso é vida, meu filho?
¬ Eu tinha que fazer uma escolha, mama. Aceitar ou lutar. Preferi lutar.
¬ Lutar contra o exercito inteiro? Nem se você tivesse outro exercito inteiro é garantia de vitória. Porque um grupo de moços acha que pode vencer o exercito?
¬ Porque a razão é nossa.
¬ Razão? Lembra de La Fontaine? Da fábula do lobo e da ovelha?
¬ Mas se você acha que está certo, e desiste, você não merece nada. Eu lembro quando você foi atrás daquele contador que roubou o papai. Você recuperou o dinheiro porque você estava certo, lembra?
¬ Lembro
¬ Nos achamos que estamos certos porque acreditamos que nenhum grupo armado pode impor sua vontade ao nosso povo. Lutamos pela democracia, pela igualdade de direitos. Direitos iguais comuns, por isso somos comunistas, entendeu, mama?
¬ Eu não entendo porque vocês estão fugindo. O que vocês fizeram de errado? Que crime vocês cometeram? Vocês mataram alguém? Roubaram?
¬ Não, dona Antonella. A gente tem feito reuniões onde a gente discute a atual situação. É isso que é proibido.
¬ Mas, só isso? Não acredito!
¬ Alguns de nosso grupo estão na luta armada, querem organizar grupos de guerrilha urbana, Nós queremos a mobilização, queremos falar aos operários nas fábricas para que boicotem a produção para protestar por esse estado de coisas. Trabalhamos com a inteligência, queremos mostrar que ninguém pode mandar em ninguém sem ter autorização para isso. Autorização das urnas.
¬ Não seria mais fácil vocês se inscreverem no MDB?
¬ Isso seria oficializar o golpe. Dar um aval aos militares e dizer que eles estão certos.
¬ Mas antes de 64 a política estava uma bagunça. Tinha partido pra dar e vender, literalmente.
¬ Mas isso é o que conta, Tião. Em um país heterogêneo como o Brasil é natural que existam muitas correntes de pensamento, que são, então, representadas por partidos políticos.
¬ Faz sentido, Mas como vocês são de um partido que não existe mais?
¬ Não existe pra eles
¬ E como você entrou nessa?
¬ Fomos, Zé Lucio e eu, num congresso de odontologia em Ilhabela e conhecemos Antenor. Aí fomos tomar um chopp e acabamos tomando uma aula de cidadania. Hoje ele é o comandante da nossa célula.
¬ “Célula”?
¬ É. O partido foi dividido em grupos chamados células e cada célula tem o seu “aparelho”.
¬ Aparelho?
¬ Isso. É o lugar onde a gente se reúne.
¬ E vocês querem fazer da fazenda o seu “aparelho”?
¬ Não, Tião. O motivo da nossa vinda é outro. Viemos buscar dinheiro.
¬ Como é?
¬ É isso. Vim buscar a minha parte na fazenda. Cada membro do partido tem que colaborar para as nossas atividades. Ainda mais agora que vamos mobilizar os estudantes e vamos fazer enormes passeatas no centro de São Paulo.
¬ Quer dizer que é por isso que vocês são chamados de “terroristas”?
¬ Por enquanto, Tião. Futuramente teremos mais ação.
¬ Que é isso, Antenor?
¬ É isso mesmo, Zé. Já falamos sobre isso.
¬ Sim, já falamos. Mas não concordamos.
¬ Agora não é hora nem lugar, companheiros. Mas voltando ao assunto do dinheiro..
¬ Não temos dinheiro em casa. E o que tem no banco é pra tocar a fazenda. A situação tá difícil
¬ Então, dê um jeito. Fale aí com sua mãe, Fernando, temos pouco tempo, você sabe disso.
¬ Calma, Antenor. É isso, mama. Você pode me ajudar?
¬ Ajudar você a ir embora? A fugir da policia? A lutar contra um exercito inteiro? Dio Mio, você não acha que está pedindo demais? E tanta coisa agora na minha cabeça. Mas você tem razão numa coisa; você tem direitos aqui. Não é Tião?
¬ Claro. Vou providenciar o que for possível. Com licença.
No começo da noite Tião chegou de Lins e entregou o correspondente a dois mil dólares a Fernando. Os quatro ficaram mais dois dias na fazenda e dona Antonella procurava ficar o máximo do tempo com Fernando. Passeavam de braços dados por todos os lugares, a maior parte do tempo em silêncio e no resto do tempo Fernando falava de suas atividades tentando convencer sua mãe de que estava fazendo a coisa certa. Dona Antonella gostava muito do moinho de fubá, movido por uma roda d’água, ao lado de uma pequena cachoeira. Fernando também gostava muito desse lugar. Todos nadavam ali, quando ele era uma criança. Enquanto isso, Antenor ficava o tempo todo tentando fazer ligações telefônicas sem dizer a quem. Finalmente foram-se e todos na fazenda passaram a acompanhar todas as notícias referentes ao movimento contra revolucionário. Dona Antonella chegou a se apropriar do rádio da Vó Tiana para poder acompanhar as noticias. Tiveram noticias de Fernando quase dois meses depois. Ele ligou reclamando de Antenor que queria passar para a luta armada. As passeatas organizadas por eles estavam sofrendo muita repressão e os estudantes participantes estavam temerosos. E muitos estavam desistindo. Antenor cobrava novas atitudes do grupo e isso estava incomodando Fernando e Zé Lucio. Dona Antonella ouviu tudo e quando desligou teve a impressão de que talvez tivesse seu filho de volta, longe daquela confusão toda. Os cartazes de procurados pelo Dops se espalhavam por todo o interior e Tião evitava levar Dona Antonella a cidade temendo que ela encontrasse o rosto de Fernando estampado em algum deles. Enquanto isso Tião procurava vender os cavalos do tio Afonso que decidira ir para a região amazônica em busca de terras baratas.
¬ Lá tem terra até de graça.
¬ É mesmo, tio?
¬ É. Nisso o governo militar tem razão; é preciso ocupar para não entregar. É a nova fronteira agrícola do Brasil.
¬ E como funciona?
¬ Simples. Você chega lá, derruba a mata e faz uma casinha. Depois vai num cartório mais próximo e diz que a terra é tua.
¬ Não acredito.
¬ Mas pode acreditar, Tião. No norte de Goiás tem muita terra boa pra pastagem. É só derrubar e colocar umas cabeças de gado e deixar. O problema é a chuva, falta de estrada, falta de luz, muito bicho, onça, essas coisas. Mas todo começo é assim, você sabe. Quando chegamos aqui, em 42, tudo era mato também. Olha como está ficando hoje. Tem até asfalto na porteira da fazenda.
¬ É verdade, tio.
¬ Lá também vai ser assim. Já estão construindo uma estrada chamada Transamazônica. Aquilo lá vai ficar bom.
¬ E a tia vai se acostumar?
¬ Claro, ela se acostuma com tudo. Depois que perdemos nosso filho, ela não pensa em mais nada.
¬ Como assim? Vocês perderam um filho? Eu não sabia.
¬ É. Ninguém comenta, porque foi uma grande tragédia. E o pior, meu filho foi o responsável pela morte de um colega também. Por isso ninguém comenta.
¬ Como foi? O senhor quer falar?
¬ Agora que estou pra ir embora posso falar. Meu filho, único filho, com treze anos, foi construir uma caverna num barranco, no pasto. Ficaram fazendo isso por uns dez dias e numa tarde ele não retornou pra casa. No dia seguinte encontramos a caverna desabada e, dentro dela, os dois corpo cobertos de terra.
¬ Que triste. Faz tempo?
¬ Uns dez anos. Ela não quis mais filhos e a dor parece não passar. Penso que se a gente sair daqui a coisa pode mudar
¬ Entendo. Pode ser.
¬ Mas fica combinado assim. Depois de vender todos os animais, eu vou pra Cuiabá. Você procura uns corretores pra vender a fazenda, tá certo?
¬ Claro. É o preço do alqueire; deixo com eles?
¬ Sim, e é por isso que precisa vários corretores. Como não tem plantação e as benfeitorias são para criação de animais, só vai pegar o que vale, se vender pra alguém que vai explorar o mesmo negócio. Se não, vai pegar só o valor do terreno.
¬ A casa é boa..
¬ É, mas quem compra, vai reformar de qualquer jeito. Isso não conta. O que vale é o preço do alqueire paulista. Lá no norte eles também usam o alqueire paulista e não o mineiro.
¬ Mas dá pra comparar?
¬ Nem de longe. O valor de um alqueire aqui dá pra comprar 5 a 10 alqueires lá. Isso se eu conseguir fazer documento da terra. Se aqui eu tenho 100 alqueires lá eu quero 500 alqueires pelo mesmo valor.
¬ Quanta terra! Fazer o que com tanta terra?
¬ Criar boi, rapaz. Se eu fosse você, convencia a Antonella a fazer a mesma coisa. E a fazenda de vocês tem o dobro da minha, daria pra comprar muita terra no sul do Pará.
¬ Por mim, fico aqui. Acho que por ela, também. Essa região está ficando boa.
¬ Você é quem sabe. Mas nos dois vamos nos falar por rádio amador. Lá em Getulina tem um amigo meu, o Mário Coruja, conhece?
¬ Já ouvi falar.
¬ Ele é rádio amador. Ele me ensinou a mexer no aparelho que eu comprei. Uma vez por semana você vai lá e ele te põe em contato comigo. Aí a gente vê como as coisas estão andando. Está bem assim?
E Afonso Quagliotto foi desmatar a Amazônia com incentivos do governo. E Tião nunca mais viu Afonso Quagliotto, que morreu de tristeza, alguns anos depois que a mulher morreu de Chagas, depois de quatro malárias. O Brasil inteiro comemorava a conquista do tricampeonato de futebol, no México. A euforia era tanta que até Dona Antonella, torcedora da Itália, soltou alguns fogos. Não havia mais colonos na fazenda. Além da casa de Vó Tiana, só duas casas permaneciam ocupadas, por moradores que eram considerados funcionários da fazenda. Por isso a festa acabou logo. E se não tivesse acabado, acabaria pela chegada de um jeep do exército do quartel de Lins, onde um tenente procurava pela mãe de Fernando.
¬ Seu filho quis abandonar o seu grupo e foi morto pelos próprios companheiros. Lamentamos pela senhora e por seus familiares.
Ainda havia cheiro de pólvora dos fogos de artifícios no ar quando Dona Antonella recobrou a consciência, embora houvesse se passado mais de uma hora. Deitada em sua cama, com Mariana esfregando álcool em seus punhos, ela abriu seus olhos pequenos e aí pode soltar um grito de dor. E aí chorou. Alto, forte, compulsiva e descompassadamente. Chorou como se todo o seu corpo fosse dor. E toda sua dor invadiu o quarto tomando a todos como reféns. E assim, Tião, Mariana, Vó Tiana e até Marciano, choraram, nem sabem eles por quanto tempo. E tempo depois, já no crepúsculo, canto dos grilos e o piar da coruja, quando Dona Antonella quebrou o silêncio.
¬ Tião, como foi isso?
¬ O tenente falou pouco, Mama. Quando a senhora desmaiou tive que deixá-lo para carregar a senhora pra dentro. Depois voltei lá e ele me explicou pouca coisa. E disse que eu comparecesse a Lins para ver as providencias que terão que ser tomadas.
¬ Só isso?
¬ Só. Ele disse que Fernando tinha procurado ajuda na policia para deixar a clandestinidade. Quando ficaram sabendo, mataram ele, no centro de São Paulo. Tudo isso, num só dia. O amigo dele também sumiu, mas não sabem se ele também foi morto. Vieram aqui por causa do depoimento que ele deu para a polícia. Se ele fosse no Dops teria ficado detido, mas como ele foi num distrito policial comum, pode sair. Ele não andou nem três quarteirões. Foi isso. Amanhã vou a Lins e fico sabendo mais.
Fernando foi enterrado perto do pai, em Lins. Dona Antonella fechou-se em seu quarto e só foi sair em janeiro de 71 porque Mariana começou a passar mal por causa de sua segunda gravidez. E nem mesmo quando a menina nasceu ela voltou a rir como fazia. Apenas sorria. Tião achou que podia chamar a menina de Fernanda pra que ela se sentisse mais próxima do filho. Mas pouco adiantou. Ela andava sozinha pela fazenda, ia até a cachoeira, a pé, e ficava lá por horas. Vó Tiana, sentava-se nas pedras e ficava observando, em silêncio, enquanto pitava. E, no final da tarde, a imagem daquelas duas mulheres parecia fazer parte da cachoeira e da roda d’água, que não rodava mais. Quase todo dia era assim e assim foi, por vários anos, mesmo depois do falecimento de Vó Tiana, em 76, uma semana depois dela ter completado 80 anos. Tião e Mariana tiveram outro filho e o chamaram de Francisco, em homenagem ao avô, Francesco. Tião vivia as voltas com problemas na fazenda. O “Milagre Brasileiro” estava se acabando e a inflação começava a afetar a todos. Ele tentava vários tipos de culturas e até mesmo tentou a criação de bicho da seda. Às vezes dava, às vezes não dava. Ele sentia que grande parte das terras estavam improdutivas e resolveu arrendar grande parte delas. Dividiu em vários sítios e fez correr a noticia. Da produção dos meeiros ele tinha de trinta a cincoenta por cento, dependendo da plantação. Ficou com setenta alqueires dos quais cincoenta ainda tinham café e os outros vinte eram a reserva de mata. Tião estava para fazer quarenta anos e continuava com o aspecto de um jovem. Parecia não envelhecer. Mariana, dez anos mais nova, engordara um pouco mais e parecia ter dez anos a mais. Dona Antonella, que perto de fazer sessenta anos é quem parecia ter muito mais. E além disso, desistira completamente da fazenda. Tudo já estava sob controle de Tião e isso às vezes o incomodava. Quando ia a Lins, ou mesmo a Getulina, no banco, na escola dos filhos, ou fazer compras, sentia que o olhavam com certa curiosidade. Ele era conhecido justamente por isso mesmo; ter-se tornado um fazendeiro pelo casamento com a filha do fazendeiro. Por isso evitava ir a cidade. E na fazenda não tinha com quem conversar. Mariana, agora com televisor em casa só queria saber de novelas, Marciano com onze anos, Fernanda com sete e Francisco com três anos eram a sua companhia enquanto assistia os jogos da seleção brasileira de futebol disputando a Copa do Mundo na Argentina. Enquanto isso lia muito, comprava revistas, jornais, livros, parecendo que com isso não se sentia tão só. Quando as crianças cresceram mais é que ele pode ter pessoas diferentes a sua volta. A pedido de Marciano, agora com 18 anos, construiu uma piscina perto da casa e fez uma boa área de lazer, enchendo a casa de jovens nos finais de semana. Pode reativar o haras, comprando novos animais, e dando um pouco de alegria a Dona Antonella que voltou a cozinhar e fazer companhia a Mariana na frente da televisão. Pode perceber que Francisco gostava muito de cavalos. Entretanto, os planos econômicos do governo deixavam Tião muito preocupado. Aceitou um conselho de um gerente de banco e investiu um pouco em dólares e em barrinhas de ouro. Desmembrou uma parte da fazenda, dividiu em três sítios de 15 alqueires cada e colocou cada um no nome de cada filho. O dinheiro do arrendamento de cada sitio ia para a conta bancária de cada filho Mesmo assim a fazenda ainda ficou com quase 150 alqueires, embora parte dela ainda continuasse arrendada. Conversava sobre o futuro, sempre que podia, com Marciano, 20 anos, e Fernanda, com 17, ambos numa faculdade de direito, em Bauru. Percebia que seguiriam o caminho de Fernando; não iam tocar a fazenda. Restava Francisco, com 13 anos e ainda no ensino médio. Marciano herdou os traços negróides do pai, Fernanda era mais clara, mas ainda com nariz largo e lábios grossos, embora tivesse o cabelo apenas levemente crespo. Mas Francisco herdou quase todos os traços da mãe. E principalmente, da avó. Dona Antonella, que parecia “ter” Fernando novamente, readquiriu a vontade de viver e, quando podia juntar a família, contava estórias de sua infância na Itália. No inicio da década de 90 Tião teve vários problemas econômicos. A inflação desestabilizava qualquer planejamento e, se ele não tivesse ouro e dólares guardados, teria passado mais dificuldades ainda. Um dos planos do governo reteve todo o dinheiro da população que estava em contas bancárias, impedindo sua movimentação. Apenas uma pequena quantia podia ser sacada, o que possibilitava, apenas, a cobertura das despesas diárias. O plano, obviamente, não deu certo e Tião teve que repensar a administração da fazenda. As condições mudavam rapidamente e havia uma efervescência política no ar. Bastava ligar o rádio ou a televisão que as palavras mais ouvidas eram “Impeachment” e “Inflação”. Marciano, já formado, conseguira o registro na entidade da sua categoria e instalou um escritório de advocacia em Bauru com mais dois colegas, entre eles, Bruna, sua namorada. Bruna era filha de ferroviários, também negra e muito ativa politicamente. Seu pai era sindicalista que, para cuidar de sua mãe doente, abandonou a luta sindical. Mas Bruna pregava o socialismo, era grande fã de Gonzaguinha e vivia cantando suas músicas. Marciano era encantado por ela. Fernanda, concluindo a faculdade, estava namorando um colega de classe que era “obreiro” de uma igreja evangélica. Tião e Mariana iam a Bauru, distante um pouco mais de 100 km, pelo menos uma vez por semana. E todo final de semana, os dois tinham que voltar para a fazenda. Era um combinado entre eles. Marciano, é claro, levava Bruna. Mas Fernanda não trazia Roberto, seu namorado. Ele sempre tinha muitas atividades na sua igreja. E todo final de semana, a casa da fazenda enchia-se de vida. Marciano convidava seus amigos de Lins e no sábado a noite sempre tinha muito samba, cerveja e frango frito. Dona Antonella esperava a semana toda para poder cozinhar e rir muito. E como ria. E também falava muito. Procurava deixar a todos muito a vontade, principalmente no grande almoço de domingo. E no final da tarde, antes da partida, Tião procurava conversar bastante com Marciano e Fernanda. Caminhavam apenas os três pelos caminhos entre as mangueiras. Tião começou a perceber que Marciano tinha muito a ensiná-lo, principalmente quanto as novas tecnologias. Celulares, computadores, novas técnicas de plantio. Fernanda falava das novas leis e de como a vida nas cidades estavam mudando. Havia chegado o momento de Tião mais ouvir do que falar. E Tião ouvia. E perguntava muito. Questões não respondidas ali, teriam que ser respondidas no próximo final de semana. E a cada segunda feira Tião sentia-se remoçado. Num desses finais de semana, Fernanda trouxe Roberto que queria pedir a mão dela em casamento diretamente a Tião. Ela já tinha terminado a faculdade mas não tinha passado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil para adquirir o registro, necessário para exercer a profissão. Enquanto isso, Fernanda ajudava Marciano em seu escritório. Roberto nem prestou o exame, seu objetivo era ser pastor evangélico e montar sua própria igreja. Tião, Dona Antonella e Mariana ouviam tudo isso e sentiam que era uma nova realidade. Não sabiam muito bem como tratar o assunto. E por isso, em principio, concordavam com tudo. Afinal, Marciano já havia dito que o rapaz era de bem, correto até demais. Ficaram noivos em Bauru, na casa dos pais de Roberto na noite do domingo que a seleção brasileira de futebol conquistara o tetracampeonato de futebol nos Estados Unidos. De presente de casamento Tião comprou uma casa em Bauru e a mobiliou completamente Casaram-se no final do ano, na fazenda numa festa que reuniu as duas famílias e teve um casamento católico e um evangélico. Dona Antonella não admitia não ter um padre no casamento e o mesmo padre que casara Tião deslocou-se de Marília, para onde fora transferido, para realizar o casamento. Sábado a noite, o casal partiu para a lua de mel em Araxá. Depois disso foi uma festa que durou o final de semana todo. Marciano aproveitou e anunciou seu casamento com Bruna e convocou todos os seus amigos para a festa, que a principio seria em Bauru, na casa da noiva. Mas como a mãe de Bruna ainda continuava doente, resolveram fazer o casamento na fazenda também. Dona Antonella, nem bem a fazenda ficou vazia, no domingo a noite, já começou a preparar a festa que viria. Tião, antes de se deitar, pediu licença a Mariana e foi sozinho até a casa de Vó Tiana, que ele mantinha intacta. Lá, sentou-se no sofá e pegou o rádio. Ligou, mas não havia som. As pilhas estavam descarregadas. Mas ele imaginou ouvir uma música. E a ouviu inteira, com as lágrimas caindo lentamente enquanto olhava pra sua vó sentada a sua frente. O sol da manhã da segunda feira o pegou dormindo ali. Assustado saiu correndo a se desculpar com Mariana que o recebeu com um sorriso e um café. Os preparativos do casamento de Fernanda fizeram com que Tião adiasse algumas providencias que teria que tomar em relação a fazenda. Uma delas era uma proposta de arrendamento para o plantio de cana por uma usina que havia se instalado na região. A reunião era no meio da semana e como se tratava de um prazo relativamente longo preferiu chamar Marciano para participar da reunião na usina. Tião avisou que pagaria pela assessoria. Aí Marciano trouxe Bruna e o outro sócio. A reunião ficou tensa em vários momentos porque a usina queria desmatar tudo, quase 100 alqueires e os jovens advogados começaram a falar de biodiversidade, microbacias hidrográficas, sustentabilidade, preservação ambiental e outros assuntos que Tião nem ouvira falar. Chegou a ficar temeroso que a usina desistisse do negócio mas Marciano fez um sinal para que se acalmasse. Interromperam a reunião para o almoço e foram até Lins. Lá Tião teve uma aula da nova visão sobre meio ambiente e perguntaram a ele se ele queria botar um preço nas nascentes da fazenda. Disseram também que eles analisaram a região e concluíram que a usina precisava das terras da fazenda para se tornar rentável. Éra uma área muito grande que eles não podiam abrir mão. Voltaram a reunião só para marcar outra reunião onde mostrariam as áreas que poderiam ser cultivadas e as que permaneceriam como estavam. A usina disse que ficaria difícil, então, fechar o contrato de arrendamento, que tinha outra área em vista, etc, etc. Os advogados disseram que estava bem, então, encerrando a reunião. No começo da outra semana a usina ligou para Bauru marcando outra reunião. Marciano pediu um prazo maior para fazer o levantamento das microbacias e depois disso fechou o contrato. Tião pensou em arrendar o restante da área cultivável, quase 50 alqueires, para uma família japonesa de Lins plantar laranjas. Assim não teria com que se preocupar. Foi surpreendido por Francisco que pediu para tocar as terras. Afinal tinha acabado de fazer 18 anos e fora dispensado do serviço militar. Não queria ficar apenas ajudando a cuidar dos cavalos. Francisco não quis fazer faculdade e Tião respeitou. Sugeriu então que fizesse um curso técnico de agricultura. Perto de Marília tinha uma escola. No inicio de 95 foram ver e Francisco ficou. A escola tinha até alojamento com refeitório e tudo. Aí só viria para casa aos finais de semana. Como Marciano e Bruna só iriam se casar em maio, Tião fez um convite para Dona Antonella e Mariana. Visitar a Itália, principalmente a região de Benevento, onde ela nascera. Claro que ela concordou. Aí Tião pediu ajuda a Marciano, que contratou os serviços de uma agência, e após um mês de preparativos, desembarcaram em Roma. Dona Antonella parecia uma criança de tão ansiosa. Tião chegou a preocupar-se com seu estado emocional, embora ela tivesse feito um chek up completo da saúde antes do embarque e, apesar dos 68 anos, ela estava muito bem. No hotel, em Roma, Tião decidiu deixar o roteiro da agência de lado e propôs a Dona Antonella alugar um carro e sair dirigindo até a região de Benevento. Ela concordou de imediato e após a legalização da documentação, os três estavam pronto pra cair na estrada.
¬ Mas nem conhecemos Roma ainda, Tião.
¬ Calma, Mariana. Primeiro vamos ver onde a Mama nasceu. Nos vamos ficar por aqui 14 dias. Dá tempo da gente ir lá e depois passear aqui em Roma.
¬ É bom mesmo. Quero conhecer a Cinecittá. Quero ver e por meus pés por onde caminharam Sofia Loren, Claudia Cardinalle e Marcelo Mastroiani.
¬ Ainda bem que esse carro é um Fiat, quase igual ao meu. Muito bem, Mama, por onde a gente vai?
¬ Hei! Eu nunca vim a Roma. Eu morava no campo, bem longe daqui, vocês vão ver. Pergunte para o moço, na portaria, qual o melhor caminho.
¬ É a senhora que tem que perguntar, Mama. Eu não sei falar em italiano. Eu só sei que estamos no bairro de Trastevere porque a senhora queria ficar perto do Vaticano. Foi o que pedi para o Marciano. Parla lá, Mama.
¬ Va bene. ¿Hei ragazzo, vienen fatto io por la mirada en Benevento?
¬ è semplice, signora. Farò una piccola mappa. Siamo qui, a Villa Rosa Hotel in via Giovanni Prati. Rendere la curva qui, all’inizio dell’hotel e prendere la Via Giuseppe Panni e andare avanti fino a trovare la via Cesare Pascarella. Attraversare la strada e si sarà in Via Carlo Porta. È la comprensione del disegno, signora?
¬ Molto bene.
¬ Dopo aver immesso la centocelle, tra il diritto e il contorno della War Cimitery, cimitero di guerra, e individuare il Viale Marco Polo che cambierà il nome di Via Cilicia, accanto alla ferrovia. Verrà rinominare in Via Acaia e andare a Piazza Re di Roma. Nella piazza è basta chiedere come immettere Via Tuscolana. Prendere a destra e proseguite diritto. Prendere la Circonvallazione Orientale Cinecittá e uscire a Stroppiana Roma Sud e seguire dritto fino alla città di San Cesareo. Prendere l’autostrada Del Sol e seguire a Caserta ai. Benveneto è a sinistra. Capisco la signora? Seguente è così che si arriva a destinazione.
¬ Grazie
¬ E aí, Mama?
¬ Ele fez um mapa e me explicou. Só temos que seguir. Então vire o carro, pegue aquela rua ali; é a Giuseppe Panni.
¬ Vá em frente. Vamos atravessar uma avenida chamada Via Cesare Pascarella e essa rua que nos estamos vai se chamar Via Carlo Porta.
¬ Se as estradas forem como aquela que sai do aeroporto e vem até aqui, vai ser muito bom.
¬ Olha lá, temos que atravessar aquela ponte. É a ponte Testaccio. Dá um jeito aí, Tião. Sabe de uma coisa Mariana? Vamos passar do lado da Cinecittá.
¬ É vero, Mama?
¬ Sim, claro. Olha aqui o mapa que o moço do hotel desenhou. Está vendo aqui?
¬ Passamos a ponte, Mama. E agora?
¬ Pegue a esquerda. Vamos encontrar um cemitério, contorne e vamos entrar numa avenida. É a Viale Marco Polo. É só seguir em frente. Olha ali, a ferrovia, a direita. Em frente, Tião. Estamos no caminho certo.
¬ Que cidade, heim, Mama? Tudo tão limpo. Parece tudo tão organizado.
¬ É verdade, Mariana. Quando eu era menina, nunca pensei em conhecer Roma. Era um outro mundo per me. Parece tão grande, não?
¬ Sua cidade qual era mesmo, Mama?
¬ Nem era cidade Tião. Foglianise era um povoado com algumas casas. É na província de Benevento. A gente morava numa casa com dois andares.
¬ Dois andares, Mama? Chic, heim?
¬ Era comum por aqui. Em cima morava gente. Em baixo, os animais.
¬ Como é que é?
¬ É isso mesmo, galinhas, cavalo.
¬ Nossa, Mama!!
¬ E o cheiro, heim Mama?
¬ Bem forte, Tião. Mas a gente se acostuma com tudo sabia?
¬ Caramba, essa avenida não acaba?
¬ Veja você que agora ela se chama Via Cilicia, está vendo lá? Daqui a pouco vamos entrar na Via Acaia e vamos até chegar na Piazza di Re di Roma. Um quarteirão depois pegamos a direita entrando na Via Tuscolana. Essa é longa, segundo o mapa. Sabia que lá em Foglianise a gente plantava batatas?
E assim atravessaram Roma e metade do sul da Itália. Dormiram em Caserta, foram a Benevento, chegaram a Floglianise , descobriram ainda uns primos que moravam por lá e Dona Antonella descobriu uma nova Itália que em nada lembrava a “sua” Itália, pobre e destroçada pela guerra. Foram a Nápoli e depois foram passear em Roma. Duas semanas depois Marciano estava esperando por eles no aeroporto em Campinas. Tião abraçou longamente Marciano. Parecia não vê-lo há anos. No caminho para Lins, pararam em Bauru para rever Fernanda e fazer umas compras para a fazenda. Tião tocava a fazenda com muito carinho e experimentava varias culturas para experimentar o solo. Dividiu os 50 alqueires em seções e fazia rotatividade entre cultura e criação de gado, cavalos e ovelhas. Marciano casou-se mesmo em maio e a festa repetiu-se, mais intensa e com mais gente. Francisco contava a todos suas experiências no “internato” da escola agrícola e dizia que estava aprendendo a tocar viola. A família reunida aumentava a saudade de Tião por Vó Tiana e a saudade enorme de Fernando e Francesco por Dona Antonella. A família só foi reunir-se novamente 3 anos depois na formatura de Francisco, que recebeu o apelido de Chicão na escola mas pediu muito para a família não tratá-lo assim. E foi atendido. Francisco voltou para a fazenda e pediu para Tião montar uma criação de porcos. Antes ele já tinha pedido para intensificar a cultura do milho e do feijão. Agora seus planos incluíam o consorciamento e a sustentabilidade. Dividiu os 50 alqueires em 10 seções de 5 alqueires cada começou uma rotatividade de cultura. Era a virada do milênio e Francisco convidou dois amigos que se formaram com ele para trabalharem juntos num sistema de parceria, já que os dois não tinham terras. Deu a cada um uma das casas da colônia, devidamente reformadas. Um deles queria a casa de Vó Tiana, o que foi prontamente recusado. Aliás, o mesmo que Francisco fez questão de convidar, com segundas intenções, já que o mesmo tinha uma irmã que lhe interessava muito. Casaram-se dois anos depois, assim que a casa que Tião mandou construir na fazenda, ficou pronta. Aí a família reuniu-se mais uma vez, com Fernanda e seu filho de dois anos e com Bruna grávida do primeiro filho. Findava o ano de 2002 e a seleção brasileira de futebol acabara de se tornar pentacampeã mundial. Tião passou a ser grande parceiro de Francisco, querendo saber tudo que ele tinha aprendido na escola. Qualquer novidade interessante aplicavam imediatamente. A primeira delas, uma horta orgânica substituiu a estufa de pimentão e o cultivo hidropônico. Tião, melhor comerciante do que agricultor, vendeu toda a produção para a merenda escolar da região, com um contrato de um ano. Instalou antena parabólica na fazenda, gostou tanto da imagem que instalou também nas casas dos funcionários, de Francisco e dos amigos de Francisco. Passou a se interessar muito pela internet e buscava conhecer toda novidade tecnológica que surgia, em qualquer área, não apenas na área de comunicação. Procurava ir a Bauru pelo menos uma vez por semana visitar Fernanda e os dois netinhos e Marciano, já pai de uma menina. Marciano e Bruna participavam de Ongs como assessores jurídicos, voluntariamente. Eram muito entusiasmados com essa atividade e no final de 2005 fundaram sua própria Ong a qual deram o nome de Instituto Almirante Negro, voltado ao resgate das tradições africanas. Tião não podia deixar de comparar a vida de Marciano com a de Fernanda, sempre tão meiga e incapaz de desagradar alguém. Marciano enfrentava o que viesse e sempre agia com muita inteligência, dificilmente perdendo um confronto, fosse ele de idéias ou jurídico. Fernanda tomava aula de canto e preparava-se para integrar o coral da igreja e era uma das responsáveis pelas crianças nos dias de culto. Procurava ajudar Roberto em todas as atividades em que o mesmo estivesse envolvida, atendendo uma das determinações da igreja; que dizia que a esposa devia submeter-se ao marido. E ela fazia isso conscientemente, sem nenhuma contestação. Quando voltava para a fazenda, transitando pela Rodovia Marechal Rondon, conversava muito com Mariana sobre essas diferenças. Mariana então respondia que, mesmo não sendo de nenhuma igreja, ela também fazia a mesma coisa. Seguia o marido. E Tião calava-se. Quando chegava à fazenda, encontrava Francisco e via o seu jeito extrovertido introvertido, pensava que talvez estivesse errando ao permitir seus filhos tão separados um dos outros e de seus pais. Era uma situação nova, fora de seu controle, e como ele era muito voltado a família isso o incomodava um pouco. Enquanto isso, viajava. Ia a São Paulo com Mariana e dona Antonella, assistiam a algum espetáculo em cartaz, ou alguma peça teatral, depois desciam até Praia Grande onde Tião comprou um apartamento, onde passavam dias conversando e rindo muito. A fazenda rendia mais do que precisavam e dona Antonella procurava ajudar o trabalho de Fernanda em sua igreja, mesmo sendo católica fervorosa. Começou a ajudar Bruna em sua Ong, financiando alguns projetos que ela achava interessante. Marciano, anteriormente já assessorava uma entidade que ajudava os Sem \Terra e dona Antonella era visceralmente contra esse movimento. Mas começou a ajudar Marciano também. Tornou-se uma boa amiga de Bruna que mantinha os cabelos africanizados, motivo de muitas brincadeiras por parte dela e de Mariana também. Bruna era muito bonita, altiva, sorriso largo e quando ela e Tião sorriam, ou riam, não havia quem não sorrisse também. A tradição de se encontrarem na fazenda todo final de semana fora deixada de lado ao longo dos anos. Combinaram passar o réveillon de 2008 na fazenda e por todo o ano de 2009, sem faltar nenhuma vez, todos se reuniam em todo final de semana. Roberto às vezes não ia, mas Fernanda pegava carona com Marciano e comparecia. Marciano e Fernanda entendiam que o tempo estava contra os pais e principalmente contra a avó. Dona Antonella já caminhava com alguma dificuldade, embora continuasse com uma lucidez absoluta. Tião vivia reclamando que seus músculos abdominais não resistiram à boa comida feita por Mariana. Ficou com uma bela barriga e seu bigode estava ficando grisalho. Sabiam também que o ambiente da fazenda era importante para seus filhos, que adoravam Tião. A festa de aniversário dos 70 anos de Tião foi feita um mês e meio antes para coincidir com a festa de aniversário de 82 anos de dona Antonella. Esta era encantada pelos bisnetos e vivia surpreendendo os filhos de Fernanda com seus conhecimentos de informática. Tinha seu próprio notebook e pagou uma boa soma para puxar um cabo óptico até a fazenda São João. Embora os limites da fazenda chegassem até a estrada, a distância do poste na estrada até a casa sede era de quase quatro mil metros. Dona Antonella, então, plugou-se ao mundo, principalmente a Itália. E isso a remoçou ainda mais. Sua conversa era sempre atualizada o que agradava muito a Tião e a Mariana, para que pudessem viajar falando muito sobre qualquer assunto. Chegou a assinar jornal on-line e, logo no começo, passava grande tempo nas salas de bate papo. Depois se cansou. No final de 2009, Bruna e Marciano convidaram Tião para uma festa na sede de sua Ong em Bauru comemorando a Semana da Consciência Negra. Tião foi sozinho, numa das poucas vezes que não se fez acompanhar de Mariana ou Dona Antonella. Tião gostou da decoração, das músicas, das danças, do estilo dos jovens e, numa forma de agradecimento pelo convite, convidou toda a diretoria da Ong para um almoço na fazenda. Alguns dias depois Marciano ligou confirmou o almoço, dizendo que iriam em 12 pessoas, inclusive ele e Bruna, Era um domingo ensolarado de dezembro e os quatro veículos saíram de Bauru por volta de 8 horas da manhã. As dez, todos já estavam em traje de banho a beira da piscina. Tião resolveu fazer um leitãozinho a pururuca que era o prato preferido de sua vó Tiana. Ele tinha tentado algumas vezes e nunca conseguira fazer do jeito certo. Sempre rasgava o couro e o recheio vazava. É que todas as vísceras e, principalmente, todos os ossos, menos os da cabeça e patas, eram retirados com uma faquinha pelo ânus do animal. Por ali também eram inseridos o tempero e o recheio, normalmente uma farofa de milho. Depois de assado, era só jogar o óleo muito quente e esperar pururucar. Ele lembrava da avó fatiando o leitão como se fosse um belo pão caseiro. Desta vez, conseguira. Não via a hora de levá-lo a mesa, aliás, já forrada de saladas, frutas, pão, vinhos e temperos. Na beira da piscina Marciano e os amigos bebiam cervejas, inclusive as mulheres. Francisco montou uma mesa no gramado para comportar as quase 20 pessoas que iriam almoçar. Seus dois amigos ainda estavam solteiros e queriam saber se haveria moças disponíveis entre as visitantes e se convidaram. Mas não havia, e mesmo assim ficaram; já que normalmente almoçavam na casa de Francisco. Eram quase três horas da tarde quando, satisfeitos, começaram a se levantar da mesa. Dona Antonella já estava em sua cadeira de balanço na varanda e observava Tião ajudando Mariana e as duas empregadas “tirarem” a mesa e levarem tudo para a cozinha. Como o sol estava forte todos os jovens começaram a sentar-se também na varanda, onde pudessem. Tião chegou e pediu a sua cadeira também de balança a um amigo de Marciano que, apesar de ter que sentar-se no chão não cansava de elogiar o leitão a pururuca. Bruna e Marciano quase dormiam numa das redes. Francisco apareceu com a viola e com seus dois amigos cantaram alguns clássicos caipiras. Um dos amigos de Marciano, membro da diretoria de sua entidade, disse que nunca tinha ouvido uma viola, assim, ao vivo, logo ele, que era um “fazedor de cultura”. Tião, desde a festa em Bauru, não conseguia entender o que isso queria dizer.
¬ Como assim, “fazedor de cultura”?
¬ É que hoje o conceito é “empoderar” os agentes culturais através da transversalidade cultural
¬ …………
¬ Entendeu “seu” Tião?
¬ Não
¬ Eu explico, papai. Há uma nova consciência no âmbito da cultura. O Ministério da Cultura tem alguns programas de incentivo a projetos culturais, dando poder a quem faz cultura e incentivando a ligação entre vários grupos, por todo o Brasil, com as mais variadas tendências culturais
¬ Sim, “seu” Tião, a tendência da nossa entidade é resgatar a nossa ancestralidade, dentro da Matriz Africana, procurando uma equidade em todos os aspectos de nossa sociedade. Simples?
¬ Não
¬ Não é tão difícil de entender, meu sogro. Desenvolvemos projetos voltados para a raça negra, principalmente para a sua juventude, criando ferramentas para sua inserção no complexo mundo social em que vivemos. Queremos recuperar séculos de exploração da raça negra, ocupando o espaço que é nosso, por direito.
¬ Então, o que vocês fazem não é cultura, é um movimento social. Porque cultura não se faz, cultura se cultiva.
¬ Não concordo, papai. Cultura se faz mantendo a tradição e impedindo que ela seja corrompida por interesses externos.
¬ Não! Ao manter a tradição, você está mantendo uma cultura, que já está feita. O que vocês fazem é tentar impor uma tradição que nem existe mais em seu berço.
¬ Extrapolou, meu sogro..
¬ Não! E explico porque. Tenho três filhos, cada um seguiu um caminho. Os três, ao nascerem estavam aqui, na fazenda, comendo a broa de milho de minha Vó Tiana e a “pasta” de minha mama Antonella. Os três ouviam as mesmas estórias, os mesmos conselhos, as mesmas músicas. Vestiam-se quase do mesmo jeito. Foram a missa, fizeram a “primeira comunhão”, tinham o hábito de “pedir a benção” às duas avós e até a mim, antes de se deitarem. Naquele tempo, meus filhos achavam aquilo normal e até necessário. Mas se eu quisesse manter isso eu teria que impor a minha vontade, que não é mais a deles. Podia até ser bonita mas não se aplica mais hoje.
¬ Mas o que isso tem a ver com cultura?
¬ Tudo. O que vocês chamam de fazer cultura e organizar um movimento social voltado para a cultura. Vocês confundem cultura com arte.
¬ Ah, não!
¬ Ah, sim! O que vocês apresentaram na festa lá em Bauru são manifestações artísticas. O que o Francisco fez agora há pouco aqui é uma manifestação artística. Isso não é cultura.
¬ Como não, papai?
¬ Seria cultura se vocês vivenciassem a viola e tudo o que orbita em torno dela. Seria cultivado em vocês um novo modo de vida através dessa manifestação artística. Daria vontade de aprender tocar viola, ter e até mesmo construir uma viola. Daria vontade de conhecer quem toca viola, participar dos festivais e cantar ao som de uma viola. Mesmo assim poderia não ser uma cultura completa, mas, sim, o conhecimento completo de uma arte. Para ser cultura você teria que viver dentro do mundo da viola, de forma natural, todos os dias, sendo feliz com isso.
¬ Então, não estou entendendo mais nada
¬ É que o erro é de origem.
¬ Erro de origem?
¬ Sim. A cultura é como você age de acordo com o que você pensa. Veja você, Marciano. Foi pra Lins, fez um bom colégio, conheceu novos amigos, da mesma forma que Fernanda. Depois os dois foram para Bauru fazer advocacia e os caminhos foram diferentes. Você, através de seus amigos, entrou no mundo tecnológico e organizacional. Fernanda conheceu apenas uma pessoa e entrou no mundo dele. Sentiu-se segura, confiante, canta no coro de sua igreja, mas vocês não conseguem conversar, um sobre o assunto do outro. Ela cultivou em si, um modo de vida. Isso atendia suas necessidades afetivas. Você, aliado a Bruna, pensou em ações comunitárias procurando ajudar o próximo. Isso também atende suas necessidades afetivas. Os dois não se sentem carentes. E Francisco? Olhem pra ele. Sei que vocês acham que ele também deveria ter ido para a cidade, ser mais urbano. Mas o que ele decidiu foi da vontade dele. Da mesma forma que vocês, ele também está feliz.
¬ Mas, “seu” Tião, eu só não entendo o que isso tem a ver com a nossa entidade, de que não somos fazedores de cultura. Acho que somos sim e principalmente da cultura afro.
¬ Está tão difícil você entender que não é possível “fazer cultura afro”? A cultura africana, a que você se refere, são sons e imagens de tradições que há muito se perderam na própria África. Você deve pensar como brasileiro, simplesmente.
¬ O senhor não vai querer nos convencer que tudo está uma maravilha para os negros brasileiros. Os escravos africanos fizeram esse país o que ele é hoje
¬ Você conhece a África? Você conhece algum país da África? Você sabe como está Angola, Moçambique, a Guiné, de onde meus avós vieram? Está uma droga. Uma pobreza só. Entre na internet, pesquise, procure saber como está a Mama África. Você vai ver que é melhor ter vindo pra cá
¬ Epa! Espere aí. Quer dizer que devemos agradecer por nossos ancestrais terem sido trazidos pra cá como animais e vivido nas senzalas, também como animais de carga?
¬ Claro que não. Foi um erro de uma outra época, cometido por outras pessoas.
¬ Para o senhor é fácil falar. Desculpe eu falar viu, Marciano, mas seu pai não passou dificuldades, é um fazendeiro conceituado. Não tem idéia da realidade dos negros brasileiros.
¬ Permitem eu entrar na conversa, Tião?
¬ Claro, mama
¬ Estou ouvindo vocês e fiquei até comovida. Sempre admirei esse meu genro. E agora admiro um pouquinho mais. Tião passou por muitas dificuldades sim. Tem as mãos calejadas pelo cabo da enxada. Aproveitou as oportunidades porque é inteligente e continuou conosco porque é correto e tem muito caráter. Isso pode acontecer com qualquer um. E a propósito, sempre achei também que o Ministério da Cultura devia se chamar Ministério das Artes, sendo um mecenas, ajudando artistas a desenvolverem seus trabalhos sem se preocupar com mais nada. E nós, não artistas, seríamos os beneficiados pelas belezas de suas criações.
¬ A senhora quer dizer que o Ministério da Cultura devia patrocinar diretamente os artistas e não as entidades que abriga os artistas?
¬ Sim, é obvio isso, não?
¬ E quem formaria esses artistas, senão essas entidades?
¬ Oras, o Ministério da Educação. Não tem lá os professores de Educação Artística.
¬ Ah, não! Esses caras só sabem ensinar a fazer bichinhos de papel ou pintura com guache.
¬ Mas é só capacitar melhor. E pagar um pouco mais.Aí o Ministério da Cultura passaria a ser o Ministério das Artes. Por isso que digo que a história é a mãe da cultura. Não dá para fazer cultura na hora. É preciso o tempo.
¬ É isso, mama. Realmente, cultura é imaterial, não se administra. Como administrar sensações de aceitações e rejeições sobre uma expressão em qualquer formato, escrita, esculpida ou pintada?
¬ Mas as expressões podem ser “gerenciadas”, assim como faz o ministério dos esportes quando descobre algum talento esportivo. O que o Ministério da Cultura deveria fazer é descobrir onde estão os artistas e suprir todas as suas necessidades para que eles possam fazer a sua arte. Por isso deveria ser Ministério das Artes.
¬ Muito bem, mama. E o povo, ao ter acesso a essas artes, interagia com a que mais lhe emocionasse. Se uma comunidade interagisse mais com o teatro, teríamos mais atores, diretores, coreógrafos, etc, naquela comunidade. Isso seria um exemplo de uma cultura.
¬ Ora, meu sogro, isso é muito bonito de se dizer mas na prática é outra coisa. A nossa luta é por uma sociedade mais justa e não por mais circo. Usamos a música e a dança para unir a comunidade negra, que um dia terá o poder nesse país, já que somos a grande maioria do povo.
¬ Então é isso o que vocês querem?
¬ É isso, dona Antonella. Vamos nos organizar e formar uma grande Teia, ensinando a cultura afro nas escolas e exigindo os direitos que nossos ancestrais conquistaram com seu sangue.
¬ Você não sabe o que diz, Bruna. Para se fazer um país é preciso unir, conviver com as diferenças e aceitar algumas regras gerais. Nasci num país várias vezes invadido, conquistado, retalhado. A Itália perdeu grande parte de seu território para a Áustria, foi difícil reconquistar. Perdemos várias guerras, tivemos soldados estrangeiros passando na frente de nossas casas, tivemos nossas cidades saqueadas, Vivi todo o horror da Segunda Grande Guerra, o terror do fascismo e o controle de grupos mafiosos.
¬ A senhora vivenciou isso?
¬ Claro, eu tinha vinte anos quando saí da Itàlia. Saí de lá em 47 para vir para o Brasil. Eu me casei um dia antes do embarque. Poderia ter ido para a Austrália, ou para a América. Mas os soldados brasilianos deixaram uma boa impressão na Itália.. Ainda lembro do cheiro da terra da minha Benevento, quando eu arrancava as batatas que a gente plantava e eu estava no campo quando meu Francesco chegou com uma carta nas mãos, vinda do Brasil, com dinheiro e um recado de seu irmão chamando a gente. Ele tinha vindo para ser mestre em uma indústria em São Paulo, antes da guerra, em 1937. Com pouco dinheiro comprou umas terras, percebeu que precisava cavalos para a lavoura e começou uma criação. Deu certo e nos chamou. Quando chegamos, isso aqui era uma floresta. Ficamos na casa dele por quase três anos até formarmos esta fazenda. Aí, foi uma luta que nem dá pra contar. Agora vocês vem e querem dividir o país em brancos e negros?
¬ Não, dona Antonella, a gente não falou isso. Queremos recuperar séculos de exploração da raça negra, ocupando o espaço que é nosso, por direito.
¬ Como assim, por direito? Que direito? O que tiraram de você, Bruna, que você quer agora?
¬ O espaço que não nos permitem ocupar. Não luto por mim, mas por todo o povo negro, aquele mesmo que foi trazido pra cá e deram o resto de vida que tinham pra enriquecer seus senhores.
¬ E enriqueceram os senhores deles na África também, porque quem os vendia eram os seus reis ou seus chefes de tribos. Uma sucessão de erros que também aconteceu na Europa, onde na época, haviam muitos escravos brancos.
¬ Mas estou falando do aqui e agora. Queremos lutar pelas cotas nas universidades e pela igualdade nas oportunidades.
¬ Mas não é pelo confronto que vocês vão conseguir isso. Duvido que seu sogro iria aceitar entrar numa universidade pelo sistema de cotas. Ele é muito digno pra isso. Entraria pelos seus méritos.
¬ Será, Dona Antonella?
¬ Nem preciso perguntar pra ele, tenho certeza absoluta disso. Como tenho certeza de que ele acha que um país deve ser feito pela união e não por divisões de identidade raciais.
¬ Mas não queremos dividir nada
¬ Mas é o que vai acontecer se vocês não entenderem o que é um país, o que é uma nação. Não se faz um país pensando apenas no passado, mas pensando no passado, de olho no futuro. Em todo processo de construção de um país há muitas lutas e com isso sobram muitas feridas. Um país forte é um país orgulhoso de suas feridas. Elas são o testemunho das lutas para formar um país. Eu dei um filho pra construir esse país. Ele morreu tentando manter a liberdade nesse país.
¬ Essa estória eu não conheço.
¬ Ah! Uma hora qualquer Marciano te conta isso.
Já escurecia. Marciano lembrou seus amigos que eles tinham uma estrada com mais de 100km pela frente. Foram todos se levantando, se despedindo, sem que Tião e dona Antonella se levantassem de suas cadeiras de balança. Mariana é quem ia ajudando a quem quisesse levar alguma coisa para comer. Francisco que ficou o tempo todo abraçado a sua viola, levantou, deu um beijo no pai e na avó e também se foi com a família e os amigos. Tião com um sorrisão nos lábios, mãos cruzadas na barriga, balançando-se levemente, olhava para dona Antonella. Esta, tirou os olhos da direção da cachoeira, olhou para Tião e pareceu murmurar
¬ eles estão pensando o que?
E Tião sorria, ouvindo o canto dos grilos que só aumentava